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Influências da Semana de Arte Moderna na proteção do patrimônio cultural brasileiro

Autor

  • Marcos Paulo de Souza Miranda

    é promotor de Justiça em Minas Gerais coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais (Caocrim) e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos).

5 de fevereiro de 2022, 8h00

Realizada entre os dias 13 e 17 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo, a Semana de Arte Moderna foi organizada por um grupo de intelectuais e artistas ao ensejo da comemoração do centenário da independência do Brasil, com o objetivo de romper com o tradicionalismo cultural até então associado às correntes literárias e artísticas aqui vigentes.

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O movimento modernista assumiu a defesa de um novo ponto de vista estético e o compromisso com a independência cultural do país, contribuindo para a renovação das estruturas mentais e políticas da sociedade, razão pela qual é considerado um grande divisor de águas na evolução de nossa cultura.

O principal mérito da Semana de 1922 foi romper o conservadorismo vigente no cenário cultural da época, que desprezava os valores nativos e não reconhecia uma identidade genuinamente nacional.

A redefinição do modo de enxergar a cultura e a linguagem artística inauguradas pelo modernismo se articulou a um forte interesse pelas questões da nação, o que ganhou destaque a partir da década de 1930, quando os ideais de 1922 se difundiram e passaram a se incorporar ao sentimento e à vivência sociais, bem como na tomada de decisões políticas pelos governantes.

Com efeito, para além dos reflexos na literatura, na música, na pintura e outras áreas artísticas, o modernismo teve ainda o condão de despertar o interesse pela preservação dos bens integrantes do patrimônio cultural brasileiro enquanto portadores de referência à memória, identidade e ação dos diferentes grupos formadores da nossa gente.

Intelectuais como Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Manoel Bandeira perceberam a necessidade de voltar os olhos para a identificação e a valorização dos antigos feitos do povo brasileiro e de suas produções culturais materiais e imateriais, como alicerces imprescindíveis para a ancoragem de nossa trajetória civilizacional.

Foi em tal cenário que, em São Paulo, os velhos bandeirantes foram identificados pelo modernistas — em razão da força e destemor no desbravamento do território nacional — como o signo distintivo do povo paulista. Não por outra razão que as principais rodovias daquele estado foram batizadas com nomes dos antigos e bravos sertanistas, a exemplo de Fernão Dias, Anhanguera e Raposo Tavares.

Mas poucos sabem que foi em Minas Gerais que os modernistas encontraram o suporte maior para os fundamentos da defesa do patrimônio cultural brasileiro.

Vale assinalar que, já em 1919, Mário de Andrade viajou de São Paulo a Minas Gerais para, na cidade de Mariana (capital primaz do estado), travar contato com o poeta e antigo promotor de Justiça Alphonsus de Guimarães (1870-1921), cuja produção literária simbolista anunciava os fundamentos buscados para os novos tempos, constituindo verdadeira reação "contra a incultura e o atraso dos nossos principais poetas" [1].

Na sequência, no ano de 1924, dirigiram-se a Minas Gerais os modernistas Mário e Oswald de Andrade, Paulo Prado, Olívia Guedes, Tarsila do Amaral e Blaise Cendrars, sendo recebidos na capital mineira por Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava, Emílio Moura e outros do grupo modernista da provinciana Belo Horizonte.

Na ocasião, os modernistas paulistas fizeram uma excursão cultural pelas principais cidades históricas de Minas Gerais, a exemplo de Sabará, Ouro Preto, Congonhas do Campo, São João Del Rei e Tiradentes, registrando seus principais monumentos, conhecendo suas lendas e personagens.

Em tal cenário, as Minas do passado saltaram para dentro da poesia de Oswald e da pintura de Tarsila, o que constituiu verdadeira "redescoberta" e promoção do barroco mineiro, particularmente das obras de Antônio Francisco Lisboa, o mestre Aleijadinho, que encantaram os precursores paulistas.

As obras do genial escultor mulato e aleijado, nascido na velha Ouro Preto, fruto do relacionamento espúrio de um português e de uma negra [2], foram consideradas pelos intelectuais modernistas, por sua qualidade, técnica e inovação, como uma síntese da genuína produção cultural nacional, cuja força seria capaz de superar as mais duras provações.

Entretanto, no campo fático percebia-se que muitos dos bens culturais do país estavam se perdendo em razão do abandono e da indiferença da maior parte da população em relação a eles, bem como pela ausência de estruturas administrativas e previsões normativas que pudessem amparar a preservação das heranças deixadas por nossos avoengos.

Ante tal constatação, tomou-se a iniciativa da elaboração de um projeto de lei que pudesse embasar a adoção de medidas de proteção e preservação dos bens culturais brasileiros, sendo escolhido para o desempenho da alta missão o destacado jurista mineiro Jair Lins, amigo de diversos integrantes do movimento modernista e que também contava com a confiança de autoridades políticas e religiosas do país.

Bacharel pela Faculdade Livre de Direito de Minas Gerais, Jair Lins (1893-1973) carregava no sangue o amor pelos velhos monumentos do Estado e os conhecia de perto, eis que nasceu na velha cidade de Tiradentes e passou os primeiros anos de sua vida morando na imponente Ouro Preto, cidades onde seu pai — o serrano Edmundo Lins (que chegaria a ocupar a presidência do Supremo Tribunal Federal) — exercera a magistratura como juiz de Direito.

Alicerçado em robusta pesquisa doutrinária e subsídios buscados no direito comparado, o professor Jair Lins elaborou o "Esboço de anteprojecto de lei federal" sobre a proteção do patrimônio artístico, datado de 10 de julho de 1925 e vazado em 21 artigos [3].

A proposta, inspirada na legislação europeia, previa a catalogação [4] (não se falava ainda em tombamento) de bens móveis e imóveis de valor histórico ou artístico; excluía da proteção os bens de pessoas jurídicas de direito público externo; tratava da catalogação voluntária ou litigiosa; estabelecia o rito do processo de catalogação; previa a inscrição da catalogação em livros especiais; previa o direito de preferência do poder público para a aquisição de bens catalogados e cominava sanções; vedava a demolição ou intervenções nos bens catalogados, sem prévia autorização; estabelecia a obrigação do proprietário conservar a coisa catalogada e de comunicar ao poder público sobre a necessidade de obras de conservação, quando não pudesse com elas arcar; vedava a exportação de bens catalogados sem prévia autorização; vedava a construção no entorno imediato dos bens catalogados; enunciava a inalienabilidade e a imprescritibilidade dos bens públicos catalogados e previa a obrigatoriedade da criação de serviços de conservação dos bens culturais.

Apesar da excelência e completude da proposta formulada, não se tornou possível o seu avanço na seara do Congresso Nacional, uma vez que a então Constituição Federal não permitia restrições ao direito de propriedade, naquela quadra da história ainda considerado absoluto [5].

Entretanto, com o advento da Constituição de 1934, graças aos novos pensamentos iniciados no país a partir da Semana de Arte Moderna de 1922, foi reconhecida da função social da propriedade, bem como o dever do poder público tutelar adequadamente os bens culturais existentes em solo brasileiro, o que assentou os alicerces para o avanço da legislação brasileira em tal seara [6].

No ano de 1935, durante o Primeiro Congresso Brasileiro de Proteção à Natureza, ocorrido no Rio de Janeiro, foi idealizada a criação de um serviço técnico especial de monumentos nacionais. O então ministro da Educação, Gustavo Capanema (mineiro de Pitangui, seguidor do pensamento modernista e amigo de vários integrantes do movimento), foi quem tomou a iniciativa de um projeto de lei federal referente ao assunto, encarregando o escritor Mário de Andrade, então diretor do Departamento de Cultura do Município de São Paulo, da elaboração de um plano de criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan).

Na sequência, em 13 de janeiro de 1937, pela Lei nº 378, que tratava da estrutura do Ministério da Educação, Getúlio Vargas criou o Sphan, com o objetivo de promover no território nacional o tombamento, a conservação e a divulgação do patrimônio cultural do país. Para a direção do novel órgão de proteção foi escolhido o nome do modernista mineiro Rodrigo Melo Franco de Andrade (1898-1969).

O texto do projeto de lei sobre a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional que resultou na edição do Decreto-Lei nº 25/37, conquanto atribuído a Mário de Andrade e a Rodrigo de Melo Franco Andrade, carrega, em grande parte, dispositivos claramente extraídos do anteprojeto do professor Jair Lins, formulado em 1925, sob os influxos do então jovem movimento modernista.

Prestes a alcançar 85 anos de vigência, vale destacar que o Decreto-Lei nº 25/37 é, ainda nos dias de hoje, o diploma regente do tombamento de bens culturais em nosso país, sendo responsável pela proteção e preservação de enorme parcela do patrimônio cultural brasileiro [7].

Há de ser, também por isso, a razão da afirmação de alguns autores no sentido de que a Semana Modernista ainda não terminou [8].

Festejemos, pois, os cem anos de início da Semana de Arte Moderna de 1922, marco histórico do compromisso do povo brasileiro com a preservação de suas verdadeiras raízes.

 


[1] Leopoldo Comitti. Sobre uma visita: Alphonsus de Guimaraens e o Modernismo. Belo Horizonte: Revista do Centro de Estudos Portugueses. UFMG. 2002. p. 311-320.

[2] MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. O Aleijadinho revelado. Estudos históricos sobre Antônio Francisco Lisboa. Belo Horizonte: Fino Traço. 2014. p. 44.

[3] Revista Forense, Vol. 51. 1928. p. 5-15.

[4] Na legislação europeia a classificação equivale ao nosso tombamento, instituído em 1937.

[5] MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Evolução histórica da legislação protetiva do patrimônio cultural no Brasil. In: RODRIGUES, José Eduardo Ramos. MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Estudos de direito do patrimônio cultural. Belo Horizonte: Fórum. 2012. p. 203.

[6] MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Lei do tombamento comentada. Belo Horizonte: Del Rey, 2014. p. 11.

[7] MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Introdução ao Direito do Patrimônio Cultural Brasileiro. Belo Horizonte: 3i. 2021, p. 173.

[8] GONÇALVES, Marcos Augusto. 1922 – A semana que não terminou. São Paulo: Companhia das Letras. 2012.

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