Opinião

Necessidade de uma LGPD na esfera processual penal e a prova digital

Autor

  • Gabrielle Casagrande Cenci

    é advogada criminalista sócia no escritório Marcos Eberhardt Advogados Associados pós-graduada em Direito e Processo Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) e graduada em ciências jurídicas e sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

25 de dezembro de 2022, 6h02

O tempo não para, e a mídia digital e o conforto trazido pelo avanço tecnocientífico são inebriantes, mas raramente o ser humano pensa nas eventuais consequências da aplicação desenfreada de qualquer novidade tecnológica desenvolvida [1]. A dificuldade humana em encontrar um ponto de equilíbrio defronte ao imparável avanço tecnocientífico se reflete em todas as áreas do conhecimento [2]. Como bem aponta Stefano Rodotà, vive-se na sociedade da vigilância, a qual rompe lentamente com as barreiras da privacidade individual, obrigando o indivíduo a expor sua vida privada sob pena de exílio digital, isolando-o cada vez mais da ordem social [3]. Trata-se de verdadeiro panóptico digital que monitora dados e informações de maneira onipresente [4].

Não é novidade que o mundo está se tornando cada vez mais digital. Nesta perspectiva, os dados pessoais têm sido cada vez mais processados e armazenados em dispositivos digitais — como computadores e celulares —, o que também gera um deslocamento da própria criminalidade para o âmbito virtual. Sob esta perspectiva, a própria investigação criminal também precisa passar por um processo de modernização para cumprir adequadamente a função estatal de repressão ao crime, sob pena de defasagem. Surge, então, o que Danilo Knijnik conceitua como provas de terceira geração, ou seja, "provas invasivas, altamente tecnológicas, que permitem alcançar conhecimentos e resultados inatingíveis pelos sentidos e pelas técnicas tradicionais" [5]. Ou seja, quando se considera que os aparelhos tecnológicos não são mais apenas uma facilidade, mas constituem parte integral da vida individual, faz-se imprescindível adequar as normas jurídicas para lidar com esta nova realidade; e isto, na esfera processual penal, tem reflexos diretos na obtenção de provas durante uma investigação criminal ou uma ação penal.

Noutro giro, em 2018, o Brasil promulgou a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), como resposta ao movimento europeu de proteção de dados individuais. Trata-se de uma resposta ao Regulamento Geral de Proteção de Dados (General Data Protection Regulation), editado pela União Europeia em 27 abril de 2016, na forma da Regulation (EU) 2016/679 [6]. No entanto, o Regulamento Geral de Proteção de Dados, em seu artigo 2, ponto 2, "d", refere à inaplicabilidade das normas para os dados pessoais processados para fins de "prevenção, investigação, detecção ou persecução de ofensas criminais ou de execução de penas, incluindo o resguardo contra e a prevenção de ameaças à segurança pública" [7]. No mesmo sentido, e a delinear a inspiração europeia para a legislação brasileira, importa destacar que a Lei Geral de Proteção de Dados expressamente também não se aplica ao tratamento de dados pessoais realizado para fins exclusivos de atividades de investigação e repressão de infrações penais, a teor de seu artigo 4º, III, "d". No entanto, o legislador previu a edição de norma específica para "prever medidas proporcionais e estritamente necessárias ao atendimento do interesse público, observados o devido processo legal, os princípios gerais de proteção e os direitos do titular previstos nesta Lei" (artigo 4º, § 1º, também da LGPD).

Outrossim, a necessidade de uma regulamentação específica para o tratamento de informações pessoais no âmbito da investigação criminal se justifica pela inviabilidade da relativização absoluta do direito fundamental à privacidade e ao sigilo de dados (artigo 5º, X e XII, da Constituição Federal). Enquanto não se desconhece o dever estatal de prover segurança pública (artigo 5º, caput e XXXV), faz-se imprescindível encontrar um equilíbrio entre os dois extremos, sob pena de reduzir uma destas garantias a ponto de descaracterizá-la como direito fundamental. Afinal, o Estado atua no delicado espaço entre a proibição de excesso e a proibição de proteção insuficiente [8], de modo que "a garantia de proteção do núcleo essencial dos direitos fundamentais aponta para a parcela do conteúdo de um direito sem a qual ele perde a sua mínima eficácia, deixando, com isso, de ser reconhecível como um direito fundamental" [9].

Em face deste contexto, em 2020, uma comissão de juristas presidida pelo ministro Nefi Cordeiro apresentou um anteprojeto de lei acerca do tratamento de dados pessoais para fins de segurança pública, defesa nacional e atividades de investigação, citando como uma de suas justificativas precisamente a inexistência de transparência sobre os métodos de investigação e de obtenção de dados digitais [10]. No entanto, o anteprojeto não teve tramitação, aguardando designação de relator na Câmara dos Deputados. Posteriormente, em 7/6/2022, o deputado Coronel Armando (PL-SC) apresentou o Projeto de Lei nº 1.515/22, ementado como a "Lei de Proteção de Dados Pessoais para fins exclusivos de segurança do Estado, de defesa nacional, de segurança pública, e de investigação e repressão de infrações penais". A redação não é a mesma proposta pelo anteprojeto, contando com menos artigos (59, ao invés dos 68 originais), e atualmente aguarda a criação de comissão temporária para apreciação.

Na prática, a ausência de uma norma específica sobre a investigação e uso de dados sensíveis para investigações criminais permite práticas como fishing expeditions, bem conceituada por Morais da Rosa como "[…] a procura especulativa, no ambiente físico ou digital, sem "causa provável", alvo definido, finalidade tangível ou para além dos limites autorizados (desvio de finalidade), de elementos capazes de atribuir responsabilidade penal a alguém" [11]. A busca incerta por elementos probatórios nunca foi novidade no processo penal, mas é ainda mais perigosa quando se empregam meios de obtenção de prova que abordam o aspecto digital da evidência, como interceptações telefônicas, quebra de sigilos de mensagens e realização de exame pericial em aparelhos celulares, por exemplo, na medida em que estas hipóteses permitem o encontro fortuito de informações pessoais sobre a vida individual do investigado — informações estas que, na maioria das vezes, não têm qualquer relação com o fato apurado.

A teor disto, a título exemplificativo, é sabido que o Superior Tribunal de Justiça já se posicionou pela nulidade absoluta da prova obtida mediante acesso ao aparelho celular do investigado sem consentimento do indivíduo ou autorização judicial. Entretanto, em uma análise dos primeiros julgados que formaram este entendimento, o ministro Nefi Cordeiro ressaltou no julgamento do recurso ordinário em Habeas Corpus nº 51.531/RO [12] que: "Atualmente, o celular deixou de ser apenas um instrumento de conversação pela voz à longa distância, permitindo, diante do avanço tecnológico, o acesso de múltiplas funções, incluindo, no caso, a verificação da correspondência eletrônica, de mensagens e de outros aplicativos que possibilitam a comunicação por meio de troca de dados de forma similar à telefonia convencional".

Evidentemente, e justamente por isto, a construção de uma Lei Geral de Proteção de Dados para a esfera penal não terá efetividade se for dissociada de outras mudanças necessárias na legislação processual penal. O Projeto de Lei nº 8.045/10, que propõe um novo Código de Processo Penal e já tramita no Congresso há mais de uma década, aborda a obtenção de prova digital, representando um grande avanço na modernização das normas referentes à obtenção de prova. Como referiu o relator deputado João Campos no parecer da comissão especial, datado de 26/4/2021: "A normatização desse campo é imperiosa e urgente, dada a frequência com que a nossa vida tem se tornado cada vez mais digital. Embora os mecanismos tecnológicos podem ser úteis para a pesquisa da autoria e da materialidade, igualmente podem representar irrazoável afronta a direitos e garantias fundamentais" [13].

Para tanto, o projeto de lei prevê todo um capítulo específico para abordar a prova digital, a partir do artigo 298. É interessante, todavia, que o artigo 300 exige a disponibilidade dos metadados que constituem a prova digital para que esta seja admissível ao processo, sendo indispensável a exposição dos "parâmetros e métodos empregados" [14]. Noutras palavras: o novo Código de Processo Penal não apenas regulamenta a coleta da prova digital, mas também dispõe sobre a cadeia de custódia do material, que deve observar as determinações sobre o tratamento e processamento daqueles dados sensíveis. Perceba-se como o intento é buscar uma harmonia legislativa, e não apenas modificar um aspecto isoladamente e sem preocupar-se com sua funcionalidade e efetividade como um todo dentro do sistema processual penal.

De mais a mais, é bem verdade que o direito não pode quedar-se inerte frente ao desenvolvimento tecnocientífico, como tende a ser. No entanto, ainda que seja imprescindível — e com urgência — suprir o vácuo legislativo deixado pela Lei nº 13.709/18, a simples elaboração de nova norma de maneira individualizada, sem considerar o ordenamento jurídico como um todo, pode acabar por resultar em ainda mais dúvidas que acabarão sendo solucionadas pela jurisprudência, ensejando insegurança jurídica.


[1] HAN, Byung-Chul. No Enxame: perspectivas do digital. Petrópolis: Vozes, 2018. p. 10.

[2] WEYERMÜLLER, André Rafael; HUPFFER, Haide Maria. O paradoxo da tecnologia e a incerteza científica. In: BAEZ, Narciso Leandro Xavier et al. (Orgs.). O Impacto das Novas Tecnologias nos Direitos Fundamentais. Joaçaba: UNOESC, 2015. p. 108.

[3] RODOTÀ, STEFANO. A Vida na Sociedade da Vigilância: a privacidade hoje. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 112/114.

[4] HAN, Byung-Chul. No Enxame: perspectivas do digital. Petrópolis: Vozes, 2018. p. 130/131.

[5] KNIJNIK, Danilo. A trilogia Olmstead-Katz-Kyllo: o art. 5º da Constituição Federal do século XXI. Porto Alegre. In: SILVA, Ângelo Roberto Ilha da. (Org.). Temas de Direito Penal, Criminologia e Processo Penal. Livraria do Advogado Editora, 2015. p. 178.

[8] SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 12ª ed., rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editoria, 2015. p. 413/415.

[9] SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 12ª ed., rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editoria, 2015. p. 420.

[10] COMISSÃO de Juristas sobre Segurança Pública. Exposição de motivos do Anteprojeto de Lei de Proteção de Dados para segurança pública e persecução penal. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/grupos-de-trabalho/56a-legislatura/comissao-de-juristas-dados-pessoais-seguranca-publica/documentos/outros-documentos/DADOSAnteprojetocomissaoprotecaodadossegurancapersecucaoFINAL.pdf>. Acesso em: 8 dez. 2022. p. 02: "[…] há um enorme déficit de proteção dos cidadãos, visto que não há regulação geral sobre a licitude, a transparência ou a segurança do tratamento de dados em matéria penal, tampouco direitos estabelecidos ou requisitos para utilização de novas tecnologias que possibilitam um grau de vigilância e monitoramento impensável há alguns anos. Apesar do crescimento vertiginoso de novas técnicas de vigilância e de investigação, a ausência de regulamentação sobre o tema gera uma assimetria de poder muito grande entre os atores envolvidos (Estado e cidadão). Nesse contexto, o titular dos dados é deixado sem garantias normativas mínimas e mecanismos institucionais aplicáveis para resguardar seus direitos de personalidade, suas liberdades individuais e até a observância do devido processo legal".

[11] ROSA, Alexandre Morais da. A prática de fishing expedition no processo penal. Revisa Consultor Jurídico, 2 jul. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-jul-02/limite-penal-pratica-fishing-expedition-processo-penal. Acesso em: 7 dez. 2022.

[12] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Habeas Corpus nº 51.531/RO. Recorrente: Leri Souza e Silva. Recorrido: Ministério Público do Estado de Rondônia. Relator: min. Nefi Cordeiro. 6ª Turma. Brasília, 19 abr. 2016. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201402323677&dt_publicacao=09/05/2016. p. 08. Acesso em: 7 dez. 2022.

[13] BRASIL. Câmara dos Deputados. Parecer da Comissão Especial do Projeto de Lei nº 8.045, de 2010. Código de Processo Penal. Brasília, 26 abr. 2021. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1998270&filename=Parecer-PL804510-26-04-2021. p. 43. Acesso em: 7 dez. 2022.

[14] "Art. 300. A admissibilidade da prova nato-digital ou digitalizada na investigação e no processo exigirá a disponibilidade dos metadados e a descrição dos procedimentos de custódia e tratamento suficientes para a verificação da sua autenticidade e integridade. Parágrafo único: Caso a prova digital seja produto de tratamento de dados por aplicação de operação matemática ou estatística, de modo automatizado ou não, devem estar transparentes os parâmetros e métodos empregados, de modo a ser possível a sua repetição e reprodutibilidade" (BRASIL. Câmara dos Deputados. Parecer da Comissão Especial do Projeto de Lei nº 8.045, de 2010. Código de Processo Penal. Brasília, 26 abr. 2021. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1998270&filename=Parecer-PL804510-26-04-2021. p. 480. Acesso em: 7 dez. 2022).

Autores

  • é advogada criminalista, sócia no escritório Marcos Eberhardt Advogados Associados, mestranda em Ciências Criminais na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), pós-graduada em Direito e Processo Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) e graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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