Opinião

Precisamos rejeitar arbitragens supremas

Autor

1 de fevereiro de 2022, 7h11

Aos leitores que enxergam a arbitragem como um “novo mundo” completamente autônomo do Direito positivo nacional, e que não enxergam a intrincada relação entre arbitragem e tribunais superiores, em especial, a jurisdição constitucional, este texto é um convite à reflexão e ao debate.

Fazemos o convite porque há muito tempo defendemos a necessidade de compreendermos corretamente as especificidades da autonomia científico-dogmática da jurisdição constitucional, para que ela possa a fazer jus às grandes promessas do constitucionalismo dos séculos 17 e 18, reinterpretadas à luz das sociedades contemporâneas hipercomplexas [1].

Nessa ordem de ideias, precisamos travar uma discussão teoricamente madura acerca da influência da jurisdição constitucional em relação à arbitragem. Dito em poucas e melhores palavras, a arbitragem é vista por segmentos teóricos quase como um Direito paralelo ao Direito, um instituto — importantíssimo, diga-se de passagem — que permite a aplicação, em território nacional, de quaisquer “Direitos” do mundo, mas que ainda resiste a uma assimilação dogmática pelo próprio Direito nacional e a uma filtragem a partir da Constituição.

Nosso intuito, com o presente ensaio, é propor uma forma de proteção da autonomia da arbitragem, por intermédio da jurisdição constitucional. Fazemos essa assertiva porque se a natureza privada da arbitragem for deteriorada numa visão de uma blindagem em relação à jurisdição constitucional, ao final, a própria arbitragem será fragilizada e ficará impossibilitada de se espraiar para outros temas, em especial, os relacionados ao Direito Público ou temas privados que envolvam participação de entes públicos.

Portanto, convidamos o público leitor a suspender preconceitos dogmáticos e olhar os itens subsequentes como uma análise que prestigia a arbitragem como instituto fundamental ao Direito brasileiro, por consequência, não pode ser alheio ou indiferente à jurisdição constitucional brasileira.

A não compatibilização da arbitragem com a jurisdição constitucional é, em última instância, a incompatibilização com a própria democracia constitucional brasileira.

Não raras vezes veiculam-se em procedimentos arbitrais causas de tamanha complexidade que podem impactar em setores econômicos e sociais com maior intensidade que demandas travadas na própria jurisdição estatal [2].

O árbitro — juiz de fato e de Direito para o procedimento — encontra-se igualmente debaixo da jurisdição constitucional. A autonomia arbitral é sempre relativa, porque a ordem normativa maior emana do topo, da Constituição Federal. Esse não é um fenômeno recente. A tão chamada constitucionalização do Direito opera, essencialmente, em dois níveis: 1) na elaboração de novas leis adequadas ao novo contexto constitucional; ou 2) na reinterpretação, pela jurisdição constitucional, do ordenamento jurídico existente.

A nova realidade constitucional provocou uma mudança importantíssima de paradigma em termos de teoria do Direito; a orientação das normas em termos de “valores” a serem atingidos produz aquilo que em termos weberianos denomina-se a materialização ou substanciação do Direito [3].

Na análise que Gunther Teubner faz dos paradigmas formal, substancial e reflexivo do Direito, a partir do conceito expandido de racionalidade proposto por Jürgen Habermas — que, por sua vez, fê-lo a partir de discordâncias com o reducionismo weberiano de racionalidade a certos atributos internos do Direito[4] —, demonstra que há, no Direito “substantivo”, uma soberania do propósito em detrimento da concepção formal, tradicionalmente concebida em termos de delimitação das esferas autônomas de atuação dos indivíduos e justificadas pela manutenção do individualismo e da economia de mercado.

Em termos de racionalidade interna — uma das três dimensões propostas por Habermas, ao lado da sistêmica e da normativa — o paradigma formal compreende o Direito como racional na medida em que é “estruturado de acordo com padrões de conceitualidade analítica, rigor dedutivo e raciocínio orientado por regras” [5].

Segundo o mesmo critério, no paradigma substantivo o Direito formal é “suplementado” por normas que buscam regular diretamente o comportamento social de forma normativamente prescritiva. É, em termos de racionalidade normativa — aquela preocupada com as justificativas do Direito —, a mudança da autonomia para a regulação [6].

Teubner avança na diferenciação dos paradigmas aplicando-os a um exemplo de Direito Contratual: se determinada obrigação contratual é controvertida, para o paradigma formal pouco importam os resultados sociais dessa disputa. O Direito está preocupado com o preenchimento de certas formalidades, tais como a convergência das vontades (meeting of the minds) ou, para um exemplo brasileiro, dos chamados elementos de existência e requisitos de validade dos negócios jurídicos (CC 104 a 114) [7].

No paradigma substancial, o Direito preocupa-se com o resultado social da querela e permite a intervenção direta do Estado, seja pela via legislativa ou judicial. No Direito brasileiro, podemos tomar os exemplos da função social (CC 421) ou revisão judicial dos contratos.

Partindo das ideias expostas acima devemos agora considerar a relação das ações constitucionais com a arbitragem, tendo em vista que essa não se submete ao regime dos recursos cíveis, dispondo, com meio de impugnação interno, apenas do pedido de esclarecimentos, e externo, da ação anulatória fundada nas hipóteses taxativas da LArb 32, que refletem aspectos formais.

Vale desde logo refutar um contra-argumento possível: o de que a filtragem constitucional poderia ser feita pela via do recurso extraordinário, em sede de ação anulatória. Tal alternativa não nos parece viável por três razões, essencialmente: 1) vincular o filtro constitucional à mais alta instância recursal do país e, com isso, carregar, simbolicamente a arbitragem do mesmo estigma processual da morosidade; 2) pela via do recurso extraordinário, a matéria toda é submetida à revisão e não somente aspectos específicos dela, o que representa uma perda para a autonomia arbitral; e 3) admitir exclusivamente o recurso extraordinário forçaria nosso sistema judicial a conviver com arbitragens — inconstitucionais desde sua instauração — por anos e anos gerando risco sistêmico de desregulação.

Nessa perspectiva, nossa proposta é a de que o controle feito pela jurisdição constitucional recaia sobre dois objetos: a) o produto decisório — os árbitros são materialmente vinculados aos provimentos judiciais vinculantes exarados pelo STF; e b) a arbitrabilidade, objetiva ou subjetiva, da matéria.

Com relação ao ponto a), fazemos aqui a ressalva expressa de que, após meditarmos melhor sobre o assunto e nos envolvermos em frutuosos debates acadêmicos, entendemos por bem rever a posição externada até a presente edição de nosso “Processo Constitucional Brasileiro” (5ª edição, 2021). Fazemos essa observação porque não podemos escrever a respeito do dever de accountability sem realizarmos o nosso próprio. Nosso novo entendimento se sustenta essencialmente no redimensionamento dado pela jurisdição constitucional à reclamação e à arguição de descumprimento de preceito fundamental.

Entendemos que o STF pode agir, pela via da reclamação constitucional — que é a via processual adequada para preservação da competência e autoridade das decisões do tribunal (CF 102, I, “l”, e 103-A, §3º) — quando, por exemplo, o tribunal arbitral se recusar a aplicar determinada súmula vinculante que determinaria outro resultado ao procedimento. Exemplo ilustrativo nesse sentido, por exemplo, seria a violação à Súmula Vinculante nº 10 a ocorrer quando a arbitrabilidade do tema for inconstitucional por contrariar Direito positivo brasileiro.

Mas não é só. Em nossa perspectiva, a reclamação serve também de filtro à arbitrabilidade dos sujeitos da arbitragem e de seu objeto, impedindo que sejam instaurados procedimentos em que figurem partes ilegítimas — ou ilegitimamente representadas — ou que players utilizem a arbitragem para obter pronunciamentos ilícitos ou inconstitucionais, de modo a desvirtuar o próprio devido processo legal.

Pensemos na hipótese de determinado indivíduo instaurar uma arbitragem pretendendo obter uma indenização por danos que, segundo o Direito brasileiro, sequer são indenizáveis, ou que importem no cumprimento e garantias que imponham determinação de prisão do depositário infiel, contrariando o entendimento do STF nos HC 87.585 e REs 466.343 e 349.703.

O prejudicado não deve ser obrigado a aguardar a instauração e eventual desfecho desfavorável do procedimento arbitral para poder recorrer à jurisdição constitucional. Nossa sugestão é a de que a parte que se saiba ameaçada de ver contra ela instaurado procedimento arbitral com objeto ilícito ou inconstitucional possa ajuizar uma reclamação preventiva [8] através da qual o STF possa determinar o trancamento do procedimento ou a realização, pelo tribunal arbitral, de controle de constitucionalidade, certo de que o resultado deste poderá ser objeto de nova reclamação, caso venha a contrariar provimentos judiciais vinculantes do STF.

Outra possibilidade de controle constitucional da arbitragem é a utilização da ADPF para impugnação de provimentos arbitrais inconstitucionais. É certo que a legitimidade ativa para as ações constitucionais é restrita (CF 103).

Com as propostas acima, nossa intenção não é outra que não, a um só tempo, preservar a autoridade da jurisdição constitucional e a autonomia da arbitragem que, sem uma submissão às normas constitucionais, perde completamente sua legitimidade e abre um perigoso flanco para utilização instrumental por players mal-intencionados [9].

Há um equívoco na premissa de que a arbitragem não se submete prima facie à jurisdição constitucional. O erro é a possibilidade de se degenerar a arbitragem como instrumento para veicular pretensões que sabidamente seriam rechaçadas na jurisdição estatal, tornando-a uma espécie de locus em que se aplica um Direito paralelo ao Direito. Para homenagearmos Stolleis, a arbitragem não pode ser um modelo de Direito para produzir um não Direito. Pior: a arbitragem torna-se, nesse cenário, o local ideal para que particulares fraudem direitos fundamentais sob o signo da estabilidade e legitimidade da jurisdição constitucional.

Desde um ponto de vista luhmanniano isso pode ser concebido como uma espécie de corrupção sistêmica, já que o código do Direito (lícito/ilícito, constitucional/inconstitucional) é completamente substituído por uma espécie de Direito “paralelo”, sem que nenhum agente institucional possa agir contra essa desdiferenciação funcional permitida pela arbitragem [10].

Já a partir da perspectiva delineada em nosso “Direito Constitucional Pós-Moderno”, estaríamos diante da degeneração do Direito, do rapto da ordem pelo voluntarismo privatista, alheio à Constituição Federal.

Em ultima análise, permitir-se-ia a existência de situações esdrúxulas em que árbitros — caso não vinculados à jurisdição constitucional — possam dar última palavra em matéria constitucional, o que viola frontalmente a CF 102, caput.

Como se sabe, na visão de Niklas Luhmann o caráter normativo do Direito significa que as normas jurídicas são expectativas de comportamento estabilizadas contrafactualmente (kontrafaktisch stabilisierte Verhaltenserwartungen). Vale dizer, a validade normativa independe de sua observância [11] e os indivíduos continuarão a compreender as normas jurídicas como válidas mesmo que observem descumprimentos a elas.

A filtragem constitucional por nós proposta serve, ainda, para aumentar o escopo dos objetos arbitráveis e o leque de indivíduos sujeitos à arbitragem, inclusive atores públicos, já que as condições de legitimidade serão preenchidas pela submissão do procedimento ao crivo da jurisdição constitucional.

Ao final, nossa proposta pode ser sintetizada do seguinte modo: realizar a adequada sujeição da arbitragem à jurisdição constitucional é condição de legitimidade para sua própria expansão. Nosso intuito não é enfraquecer a legitimidade da arbitragem, pelo contrário, objetivamos evitar sua degeneração ao ser instrumentalizada como mecanismo para fraudar o Direito positivo brasileiro.

A dogmática do Direito vem, no mundo inteiro, discutindo as potencialidades do uso de precedentes estrangeiros nas jurisdições nacionais. É uma consequência inevitável da crescente dependência dos Estados nacionais em relação a problemas que afetam o mundo como um todo, ou, para nos atermos à terminologia luhmanniana, ao “sistema político da sociedade mundial” (politischen System der Weltgesellschaft[12].

Não podemos, escorados numa simplória compreensão de autonomia arbitral, ater-nos a um debate fantasioso acerca da submissão ao não da arbitragem à jurisdição constitucional. Precisamos aceitar de uma vez por todas a normatividade da Constituição, com todas as suas implicações, o que significa rejeitar arbitragens supremas.

 


[1] Georges Abboud. Processo Constitucional Brasileiro, 5ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, nº 2.5.2, pp. 483 e ss; Georges Abboud.

[2] Sobre o tema, conferir o percuciente livro de Rafael Valim e Walfrido Warde. Abutres, Ingênuos e a Ameaça da Destruição da Grande Companhia, Editora Contracorrente, 2021, passim.

[3] Cf. Georges Abboud. Direito Constitucional Pós-Moderno, 1ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, nº 3.4, pp. 566 e ss.

[4] Cf. Jürgen Habermas. Überlegungen zum evolutionären Stellenwert des modernen Rechts, in: Zur Rekonstruktion des Historischen Materialismus, 7ª edição, Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 2001.

[5] Cf. Gunther Teubner. Substantive and reflexive elements in modern law“, in: Law & Society Review, v. 17, nº 2, 1983, pp. 239-286 (p. 253).

[6] Gunther Teubner, op. cit., pp. 251-254.

[7] Ibidem, pp. 255-256.

[8] A modalidade preventiva da jurisdição constitucional já defendemos desde a última edição do nosso: Processo Constitucional Brasileiro, 5ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, nº 4.11.7.5.3, pp. 1.054 e ss.

[9] Acerca do risco, conferir: Rafael Valim e Walfrido Warde. Abutres, Ingênuos, cit., passim.

[10] Cf. Marcelo Neves, Constituição e Direito na modernidade periférica: Uma abordagem teórica e uma interpretação do caso brasileiro. 1ª edição, São Paulo: WMF Martins Fontes, trad. Antônio Luz Costa, 2018, passim.

[11] Cf. Niklas Luhmann, Rechtssoziologie, 3ª edição, Opladen: Westdeutscher Verlag, 1987, p. 43.

[12] Niklas Luhmann, Die Politik der Gesellschaft. 1ª edição, Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 2002, p. 221. Cf. também Niklas Luhmann, Die Weltgesellschaft, in: Soziologische Aufklärung 2: Aufsätze zur Theorie der Gesellschaft, 4ª edição, Springer Fachmedien Wiesbaden GmbH, 1991, pp. 51 e ss; Georges Abboud, Processo Constitucional Brasileiro, cit., nº 6.11, pp. 1.274 e ss.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!