Opinião

As contribuições dos quilombos para o Direito Antidiscriminatório

Autor

  • Maicon Natan Volpi

    é especialista em Direitos Difusos e Coletivos pela Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo (ESMPSP) e analista jurídico do Ministério Público do Estado de São Paulo.

5 de fevereiro de 2022, 12h14

A moderna compreensão de Estado democrático de Direito passa pela necessária compreensão de que a democracia, como forma de governo, não se resume ao princípio majoritário (vontade da maioria), mas também pela compreensão do respeito à dignidade humana, como condição indissociável de qualquer pessoa. Trata-se da democracia substancial, como produto da compreensão conjunta das bases constitucionais modernas.

Estado democrático de Direito, em verdade, é a síntese de dois movimentos filosóficos, históricos e políticos, retratados pelos conceitos de constitucionalismo e de democracia, os quais são muito próximos, mas não se confundem, conforme alerta Barroso: "Constitucionalismo significa, em essência, limitação do poder e supremacia da lei (Estado de Direito, rule of law, rechtsstaat). Democracia, por sua vez, em aproximação sumária, traduz-se em soberania popular e governo da maioria" [1].

Dessa síntese não é difícil verificar que a vontade da maioria está igualmente submetida à limitação do poder, ideia esta contida no constitucionalismo. São parcelas de um conceito, que não cabe interpretação isolada, sob pena de falsa compreensão.

A limitação da vontade da maioria (entenda por maioria com poder político, frente à realidade nacional de exclusão social, o que deslegitima ainda mais a mera compreensão formal de democracia) é expressa na Constituição de 88, quando elenca como fundamentos da República a cidadania, a dignidade da pessoa humana e o pluralismo político (artigo 1º, incisos II, III e V) [2]. É expresso ainda quando a Constituição define, entre os objetivos fundamentais da República, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, e a promoção do bem de todos, sem preconceitos e quaisquer formas de discriminação (artigo 3º, incisos I e IV) [3]. O constitucionalismo limita a forma democrática de governo mais uma vez quando outorga ao judiciário a possibilidade de decretação de inconstitucionalidade de normas votadas pelo parlamento, em verdadeiro papel contramajoritário (artigos 102, inciso I, alínea "a", e 125, §2º) [4].

Definitivamente, a mera redução da democracia ao princípio majoritário é conhecimento apenas parcial do atual regime político, que melhor é representado pela compreensão da possibilidade de autogoverno de um povo, consideradas as peculiaridades, e respeitando a diversidade, inerentes à natureza humana.

Nesse contexto surge, para alguns autores, um novo e importante ramo do Direito Público, denominado de Direito Antidiscriminatório, conceituado por Bruno Galindo como "um conjunto de medidas jurídicas em âmbito constitucional e infraconstitucional que almeja reduzir a situação de vulnerabilidade de cidadãos e grupos sociais específicos através da proibição de condutas discriminatórias pejorativas, a exemplo da criação e manutenção de privilégios injustificáveis à luz das contemporâneas teorias da justiça, e, por outro lado, da implementação, quando necessário, de políticas públicas de discriminação reversa ou positiva, sempre no sentido de promover tais grupos e cidadãos a uma situação de potencial igualdade substancial/material, políticas estas normalmente transitórias até que se atinja uma redução significativa ou mesmo extinção da vulnerabilidade em questão" [5].

Quanto ao primeiro aspecto do conceito supracitado (proibição de condutas discriminatórias), Allyne Andrade e Silva, em sua obra "Direito e Políticas Públicas Quilombolas" [6], trouxe uma profunda pesquisa histórica acerca das aludidas comunidades tradicionais, análise histórica importante para alçar a necessária compreensão de normatividade ao princípio da proibição de condutas discriminatórias da pessoa humana, em especial pelo estado, princípio este que, apesar de expresso na Constituição (artigo 3º, inciso IV, da CF/88), parece apenas ser uma mera recomendação.

O estudo apresentado por Allyne Andrade ajudará na compreensão da necessidade de normatividade a esse princípio, em especial pela evolução histórica do conceito de quilombo.

Conforme estudo de Allyne Andrade e Silva [7], o termo quilombo advém de kilombo, utilizado para designar uma instituição política e militar, que envolveu várias regiões da África Banto, sendo dessas regiões os primeiros povos escravizados trazidos para a América, graças às relações estabelecidas entre o reino de Portugal e o reino do Congo.

No Brasil colonial e imperial, contudo, o termo quilombo ganhou nova dimensão: uma comunidade de escravizados fugitivos (geralmente conjunto de cinco fugitivos, sendo que leis posteriores, de recrudescimento, diminuíram para três). Quilombo passa a ser termo jurídico cuja conceituação tinha por fim possibilitar o uso do aparato repressivo estatal. Criaram-se, por meio de leis, comunidades objeto de repressão.

Destaca a autora (com menção à obra de José Maurício Arruti) [8] que o termo ganhou novos significados com o advento da república, de modo que o termo aparece ora como sinônimo de cultura específica de uma comunidade (necessidade de interpretação antropológica de determinada comunidade, em razão de eventos históricos específicos, e necessidade de respeito a esses valores), e ao ora como sinônimo de resistência política, com ênfase no histórico conflito que se instaurou entre o Estado e uma determinada classe social, objeto de opressão.

Essas duas dimensões hoje estão materializadas na constituição federal, respectivamente no artigo 216, §5º, CF, e artigo 68 do ADCT [9]. Mas essa revisitação histórica opressora mostra-se mais do que nunca necessária, para que se dê a respectiva normatividade que se espera do princípio basilar do Direito Antidiscriminatório: o princípio da proibição de condutas discriminatórias, em especial por parte do Estado.

Inconcebível, no atual estágio de compreensão do estado democrático de direito, permitir a existência de comunidades objeto de opressão (quilombolas, índios, LGBTs, deficientes físicos e mentais etc.), muitas vezes opressão do próprio Estado, sendo necessário que a jurisdição constitucional e o próprio poder político combatam, com veemência, esta violação às bases estruturais de um direito antidiscriminatório, e à própria ideia de Estado democrático de Direito.

 


[1] Barroso, Luís Robeto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. Editora Saraiva, 7º edição, 2018, pag. 114.

[5] GALINDO, Bruno: "O direito antidiscriminatório entre a forma e a substância: igualdade material e proteção de grupos vulneráveis pelo reconhecimento da diferença", in: Direito à diversidade (orgs.: FERRAZ, Carolina Valença & LEITE, Glauber Salomão). São Paulo: Atlas, 2015, p. 51. Cf. tb. MARTÍNEZ, Fernando Rey: "La discriminación multiple, una realidad antigua, un concepto nuevo", in: Revista Española de Derecho Constitucional, nº 84. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2008, pp. 252ss. O mesmo conceito foi apresentado pelo autor em no artigo "ADI 5.357 é um avanço na construção de um direito antidiscriminatório", apresentado em conjunto com Mateus Pereira, na revista jurídica Consultor Jurídico, disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-jun-13/adi-5357-avanco-construcao-direito-antidiscriminatorio. Acessado em 31/01/2022.

[6] Silva, Allyne Andrade. Direito e políticas públicas quilombolas. Editora D´ Plácido. 2020.

[7] Silva, Allyne Andrade. Direito e políticas públicas quilombolas. Editora D´ Plácido. 2020. Págs. 79 a 86.

[8] Arruti, José Maurício. Caminhos Convergentes: Estado e Sociedade na superação das desigualdades raciais no Brasil. Fundação Henrich Boll/ActionAid, 2009.

[9] Nos termos do artigo 216, caput e seu §5º, da CF, "constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem (…) §5º Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos". Consoante ainda ao disposto no artigo 68, do ADCT, "aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos". Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acessado em 01/02/2022.

Autores

  • é analista jurídico do Ministério Público do Estado de São Paulo e especialista em Direitos Difusos e Coletivos pela Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo (ESMPSP).

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