Opinião

Tribunais de Contas e os particulares que lesam a integridade do erário

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29 de dezembro de 2022, 11h36

A missão constitucional de Tribunais de Contas de proteger bens jurídicos públicos tutelados pelo Controle Externo alcança invariavelmente particulares envolvidos em ações e omissões que lesam a integridade do erário

A doutrina tem refletido sobre a competência do TCU para julgar as contas de pessoa física ou jurídica de direito privado que causarem dano ao erário, independentemente da participação de servidor, empregado ou agente público no contexto do fato ilícito que ocasionou o resultado lesivo ao patrimônio público [1].

A doutrina critica a solução jurisprudencial cristalizada no Acórdão TCU-Plenário nº 312/2019 [2], alicerçando-se no argumento de que referida competência decorreria de "revolução jurisprudencial", consolidada nesse Acórdão, que revelaria o curso de autoexpansão da jurisdição dessa Instituição Superior de Auditoria (SAI) [3] não agasalhada pelo modelo brasileiro, sujeitando o TCU à crítica de que estaria abandonando o papel que lhe atribuem a Constituição e as leis. 

Ciência é diálogo argumentativo. Entende-se fundamental reavivar os fundamentos jurídicos do referido Acórdão, com vistas a demonstrar que a decisão de controle externo reflete plena consonância com a Constituição Federal, sobremodo quando destacados os fundamentos jurídicos que deram alicerce ao entendimento do tribunal, considerando o sentido e alcance dos bens jurídicos tutelados pelo artigo 70, parágrafo único e artigo 71, inciso II, da Constituição. Por outro lado, é necessário reafirmar a distinção entre ativismo e proatividade.

Os fundamentos que dão lastro ao aludido Acórdão decorrem de interpretação lógica, sistemática, histórica e teleológica do parágrafo único do artigo 70, c/c 71, inciso II da CF, e correlata base normativa infraconstitucional e infralegal, que disciplinam o exercício das competências outorgadas ao TCU. O primeiro dispositivo constitucional foca o dever de prestar contas. O segundo estende-se à competência para julgar contas.

Dentro de um processo sistemático e essencialmente dialógico, a partir de múltiplas e divergentes visões, chegou-se à conclusão de que compete ao TCU julgar contas de pessoas físicas ou jurídicas de direito privado que causarem dano ao erário, independentemente da coparticipação de agente público, desde que as ações do particular contrárias ao interesse público derivem de ato ou contrato administrativo sujeitos ao controle externo.

Esse último condicionante é deveras essencial para a conformação da competência, ora analisada. Em outros termos, só é cabível a instauração de tomada de contas pelo Tribunal contra o particular que lesa o erário, quando resta evidenciada a existência de um vínculo jurídico "entre o agente privado e a Administração que denote ou derive de atos de gestão de coisa pública".

Da literalidade do inciso II do artigo 71 da Constituição, conforme razão de decidir do julgado, extraem-se duas normas jurídicas. A primeira, no sentido de que compete ao TCU julgar as contas daqueles que têm o dever de prestar contas (artigo 70, parágrafo único da CF). A segunda, no sentido de que compete ao TCU julgar "as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público", os quais podem não estar sujeitos necessariamente à obrigação constitucional de prestar contas (de que trata o artigo 70), mas que não estão absolutamente imunes ao julgamento de contas, de que trata a parte final do inciso II do artigo 71 [4] Contas de "administradores e demais responsáveis" é expressão constitucional que lastreia ampla submissão de atores públicos e privados à "jurisdição de controle externo", o que está reproduzido, registre-se, no artigo 5º da LOTCU.

Intercambiando a discussão sobre dever prestar contas e competência para julgar contas com a forma atual de prestar contas, dentro do contexto de novas tecnologias, expectativa de controle e a partir de uma interpretação progressiva, importa registrar que a análise de contas a serem efetivamente julgadas se dá à luz de uma relação entre custo e benefício do controle.

Aliás, sobre o alcance do termo "gestão da coisa pública", relevante anotar que o artigo 209, §6º do RITCU já preconiza que a responsabilidade do terceiro será imputada pelo Tribunal quando derivar "do cometimento de irregularidade que não se limite ao simples descumprimento de obrigações contratuais ou ao não pagamento de títulos de crédito" (inciso I) ou "da irregularidade no recebimento de benefício indevido ou pagamento superfaturado" (inciso II).

Parece-nos que o caminho interpretativo percorrido pelo TCU para chegar à essa exegese se alinha à máxima proteção dos bens jurídicos tutelados pelos Tribunais de Contas, do que resulta necessário concluir que eventual interpretação restritiva do inciso II do artigo 71 da CRFB/88 não manteria aderência ao sistema constitucional de defesa do patrimônio público, razão pela qual não se vislumbra a ocorrência de ativismo do controle, mas de exercício regular de competência institucional da Corte, à luz do quadro normativo que demarca suas competências, em sede de Controle Externo.

A Constituição desautoriza qualquer interpretação da qual resulte uma blindagem de pessoas físicas e jurídicas, mesmo que não integradas ao aparelho e organização do Estado, mas que assumem deveres e obrigações em relações jurídico-administrativas, em cujo quadro possa advir a produção de dano ao erário. Seria uma verdadeira capitis diminutio para o sistema de responsabilização em controle externo, cujo arcabouço vem inscrito na Lei Fundamental.  

Essa conclusão ganha reforço, quando se leva em conta que, atualmente, diante do volume de demandas judiciais, a tutela do patrimônio público tem exigido uma atuação tempestiva, preventiva, pedagógica e proativa dos Tribunais de Contas, sem que isso possa ser interpretado como mitigação do sistema de controle jurisdicional de legalidade, via regime de jurisdição unitária, adotado pelo Brasil, que não dispõe de uma justiça especializada em matéria de controle jurisdicional da Administração Pública, ao contrário de países europeus. Quando se utiliza "jurisdição de controle externo" para se referir à função de Controle Externo, sabe-se que, no direito brasileiro, não está em jogo uma atividade própria da função jurisdicional.

A despeito da ausência dessa justiça especializada, a Constituição dotou os Tribunais de Contas de competências judicantes e sancionadoras, conferindo-lhes uma singularidade institucional, que não é assimilável à jurisdição contenciosa administrativa francesa, caracterizada, dentre outros, por executar os próprios julgados, competência não outorgada pela Lei Maior aos Tribunais de Contas (cf. artigo 71, §3º), da mesma forma que essas Cortes de Contas não participam da estrutura orgânica do Poder Judiciário (artigo 92).

A propósito, ao tratar do princípio da separação dos poderes, como fundamento do sistema francês de contencioso administrativo, Eduardo García de Enterría sublinha e leciona que referido sistema possui singularidades institucionais relevantes e se apresenta "como um controle realizado por órgãos especializados da própria Administração, e não por juízes a ela alheios e independentes" [5]. Esta modelagem institucional não existe no Brasil, marcado pela unidade e universalidade da jurisdição, e criação de Tribunais de Contas, como órgãos constitucionais autônomos.

É de se notar, então, que, no modelo brasileiro de controle dos atos da administração pública, essa especialização controladora é alcançada a partir da atuação do Controle Externo exercido pelos Tribunais de Contas, Instituições Superiores de Auditoria dotadas de um quadro próprio de pessoal (artigo 73 da CF), com destaque ao corpo próprio de auditores de controle externo, qualificado e especializado para a efetiva concretização das finalidades públicas regentes da função de controle externo.

Revela-se aderente ao Texto Constitucional sujeitar os que dão causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário ao julgamento pelos Tribunais de Contas, na esteira dos reiterados precedentes do TCU.

Essa missão também se estende aos Tribunais de Contas dos entes subnacionais, cujas competências são simétricas às da Corte Federal de Contas, conforme entendimento do STF, nas ADIs 6655-SE, 5259-SC, 5509-CE, 5323-RN, com vistas a garantir proteção adequada, necessária e proporcional dos bens jurídicos, cuja tutela foi constitucionalmente outorgada ao Controle Externo, como meio de concretização do direito fundamental à boa administração pública, à moralidade administrativa, à legalidade/legitimidade/economicidade de ações/omissões públicas e privadas, afetando a integridade do erário.

 


[1]  JORDÃO, Eduardo. "O TCU tem jurisdição sobre particulares contratados pela administração?". Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/controle-publico/o-tcu-tem-jurisdicao-sobre-particulares-contratados-pela-administracao-14122022

[2] Trata-se de Tomada de Contas Especial com Acórdão assim ementado: "INCIDENTE DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA COM O OBJETIVO DE DIRIMIR DIVERGÊNCIA DE ENTENDIMENTOS A RESPEITO DA COMPETÊNCIA DO TCU PARA JULGAR CONTAS DE TERCEIROS PARTICULARES QUE CAUSEM DANO AO ERÁRIO. FIXAÇÃO DE ENTENDIMENTO SOBRE O ASSUNTO. Compete ao TCU, de acordo com as disposições dos artigos 70, parágrafo único, e 71, inciso II, da Constituição de 1988 c/c os artigos 5º, inciso II, 16, §2º, e 19 da Lei 8.443/1992 e o artigo 209, §6º, do Regimento Interno, julgar as contas de pessoa física ou jurídica de direito privado que causarem dano ao erário, independentemente da coparticipação de servidor, empregado ou agente público, desde que as ações do particular contrárias ao interesse público derivem de ato ou contrato administrativo sujeitos ao Controle Externo". Conferir divulgação oficial no site institucional do TCU. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/tcu-firma-entendimento-sobre-sua-competencia-no-julgamento-de-contas-de-particulares.htm

[3] Em inglês: Supreme Audit Institutions (SAI).

[4] Veja-se que o STF, ao enfrentar discussão em torno do alcance da representação de que trata o artigo 113, §1º da Lei nº 8.666, de 1993, com redação reproduzida pelo §4º do artigo 170 da Lei nº 14.133, de 2021, reconheceu que o indicativo de prejuízo financeiro à Administração Pública, direta e indireta, atrai a competência do TCU para atuar.  (STF, MS nº 35.199/DF, decisão monocrática, relator ministro Rosa Weber, julgamento em 29/9/2017, Dje de 2/10/2017).

[5] As transformações da justiça administrativa: da sindicabilidade restrita à plenitude jurisdicional. Uma mudança de paradigma?./ Eduardo García de Enterría; tradução de Fábio Medina Osório; Belo Horizonte: Fórum, 2010. (Coleção Fórum Brasil-Espanha de Direito Público; 1) p. 24.

Autores

  • é auditor de controle externo, advogado, professor e diretor jurídico da Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil.

  • é professor de Direito Administrativo dos cursos de graduação e pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e doutor em Direito do Estado pela PUC-SP.

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