Opinião

Considerações sobre as incursões prévias na análise da existência do delito

Autor

27 de dezembro de 2022, 6h07

Quando se funda um Estado, materializa-se um projeto político. O modelo é resultado de uma eleição de valores estruturais fundantes, ensaiado em meio à riqueza democrática do debate intersetorial.

Por isso, toda nova Constituição coloca em vigor um Estado diferente. O Brasil de 1988 não é o mesmo de 1967, tampouco se assemelha aos estados anteriores resultantes de constituições mais remotas.

O direito penal, como regra, reflete o modelo de Estado. Nos países totalitários, há uma tendência à supressão de direitos e garantias fundamentais, ao passo em que, nas repúblicas democráticas, costuma-se garantir um processo penal mais atento aos direitos subjetivos.

Ler o direito penal brasileiro através das lentes do direito constitucional resulta em visualizar um modelo liberal, baseado na responsabilidade subjetiva e marcado pela ampla defesa. Além disso, veem-se exortados, no processo penal, os princípios do contraditório e da paridade de armas entre acusação e defesa, entre outros, enquanto escolhas do legislador constituinte.

Entre as verdades mal explicadas do direito, há um velho jargão que diz: "materialidade delitiva é tema reservado ao mérito da ação penal". E isso se fala para justificar o entendimento de que não é autorizado ao juiz declarar a (in)existência de crime, no caso concreto, senão por ocasião da sentença.

O problema dessa pseudo-verdade processual reside em verificar que ela não se compatibiliza com os axiomas de um processo penal democrático e autoriza, com ares de naturalidade, que o acusado seja levado à vara criminal pelo cometimento de uma conduta irrelevante para o direito penal.

Para o renomado jurista italiano, do século 19, Francesco Carnelutti, "a sentença absolutória é a falência do processo penal". Segundo ele, este é o momento em que o estado declara — e reconhece — que o processo foi inútil e que toda devassa e sofrimento estampados pela prensa do processo criminal, na vida do acusado, com todas as consequências de ordem social, moral e reputacional, da acusação, consubstanciam desnecessária movimentação da máquina judiciária. 

E é por isso que não se pode admitir que análise da existência do delito (materialidade) não seja, senão, anterior a todos os atos processuais de um juízo criminal.

Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no Brasil, existem hoje cerca de 400 mil homens e mulheres em situação de prisão provisória, isto é, quase a metade de toda a população carcerária brasileira é composta por pessoas que jamais receberam condenações definitivas e se encontram custodiadas com fundamento no artigo 312, do Código de Processo Penal (CPP).

O mais curioso, contudo, é a leitura do artigo. Diz ele: "a prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado". 

É inevitável perceber que a decretação da prisão preventiva, segundo a própria literalidade do artigo 312, exige a prova da existência do crime. Logo, afigura-se óbvio que não se trata de um impedimento, nem de uma faculdade, mas de um dever decorrente de uma imposição legal, que o magistrado, mesmo antes da ação penal, lance olhares à materialidade delitiva para fins de decretar medidas constritivas.

Idêntico raciocínio aplica-se à busca e apreensão (artigo 240, do CPP) e à interceptação telefônica (artigo 2º, da Lei nº 9.296/96).

Na prática, contudo, juízes e tribunais tem se fiado no entendimento segundo o qual a materialidade delitiva é objeto de mérito, o que parece ser uma atecnia difusa no Judiciário, altamente danosa ao Estado de Direito, apta a justificar, indevidamente, medidas gravosas desprovidas de qualquer atividade cognitiva sobre a existência do crime — que a tudo deveria preceder —, o que redunda em concluir, inclusive, que boa parte de toda população carcerária, ao menos em tese, poderia estar segregada em razão de um não delito.

Em outro viés, observa-se que, por meio de reformas legislativas, mecanismos de justiça penal negocial ingressaram no ordenamento jurídico. A Transação Penal e o Acordo de Não Persecução Penal são exemplos de "processos penais negociados", em que a parte pode aceitar o cumprimento de uma obrigação para evitar o curso do processo penal.

Cabe, portanto, ao Ministério Público, oferecer ao acusado a oportunidade de evitar a persecução penal, assumindo determinadas obrigações como, por exemplo, a prestação de serviços comunitários ou o pagamento de valor pecuniário. Esse ato de oferecimento, entretanto, subordina-se à prévia constatação de que, no caso, o delito ocorreu.

Isto porque — e não se pode negar — a ocorrência de uma audiência nas dependências do Judiciário ou do Ministério Público, com a presença de um juiz de Direito, de um promotor de Justiça e de serventuários, por si só, causa temor no acusado, que poderá, sob a declarada ameaça de responder a uma ação penal, aceitar "penas antecipadas" a despeito de, hipoteticamente, estar convicto que não cometeu nenhum delito.

Portanto, partindo do pressuposto de que as partes, muitas vezes, são leigas em Direito Penal, cabe ao promotor de Justiça realizar a análise previa e formal da materialidade delitiva (opinio delicti), sob pena de celebrar Transação Penal ou Acordo de Não Persecução Penal em virtude de um fato absolutamente irrelevante para o direito penal.

A celeridade processual — necessária — não se presta a justificar atecnias e injustiças. Estatísticas de resolução penal consensual não podem apoiar — e nem esconder — incompensáveis erros cujas consequências atingem o direito dos jurisdicionados a um processo penal justo e adequado. Esse descompasso entre exegese e modelo é altamente pernicioso a um ordenamento que se pretende coerente.

Por isso, é urgente que o Judiciário envide todos os esforços no sentido de chamar à ordem a atividade dos seus órgãos para a observância dos preceitos constitucionais e legais cometidos à relativização de direito subjetivos, dando máxima efetividade ao devido processo legal e ao status dignitatis do acusado, bem como se obrigando a realizar um juízo prévio de materialidade delitiva, evitando o uso desnecessário da mais contundente ferramenta estatal: o direito penal.

A seu turno, é indispensável que o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) regule a matéria, editando resolução do sentido de obrigar os membros do parquet a demonstrar, formalmente, a partir dos autos, que o delito existiu e que há indícios de autoria (justa causa), antes de lançar qualquer proposta ao autor do fato, no âmbito dos mecanismos de direito penal negocial.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!