Opinião

A política tributária do tabaco precisa ser repensada

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4 de fevereiro de 2022, 12h06

Em 23 de dezembro passado, o insigne Jorge Rachid publicou em "Tendências e Debates", na Folha de S. Paulo, importante artigo [1] sustentando que a política tributária do tabaco não pode retroceder, que o combate ao comércio ilícito não pode ficar em segundo plano e, ao final, sugeriu a atualização das alíquotas do IPI incidentes sobre cigarros no Brasil e do preço mínimo de venda no varejo, praticados há mais de cinco anos no valor de R$ 5 por maço, além da busca da ratificação e implementação do protocolo de combate nos países vizinhos.

O problema é antigo e gravíssimo, devendo ser continuamente debatido com responsabilidade e enfrentado com coragem. Medidas para reduzir o consumo de tabaco, o tráfego ilícito e promover a conscientização dos malefícios para a saúde e gastos com tratamento decorrente de doenças do tabagismo devem ser ampliadas e fortalecidas, como defende também o ilustre articulista. Um ponto, porém, a forma de combate ao tráfego ilícito, parece estar necessitando de debate mais aberto e, talvez, aprimoramentos.

O tema é quase um tabu, por envolver também a sensível área da saúde. Assim, com a delicadeza que o assunto exige e com objetivo de debater um encaminhamento mais eficiente para enfrentamento do problema, apresentamos uma mudança na estratégia de combate ao tráfego ilícito de tabaco, sustentada na realidade e na prática do dia a dia dos agentes envolvidos na repressão e no julgamento dos ilícitos decorrentes.

O Brasil está perdendo a guerra no combate ao tráfego ilícito de cigarros. Depois de quatro décadas, por volta de 40% do mercado nacional é suprido por cigarros contrabandeados, falsificados ou desencaminhados. Estima-se que as apreensões feitas pela repressão não passam de 10% do fluxo. As poucas apreensões resultam em milhares de processos administrativos e judiciais, repetitivos, que normalmente condenam somente figuras menores, sem conseguir afetar a criminalidade organizada e enraizada.

O insuficiente número de agentes da repressão, mesmo cumprindo o seu dever, não tem como realizar plenamente a atual estratégia de combate ao tráfico de cigarros. Com milhares de quilômetros de fronteiras abertas, o efetivo de pessoal e estrutura de repressão necessária para combater com eficiência esta marginalidade seria insustentável frente a tantas outras necessidades e urgências que se apresentam no país. Essa luta inglória acaba exigindo o trabalho de boa parte do efetivo de fiscalização de fronteiras, sem sucesso.

O contrabando de cigarros tem sido um bom negócio. Na década de 90 existiam poucas fábricas no país vizinho; hoje, estimam-se quase 200. A alta liquidez do produto, com venda certa e organizada no território nacional, atraem batalhões de malfeitores. O negócio é tão bom que já foram fechadas várias fabriquetas clandestinas de cigarros paraguaios escondidas em terras brasileiras [2]. Coisa surreal, o crime nacional concorrendo e fraudando o crime internacional.

A doença do contrabando (e falsificação) de cigarros se entranhou fortemente na sociedade. Veículos são roubados no Brasil, muitas vezes com violência e até morte, para serem entregues como pagamento de cigarro no país vizinho ou uso no tráfego ilícito. Jovens da longa e frágil região fronteiriça são cooptados para trabalhar no apoio ao crime. Uma tragédia social, motivada pelo contrabando de cigarros, está em andamento e precisa ser contida com urgência e coragem.

A mídia noticiou que a alta do dólar durante a pandemia resultou numa redução de quase 10% do contrabando de cigarros, porque o preço do cigarro ilegal passou de R$ 3,44, em 2019 para R$ 4,44, em 2020, muito próximo do mínimo do cigarro nacional (R$ 5) [3], indicando que, além do combate geral ao contrabando, uma pequena mudança no tratamento tributário (redução suficiente da alíquota de IPI e do preço mínimo), atrelada ao compromisso dos grandes fabricantes nacionais de ampliar a produção de cigarros populares, pode inviabilizar esse insidioso crime, resgatando a parte do mercado perdida para o crime (por volta de 40%), aumentando compensativamente a arrecadação, gerando milhares de postos de trabalho lícito no território nacional, diminuindo roubo de veículos, corrupção, violência e mortes decorrentes.

O argumento de que o aumento do preço mínimo e o IPI altíssimo (em torno de 70%) reduziram o consumo de cigarros nas últimas décadas precisa de um contraponto. A redução do tabagismo depende de mudança cultural. Tem crescido continuamente nas últimas décadas por conta da educação conscientizadora, difusão de informação esclarecedora, contrapropaganda agressiva, rejeição social e inclusive pela realidade cruel das doenças decorrentes do vício. Outros meios de descontração e lazer popularizados (jogos eletrônicos, internet, esportes e bebidas) têm também retirado espaço do vício do cigarro. A diferença de alguns centavos no maço de cigarros não é impeditiva do vício.

Esse quadro permite concluir, com todo respeito aos defensores de outras formas de enfrentamento do problema, não ser certo aceitar essa volumosa tragédia social de crimes, violência e mortes desencadeada pelo contrabando de cigarros (e falsificação), decorrentes de uma estratégia (preço mínimo e alíquota de IPI elevados dos cigarros nacionais) que não se mostra indispensável ao combate ao tabagismo.

Por fim, deve ficar bem claro que não se defende qualquer descuido com a saúde pública e com o combate ao terrível vício do tabaco, que deve ser incrementado pelas vias da formação educacional e informação, mas, sim, apenas a substituição do cigarro contrabandeado por produto nacional legal. A sociedade brasileira precisa ter coragem e dar um tratamento adequado para a cura de um crime que está vencendo, se alastrando e causando danos graves ao país e sua população. "Diante de uma larga frente de batalha, procure o ponto mais fraco e, ali, ataque com sua maior força" (Sun Tzu).

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