Opinião

O depoimento especial e o risco de óbice ao direito de defesa

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9 de fevereiro de 2022, 15h26

A Lei nº 13.431/17 estabelece "o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária", que denomina de depoimento especial. O objetivo legal é o de conferir especial proteção quando dessa oitiva, como forma de evitar danos emocionais ou mesmo a chamada revitimização, pelo confronto forçado que o depoimento provoca, em seu autor, com fatos que já lhe causaram grande sofrimento.

Louvável a pretensão do legislador, todavia, pode importar em irremediável ofensa ao direito de defesa do investigado ou réu. Isso porque, cercando-se o depoente de cuidados, absolutamente compreensíveis e necessários, prejudica-se o exercício do direito de defesa ao limitar as intervenções no ato em que se buscam extrair informes relevantes sobre o fato a ser julgado, sob a ótica dessa vítima ou testemunha.

Evidente que a proteção ao depoente é fundamental, tanto quanto fundamental é o incriminado ter a oportunidade de questionar e revolver depoimento que será elemento essencial do conjunto probatório.

Vale ressaltar que, no julgamento de crimes dessa espécie, a jurisprudência tem conferido especial valor à palavra da vítima, partindo da premissa de que são delitos comumente cometidos às escondidas. Pois esse valor excepcional exige, em contrapartida, especiais condições de confronto e inquirição, que inibam depoimentos que se mostrem parciais, tendenciosos ou representações possivelmente falsas da realidade.

Ocorre que, na prática forense, parece prevalecer tendência a privilegiar o relato espontâneo da vítima, mas então apenas se terá essa parcela de exposição da realidade, que pode ter sido afetada por falsas memórias ou por outros fatores, como a influência de terceiros. Essa distorção não se corrige nem mesmo com a atribuição, aos chamados "profissionais especializados", da coleta e do repasse das informações prestadas pela vítima, como se dá no depoimento especial, na medida em que assumirão esses profissionais a posição de responsáveis pela definição do que pode ou não ser ouvido, dito e entendido pelo depoente. A lei prevê essa intermediação entre o depoente e o juiz e as partes, vedando a inquirição direta do primeiro, com o que impõe filtro apenas sensível às peculiaridades do depoente, cerceando quaisquer iniciativas que se entendam indevidas.

Perceba-se, pois, que a lei em questão acaba por restringir o exercício do contraditório enquanto instrumento mais apropriado de busca da verdade, substituindo-o por sistema falho e injusto, que poderá implicar conhecimento superficial, parcial ou equivocado dos fatos.

Propõe-se, assim, numa avaliação ainda incipiente, que a experiência prática do depoimento especial deva importar na oferta de condições plenas para o exercício do contraditório ou, se tanto, sob a justificativa da proteção ao depoente, no registro expresso dos óbices surgidos ao exercício do direito de defesa, para que sejam esses considerados quando da avaliação do valor probatório do ato, relativizando-se sua influência no julgamento da causa.

Também importante será a construção de novas orientações jurisprudenciais sobre o tema, a partir da premissa de que se trata de prova fragilizada, quando não imprestável, se caracterizada infringência efetiva à ampla defesa.

Não se pretende, com essas considerações, recusar os bons propósitos da lei ora tratada. Necessariamente, contudo, se impõe leitura sóbria e equilibrada de seus comandos, adequando-os ao sistema processual vigente e assegurando-se que valores igualmente importantes, como o direito de defesa, sejam respeitados.

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