Diário de Classe

O diálogo entre as instituições e a manutenção da democracia

Autor

  • Jesus Alexsandro Alves Rosa

    é doutorando em Direito pela Unesa bacharel em Ciências Militares (Aman) e em Direito (Unesa) mestre em Administração (UFF) professor de Direito Tributário do Toth Concursos e membro do Dasein.

31 de dezembro de 2022, 10h54

"quando a política penetra no recinto dos tribunais, a justiça se retira por alguma porta"
François Pierre Guillaume Guizot [1]

 

Será que a assertiva de François Pierre é cabível em um momento político conturbado, em que a sociedade brasileira dividida clama por pacificação? Será que ilegalidades podem ser sanadas com outras ilegalidades? Será que impasses acerca da legitimidade de cada esfera de poder do Estado devem ser sanadas de forma singular pela esfera judicial? Será que um novo modelo que favorecesse os diálogos institucionais não proporcionariam uma resposta mais democrática mais adequada? Por último, será que a liberdade de expressão é absoluta?

Para buscar respostas aos questionamentos propostos, faz-se necessário entender que as Instituições podem ser consideradas como mecanismos que limitam ou estimulam costumes e condutas sociais. Dessa forma, as instituições são "determinações criadas pelo homem que estruturam as interações políticas, econômicas e sociais" [2]. Decorre, portanto, que as instituições democráticas têm sua existência vinculada a garantir o próprio exercício da democracia, como, por exemplo os Poderes Constitucionais, os partidos políticos, as Forças Armadas, as leis e as normas jurídicas dentre outras.

O momento político vivido atualmente pelo Brasil indica a necessidade de se retomar o tema dos diálogos institucionais. As tensões provocadas por entendimentos diversos de dispositivos constitucionais, por vezes, colocam os Poderes instituídos e dimensões da sociedade civil organizada em polos antagônicos que podem aparentar a subverter a ordem constitucional. As Instituições podem divergir, e até devem, contudo, o objetivo deve ser o aperfeiçoamento do Estado Democrático de Direito, pelas lentes constitucionais. Diante da complexidade intrínseca de casos controvertidos, por exemplo, estabelecer respostas institucionais elaboradas por meio da conversa contínua entre os Poderes, pode conferir maior dinamismo para resoluções em todas as possíveis instâncias, evitando assim a concentração de autoridade e a aparência de abuso de poder.

"Tal solução está respaldada nas preocupações atinentes à legitimação das atividades realizadas pelos Poderes. O conjunto de fatos históricos arbitrários que marcaram o século XX conformam sinalizadores fundamentais para indicar que quaisquer decisões proferidas por órgãos públicos precisam de algum respaldo democrático. A edificação de um Estado Democrático de Direito realiza-se 'tijolo por tijolo', em uma contínua construção, numa orquestração social que não tem em seu horizonte um final pré-definido, mas, possui como cerne o necessário intercâmbio entre os aspectos potenciais e as limitações de cada ramo do governo.

A proposta por diálogos tem seu início teórico na separação das atividades pertinentes a cada ramo do Poder. Sob influência dessa ideia, a cisão clássica entre direito e política foi articulada da seguinte maneira: a esfera política seria determinada pela soberania popular e pelo princípio majoritário, enquanto a esfera jurídica seria determinada pela ideia de rule of law (primado da lei) e pela observância aos direitos fundamentais" [3].

A tese dos diálogos institucionais de origem canadense, em suma, retira a supremacia judicial na análise de decisão de inconstitucionalidade, abrindo espaço para que "possa ser revista ou superada pelos demais poderes políticos do Estado". Extrapolando a mencionada tese, por que não construir de maneira compartilhada entendimentos sobre casos complexos?

"Diálogos institucionais são mecanismos que implicam na interação e cooperação de duas ou mais instituições pertencentes a poderes estatais distintos para fins de resolução de controvérsias legais e provedoria de direitos e garantias fundamentais sem que haja a predefinição da supremacia da atividade decisória de uma dessas instituições em face da outra" [4].

Para materializar um atual problema da sociedade brasileira, contextualizando assim, os problemas propostos nesse artigo, pode-se apresentar o entendimento do direito à liberdade de expressão, quem tem causado tanta discussão, sobretudo na seara das redes sociais.

As redes sociais tiveram papel fundamental no pleito em comento. As web mídias como YouTube, Facebook, WhatsApp e Instagram são exemplos do que se tem chamado Quinto Poder representando a quebra da hegemonia da comunicação representada pela velha mídia. A fluidez e rapidez da propagação das informações constitui um meio de maior democratização de divulgação de ideias antes não patrocinadas pelos meios tradicionais de mídia. Estas redes sociais são capazes de influenciar caminhos, decisões, políticas públicas, enfim, a vida de um país. As "redes sociais da internet, não são apenas ferramentas de descrição, (…). Quando alguém atua por meio de uma dessas redes, não está simplesmente reportando, mas também inventando, articulando, mudando. Isto, aos poucos, altera também a maneira de se fazer política e as formas de participação social" (SAKAMOTO, 2013, p.95).

As redes sociais viraram um verdadeiro campo de batalha entre posicionamentos e ideologias políticas, por um lado, de forma positiva, estimulando a democracia e o debate, contudo, com o lado negativo da divulgação de notícias falsas, aniquilamento de reputações (cancelamentos) e fomentação do ódio.

Seria a liberdade de expressão absoluta? A liberdade de expressão compreende liberdades de manifestação do pensamento, imprensa e reunião, por exemplo, e sendo assim compreende um direito complexo de entendimento controvertido. Lenio Streck leciona que para sua compreensão deve se levar em conta o caso concreto, pois trata-se de uma questão "hermenêutica e, por isso, profundamente política. Não podemos correr o risco de interpretarmos o Direito kantianamente ingênuo. Como se a aplicação do Direito e mesmo da moral não devesse levar a sério a historicidade, os contextos de aplicação, as controvérsias interpretativas, os elementos do caso concreto".

Para buscar estabelecer possíveis limites ao exercício da liberdade de expressão pode-se citar Karl Popper e Rosane Leal da Silva e Luiza Quadros da Silveira Bolzan.

O filósofo Karl Popper definiu o "paradoxo da tolerância" em 1945 no volume 1 do livro The Open Society and Its Enemies:

"A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles. —Nessa formulação, não insinuo, por exemplo, que devamos sempre suprimir a expressão de filosofias intolerantes; desde que possamos combatê-las com argumentos racionais e mantê-las em xeque frente à opinião pública, suprimi-las seria, certamente, imprudente. Mas devemos nos reservar o direito de suprimi-las, se necessário, mesmo que pela força; pode ser que eles não estejam preparados para nos encontrar nos níveis dos argumentos racionais, ao começar por criticar todos os argumentos e proibindo seus seguidores de ouvir argumentos racionais, porque são enganadores, e ensiná-los a responder aos argumentos com punhos ou pistolas. Devemos nos, então, reservar, em nome da tolerância, o direito de não tolerar o intolerante. Devemos exigir que qualquer movimento que pregue a intolerância fique fora da lei e que qualquer incitação à intolerância e à perseguição seja considerada criminosa, da mesma forma que no caso de incitação ao homicídio, sequestro ou tráfico de escravos".

Rosane Leal da Silva e Luiza Quadros da Silveira Bolzan (2012) ao descreverem que:

[…] o discurso de ódio se configura como tal por ultrapassar o limite do direito à liberdade de expressão, incitando a violência, desqualificando a pessoa que não detém as mesmas características ou que não comunga das mesmas ideias, e ao eleger o destinatário como “inimigo comum” incita a violência e seu extermínio, o que fere frontalmente o valor que serve de sustentáculo para o Estado democrático de direito, qual seja, a dignidade da pessoa humana […]

Poucos apontamentos indicam que se tratar a liberdade de expressão como um direito absoluto pode conduzir a uma subversão da ordem, mutando um direito fundamental pilar do exercício democrático em um instrumento de legitimação de regimes autoritários.

O divórcio de JULIO CÉSAR da sua segunda mulher, Pompeia, imortalizou uma frase que se transformou num ditado popular por todos conhecido: "A mulher de César não basta ser honesta, é preciso parecer honesta". De igual forma, não basta se afirmar que não existem indicativos de uma fascismo ou de juristocracia — tem de se demonstrar que tais indicativos não condizem com a realidade.

A construção dos entendimentos epistemológicos nos debates doutrinários poderia em certa medida ser também transportada para o campo das instituições democráticas através dos diálogos institucionais. Desta forma, impasses acerca da legitimidade de cada esfera de poder do Estado não necessitaria ser sanada de forma singular pela esfera judicial, seria sim, resolvido de forma compartilhada. A lente constitucional somada ao compartilhamento na construção das respostas necessárias a pacificação social poderia ser um instrumento de conciliação da sociedade, pois, minimamente, mesmo se mantendo as divergências nos entendimentos, o diálogo traria a percepção por parte da SOC, sociedade civil organizada, em seus diversos posicionamentos, de sua participação, ou de seus representantes políticos no processo, fato que reforçaria o Estado Democrático de Direito sem ferir a autonomia dos poderes potencializando a autocontenção e não a ferindo.

Retomando François Pierre Guillaume Guizot, e sua assertiva mencionada, "quando a política penetra no recinto dos tribunais, a justiça se retira por alguma porta", deve ser entendida com ponderação. O Poder Judiciário é o fiel garantidor da ordem constitucional, e tal ordem por vezes é comprometida com questões de mérito político. Não bastaria, portanto, o Judiciário alegar ser uma questão de natureza legislativa, e, mantendo-se inerte mesmo quando provocado, permitir o descumprimento de mandamentos constitucionais. Nesse sentido, distinguir ativismo judicial de judicialização política cresce de importância.

Enquanto os eminentes ministros do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes encaram como necessário o ativismo judicial, o professor Lenio adverte para a possibilidade do enfraquecimento da autonomia do direito quando do seu uso excessivo, como pode-se observar respectivamente nas citações abaixo:

"A ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do poder judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois poderes. A postura ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem: (i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao poder público, notadamente em matéria de políticas públicas" (BARROSO, 2011, p. 64) [5].

No Brasil, a partir do fortalecimento do Poder Judiciário e da jurisdição constitucional pela Constituição de 1988, principalmente pelos complexos mecanismos de controle de constitucionalidade e pelo vigor dos efeitos de suas decisões, em especial os efeitos erga omnes e vinculantes, somados à inércia dos poderes políticos em efetivar totalmente as normas constitucionais, vem permitindo que novas técnicas interpretativas ampliem a atuação jurisdicional em assuntos tradicionalmente de alçadas dos Poderes Legislativo e Executivo. Principalmente, a possibilidade do Supremo Tribunal Federal em conceder interpretações conforme a Constituição, declarações de nulidade sem redução de texto, e, ainda, mais recentemente, a partir da edição da Emenda Constitucional nº 45/04, a autorização constitucional para editar, de ofício, Súmulas Vinculantes não só no tocante à vigência e eficácia do ordenamento jurídico, mas também em relação à sua interpretação, acabaram por permitir, não raras vezes, a transformação da Corte Suprema em verdadeiro legislador positivo, completando e especificando princípios e conceitos indeterminados do texto constitucional; ou, ainda, moldando sua interpretação com elevado grau de subjetivismo (MORAES, 2012, p. 1034) [6].

Percebe-se, assim, uma proliferação de princípios, circunstância que pode acarretar o enfraquecimento da autonomia do direito (e da força normativa da Constituição), na medida em que parcela considerável (desses princípios) é transformada em discursos com pretensões de correção e, no limite, como no exemplo da "afetividade", um álibi para decisões que ultrapassam os próprios limites semânticos do texto constitucional. Assim, está-se diante de um fenômeno que pode ser chamado de "panprincipiologismo", caminho perigoso para um retorno à "completude" que caracterizou o velho positivismo novecentista, mas que adentrou ao século XX: na "ausência" de "leis apropriadas" (a aferição desse nível de adequação é feita, evidentemente, pelo protagonismo judicial), o intérprete "deve" lançar mão dessa principiologia, sendo que, na falta de um "princípio" aplicável, o próprio intérprete pode criá-lo (STRECK, 2011, p. 221) [7].

Por outro lado, a judicialização da política é necessária a Estados que se valem de constituições normativas, podendo ser positiva ou negativa dado que conforme leciona o professor Streck, "a questão da judicialização (da política), portanto, está ligada ao funcionamento (in)adequado das instituições no esquadro institucional traçado pela Constituição" [8].

Por fim, e por todo o exposto, resta demonstrado que a assertiva François Pierre Guillaume Guizot, bem como o direito à liberdade de expressão não possuem dimensões absolutas. Os diálogos institucionais, quando permeados por uma mínima base interpretativa compartilhável [9], podem pacificar conflitos sociais e políticos, preservando e mantendo o Estado Democrático de Direito.

 


[1] François Pierre Guillaume Guizot foi um político e historiografo francês, liberal-conservador. Ocupou o cargo de primeiro-ministro da França, entre 19 de Setembro de 1847 a 23 de Fevereiro de 1848.

[2] NORTH, Douglass. Institutions. Journal of Economic Perspectives, v. 5, nº 1, winter, 1991.

[3] Clève , Clèmerson Merlin e Lorenzetto, Bruno Meneses. Diálogos institucionais: estrutura e legitimidade. Revista de Investigações Constitucionais [online]. 2015, v. 2, nº 3 [Acessado 29 Dezembro 2022], pp. 183-206. Disponível em: https://doi.org/10.5380/rinc.v2i3.44534. ISSN 2359-5639 https://doi.org/10.5380/rinc.v2i3.44534.

[4] Junior, Etéocles Brito Mendonça Dias, Soberania Parlamentar, Judicial Review e Diálogos, Institucionais: do isolamento decisionista à atividade colaborativa entre os poderes na aplicação constitucional /Etéocles Brito Mendonça Dias Junior; orientador: Prof. José Ribas Vieira. – Rio de Janeiro: PUC; Departamento de Direito, 2012.

[5] BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 2011.

[6] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 34ª ed., São Paulo: Atlas, 2018.

[7] STRECK, L. L. O Panprincipiologismo e a "Refundação Positivista" In: COUTINHO, J. N. de M.; FRAGALE FILHO, R.; LOBÃO, R. (Orgs.).Constituição & Ativismo Judicial: limites e possibilidades da norma constitucional e da decisão judicial. Rio de Janeiro/RJ: Lumen Juris, 2011, p.221-242.

[8] STRECK, L. L. (2016). Entre o ativismo e a judicialização da política: a difícil concretização do direito fundamental a uma decisão judicial constitucionalmente adequada. Espaço Jurídico Journal of Law [EJJL], 17(3), 721–732. https://doi.org/10.18593/ejjl.v17i3.12206

[9] Os diálogos institucionais são o remédio para o ativismo judicial? 19 de maio de 2018, 8h00, Por Clarissa Tassinari e Ziel Ferreira Lopes.

Autores

  • é doutorando em Direito pela Unesa, bacharel em ciências militares (Aman) e em Direito (Unesa), mestre em administração, coordenador dos cursos de gestão da Estácio, professor da Aman, mediador do Cederj, professor de Direito Tributário, economia e ciências políticas da Estácio e membro do Dasein.

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