Defesa da Concorrência

A vida imita a arte: realidades alternativas e considerações concorrenciais

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7 de fevereiro de 2022, 8h00

"Counterpart" foi uma série sci-fi, estrelada por J. K. Simmons, e seria mais uma produção norte-americana sobre espionagem, conchavos e traições envolvendo agências de inteligência se não fosse por um excelente detalhe: após um dado evento, um prédio em Berlim esconde uma passagem de uma realidade ("Terra Alfa") para outra ("Terra Prime"). A trama torna-se interessante e, a partir daí é desenvolvida, quando o personagem interpretado por Simmons toma conhecimento da existência de outro indivíduo exatamente igual a ele nessa outra realidade, isto é, sua contraparte.

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A despeito da carga ficcional apresentada no seriado, atualmente vislumbra-se a possibilidade de explorar universos paralelos por meios certamente menos dramáticos, no que se tornou conhecido como metaverso. Basicamente, trata-se de um ambiente virtual e expansivo em que seres humanos podem criar avatares — suas contrapartes  para interagir com outras pessoas e vivenciar, em ambiente simulado, experiências da vida real.

Contudo, mundo virtual; consequências reais. Desse modo, é possível refletir sobre se os atos praticados no e para o metaverso podem ser objeto de tutela jurídica, mais especificamente do Direito Antitruste, e, em caso positivo, como os operadores poderão direcionar a ordem jurídica para responder satisfatoriamente a tais questionamentos.

Nesse ponto, convém mencionar a recentíssima entrevista concedida por Margrethe Vestager, atual vice-presidente executiva da Comissão Europeia. Em seu pronunciamento no último dia 18 [1], ela destacou que o ecossistema virtual a ser implementado pelo metaverso cujo objetivo, frisa-se, é espelhar interações e hábitos do cotidiano, culminará no surgimento de novos mercados relevantes e inúmeros novos modelos de negócios no qual é possível que agentes detenham posição dominante [2].

Por essa razão, aponta que esse é um assunto que deve estar na pauta do dia das autoridades de defesa da concorrência e ainda que uma análise sobre o modelo econômico que estrutura a lógica do metaverso não seja algo plenamente estruturado, adiantou ser possível verificar potenciais abusos neste tipo de ambiente.

Nesse ponto, pode-se refletir sobre eventuais desdobramentos para operacionalizar o funcionamento do metaverso, notadamente em relação à realidade virtual e à realidade aumentada. Para ter acesso à plataforma, é necessário que o usuário use um acessório que projete essa nova "realidade".

Quanto ao veículo que possibilita o acesso à tecnologia, segundo notícias, o Meta (antigo Facebook) tem sistematicamente adquirido estúdios e profissionais de destaque que atuam com realidade virtual [3]. Nesse contexto, qual seria o impacto de um alto grau de concentração nesse setor? Os efeitos seriam os mesmos observados em mercados ditos tradicionais ou precisaríamos de novas lentes para analisar os possíveis problemas?

Inclusive, esse padrão de aquisições sucessivas pelo Meta tem atraído atenção do FTC, o qual, segundo notícias, instaurou uma investigação formal [4] para apurar se a empresa tem utilizado do seu poder de mercado para, ilicitamente, alterar as condições de concorrência e suprimir a competição [5].

Uma das práticas seria o fechamento de mercado aos agentes que competem com seu próprio sistema, o que, em tese, impediria outros competidores de acessar o consumidor. Além disso, segundo a notícia, o Meta estaria, também, copiando aplicativos promissores utilizáveis através do óculos de realidade virtual.

Além disso, ainda que critérios de notificação obrigatória não sejam atingidos, as autoridades de defesa da concorrência permitirão que sucessivas aquisições sejam concretizadas, aumentando indiscriminadamente o share de alguns agentes, ou métodos de análise menos tradicionais serão aplicados? E qual será o impacto disso em termos de política de defesa da concorrência, especificamente quanto aos objetivos do antitruste?

Outra questão que decorre desta relação é o volume de dados a que o Meta/Facebook terá acesso quando da utilização desses "óculos" de realidade virtual. Como definido pela literatura, ao falar em dados, é importante considerar suas dimensões, identificadas pelos três ou quatro "Vs": o volume de dados captado, a variedade desses dados, a velocidade com que esses dados podem ser captados e, em alguns casos, o valor destes dados [6].

Sob essa seara, algumas pesquisas apontam que podem ser registrados, em 20 minutos de utilização do sistema de realidade virtual, mais de dois milhões de dados acerca da linguagem corporal do indivíduo [7], o que pode ser usado para os mais diversos fins, como, por exemplo, o direcionamento de propaganda específica.

Interseções entre privacidade, proteção de dados e concorrência poderão ganhar novos contornos, além, é claro, da manutenção do debate sobre o papel das agências de defesa da concorrência sobre o que deve compor o horizonte de análise.

De outra banda, será necessário manter a dinâmica competitiva que surgirá em decorrência do desenvolvimento do setor. Acredita-se que surgirão debates sobre a garantia de interoperabilidade na plataforma e tantas outras relacionadas a acordos de exclusividade e fechamento de mercado, quando, por exemplo, um determinado avatar só puder ser equipado com um óculos, tênis ou camiseta de uma marca específica.

Por último, é possível, também que práticas como troca de informações concorrencialmente sensíveis ou acordos sobre variáveis concorrencialmente relevantes possam ser entabulados no ou através destes universos paralelos, o que, certamente, será um desafio para autoridades de defesa da concorrência em termos de enforcement.

É certo que o desenvolvimento dessa discussão não afetará todas as jurisdições de maneira uniforme, levando em consideração fatores conjunturais, como, por exemplo, custos e número de vendas de acessórios de realidade virtual. Todavia, se se acredita que essas serão as tecnologias do futuro, os impactos das condutas praticadas nesses mercados certamente causarão estresse nas estruturas predominantes [8].

Dessa forma, é fundamental que o sistema jurídico esteja atento às mudanças que ocorrem no ambiente para que possa reduzir complexidades [9] e estar apto para que as respostas do Direito reflitam os reais anseios da comunidade, bem como a dinâmica competitiva seja mantida tanto no mundo offline quanto em nossa contraparte online.

 

[2] Em recente levantamento da Forbes, marcas como Itaú, Nike, Gucci e Vans já atuam na construção de ambientes de interação virtuais ou possuem ações voltadas para estas plataformas. Inteiro teor em: https://forbes.com.br/forbes-tech/2022/01/exemplos-do-metaverso-marcas-que-atuam-com-propriedade/.

[3] Segundo a reportagem, o Meta já adquiriu cinco estúdios: Big Box VR, Unit 2 Games, Beat Games, Sanzaru Games, Ready at Dawn e Within. Inteiro teor em: https://www.theverge.com/22879623/meta-facebook-antitrust-problems-ftc-vr-virtual-reality.

[4] Segundo a reportagem, os termos da investigação são de acesso restrito. Os autores também não conseguiram obter informações em canais de comunicação oficiais.

[6] DELRAHIM, Makan. "Blind[ing] Me With Science": Antitrust,  Data,  and  Digital  Markets. Keynote Speech. CHALLENGES TO ANTITRUST IN A CHANGING ECONOMY. Harvard Law School. November 9, 2019.

[7] BAILENSON, J. N. Protecting Nonverbal Data Tracked in Virtual Reality. JAMA Pediatrics. Published online. August 6, 2018. Inteiro teor em: https://stanfordvr.com/pubs/2018/protecting-nonverbal-data-tracked-in-virtual-reality/.

[8] Indicando a tendência de o conglomerado Meta direcionar esforços para o metaverso e realidades alternativas, Adam Mosseri, Head do Instagram, em publicação do dia 03.02 (https://www.instagram.com/p/CZe7TfGgyFU/) discorre sobre a nova ferramenta do aplicativo, qual seja, a possibilidade de criação de avatares, chamando ao atenção para o fato de que, no passado, a forma com que as pessoas se manifestavam online se dava através de perfis; para ele, no futuro, a internet irá evoluir para algo mais imersivo (metaverso) que demandará maior dinamicidade na construção desta identidade virtual, razão pela qual tais avatares possuem ampla possibilidade de customização.

[9] Sobre o conceito específico de complexidade que se pretende adotar, variação e (re) estabilização do sistema jurídico, ver: NEVES, Clarissa Eckert Baeta. NEVES, Fabrício Monteiro. O que há de complexo no mundo complexo? Niklas Luhmann e a Teoria dos Sistemas Sociais. Sociologias, Porto Alegre, ano 8, nº 15, jan/jun 2006, p. 182-207.

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