Diário de Classe

A Teoria do Estado precisa se voltar para o estudo da América Latina

Autor

  • Danilo Pereira Lima

    é professor do curso de Direito do Centro Universitário Claretiano de Batatais (Ceuclar) doutor — com bolsa financiada pela Capes/Proex — e mestre — com bolsa financiada pelo CNPq — em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do grupo de pesquisa Hermenêutica Jurídica vinculado ao CNPq e do grupo Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

5 de fevereiro de 2022, 13h04

Neste ano o Brasil vai comemorar os 200 anos de sua independência, uma data importante para pensarmos as peculiaridades da nossa formação política, jurídica e social. O fim do domínio colonial marcou o início da construção do Estado nacional brasileiro, um acontecimento ainda pouco analisado pela disciplina de Teoria do Estado nos cursos de Direito. Quando estudamos a origem da ordem política moderna, normalmente analisamos este fenômeno político e jurídico apenas a partir de uma perspectiva eurocêntrica. As peculiaridades da construção dos Estados nacionais em países periféricos são deixadas de lado, o que acarreta uma má compreensão das principais características da nossa engenharia política e constitucional.

Isso não quer dizer que devemos abandonar a Europa e deixarmos de ler os clássicos da Teoria do Estado para nos voltarmos somente para os países periféricos. O nascimento dos primeiros Estados nacionais ocorreu no continente europeu e autores como Thomas Hobbes e Jean Bodin foram fundamentais para a sua elaboração inicial, ainda no modelo absolutista. Desse modo, deixar de conhecer a história das monarquias absolutistas e não ler os teóricos que ajudaram a sustentá-las certamente implicaria numa má compreensão sobre a origem do fenômeno político estatal. Algo que não pode ocorrer nos cursos de Direito.

No entanto, ao mesmo tempo em que é importante continuar analisando o que ocorreu na Europa, também se faz necessário não fecharmos os olhos para os países periféricos. E aqui destaco principalmente a experiência dos países da América Latina. Primeiramente porque se não nos interessarmos pelo estudo da nossa história política e constitucional, ninguém assumirá a tarefa por nós. Em segundo lugar, porque não podemos continuar pensando nossos problemas políticos e constitucionais somente através das soluções encontradas pelos países do centro do capitalismo. É por meio desses dois pontos referenciais que a Teoria do Estado pode contribuir para uma visão mais ampla sobre a realidade periférica.

No caso específico da América Latina e aqui é bom lembrar que o Brasil é um país latino-americano , o nascimento dos diversos Estados nacionais enfrentou problemas bem diferentes dos enfrentados pelos países europeus. Durante muito tempo a América Latina foi mantida sob domínio dos impérios coloniais. Além disso, a escravidão deixou marcas profundas no continente. Em muitos países da América espanhola os conflitos raciais foram bem intensos após o processo de independência. Mesmo depois do fim da dominação colonial, a estrutura social baseada no domínio da população branca sobre as populações indígenas e negra permaneceu. O exemplo do que havia acontecido no Haiti uma independência liderada e conquista por ex-escravos era visto como uma ameaça pelas elites brancas da região.

Também existem diferenças importantes entre os processos de independência do Brasil e da América espanhola. Diferentemente do que aconteceu com as ex-colônias do Império espanhol, após a independência o Brasil conseguiu manter sua integridade territorial. Apesar da grande extensão de seu território, o poder central conseguiu impedir a fragmentação. É verdade que não faltaram movimentos revolucionários de caráter autonomista em diversas províncias, até porque, durante o século 19, a ideia de nacionalidade brasileira ainda estava muito longe de prosperar. As pessoas se identificavam muito mais com suas respectivas províncias de origem do que com um país recém-criado chamado Brasil.

Um dos fatores políticos que favoreceram a manutenção da unidade territorial no Brasil foi a ausência de longas guerras no processo de independência. As tensões militares com as tropas portuguesas não se perpetuaram por muito tempo, e o processo de separação entre colônia e metrópole acabou se resolvendo pela via diplomática. Já nas antigas colônias espanholas a situação foi bem diferente. A guerra de independência durou muitos anos e a vitória sobre a Espanha foi conquistada após muita destruição e derramamento de sangue. O resultado final foi a formação de uma elite política militarizada e de natureza oligárquica que, após o encerramento da guerra contra um inimigo externo, voltou-se para disputas internas semprefomentadas por pretensões de dominação local em detrimento da construção de um poder central mais amplo. Era o caudilhismo se impondo em prejuízo do projeto de pátria grande idealizado por Simon Bolívar.

Na construção do Estado brasileiro prevaleceu uma elite política formada pela longa tradição da Faculdade de Direito de Coimbra. De acordo com José Murilo de Carvalho, em seu "A construção da ordem", a elite política brasileira era mais uniforme do ponto de vista do treinamento burocrático e da formação ideológica. Muitas das lideranças políticas que se destacaram no primeiro reinado tinham frequentado a mesma Faculdade de Direito e atuado em diferentes esferas da burocracia do Estado português. Esse foi o caso de José Bonifácio. Antes da independência, Bonifácio havia se formado ideologicamente junto à elite política portuguesa. Quando voltou ao Brasil, após longos anos vivendo em Portugal e atuando em sua burocracia estatal, Bonifácio trouxe em sua bagagem ideias coimbrãs que contribuíram para a fundação do Estado brasileiro.

Entre Bonifácio e Bolívar há muitas diferenças. O primeiro era monarquista, jurista e cientista; enquanto o segundo era republicano e militar. Contudo, ambos sabiam da importância do estabelecimento de um poder central forte e estável para a fundação de um Estado nacional. Algo pouco analisado no início dos cursos de Direito e que poderia contribuir para uma melhor compreensão das diferentes trajetórias institucionais traçadas pelos países da região.

Fiz apenas algumas indicações de temas que deveríamos explorar na disciplina de Teoria do Estado. Não podemos continuar ensinando essa disciplina numa perspectiva eurocêntrica e unidimensional. Juntamente com o estudo da história dos Estados europeus e de seus principais teóricos, precisamos incluir o estudo da nossa história institucional. Afinal, ao contrário do que certos juristas continuam a pensar até hoje, a compreensão e a resposta para muitos dos nossos problemas atuais não está na simples importação de ideias estrangeiras, mas, sim, na capacidade de entendermos as especificidades da nossa realidade política, constitucional e social; de demonstramos criatividade na elaboração de soluções; e dialogarmos com as experiências de outros países sem o complexo de inferioridade que tanto nos prejudica na ação política, jurídica e nas formulações intelectuais.

Autores

  • é professor do curso de Direito do Centro Universitário Claretiano de Batatais (Ceuclar), doutor em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do grupo de pesquisa Hermenêutica Jurídica e do grupo Dasein - Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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