Opinião

Acordo de Não-Persecução Penal sob a ótica da cláusula geral da boa-fé objetiva

Autor

  • Rodrigo Gomes dos Santos

    é ex-assessor jurídico do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro advogado criminalista pós-graduado em Direito e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes-RJ e professor de Processo Penal.

19 de dezembro de 2022, 11h14

É consabido que a Lei 13.964/20, popularmente conhecida como "Pacote Anticrime", no seu artigo 28-A, caput, do CPP, atendendo aos anseios técnicos-jurídicos dos catedráticos e cedendo às críticas de viés constitucional lançadas por toda comunidade jurídica à Resolução nº 181/2017, alterada supervenientemente pela Resolução nº 183/2018 (inconstitucionalidade nomodinâmica), legitimou e, por conseguinte, procedimentalizou o instituto do Acordo de Não-Persecução Penal, também conhecido como "Diversão" ou, sendo mais cirúrgico, "Diversão com intervenção".

"Referido fenômeno vem definido como diversão, que é a opção de política criminal definida para resolução do processos penais de maneira diversa daqueles ordinariamente adotadas ao processo criminal, e consiste na solução antes de qualquer determinação ou declaração de culpa. […] Portanto, a diversão (diversion) caracteriza-se por ser mais uma forma de resolução dos conflitos processuais penais em que há a retirada de acusações ou a descontinuidade delas com a presença de advertências ou imposição de condições a serem cumpridas pelo acusado. Em geral, é aplicada em crimes de menor gravidade e, caso cumpridas as condições, resultará na conclusão do processo, sem qualquer condenação. Especialmente nos ordenamentos influenciados pelo sistema continental europeu, necessária é a observância de regras e condições estabelecidas em lei" [1].

A diversão é encarada como forma de solução do conflito penal, diversa do processo tradicional. Vejamos:

"O modelo consensual de justiça criminal é uma proposta de diversificação ou diversão dos procedimentos penais, cujo intuito é flexibilizar a persecução penal e maximizar as alternativas para a composição dos conflitos penais diversas do sistema acusatório tradicional. A diversão é a opção política criminal para resolução dos processos penais de maneira diversa daquelas ordinariamente adotadas no processo penal, e que consiste na solução antes de qualquer determinação ou de declaração de culpa" [2].

"O instituto é, ainda, classificado em diversão simples (sem imposição de medidas), diversão encoberta (atos materiais do autor do fato impõe a extinção da punibilidade), diversão com intervenção (imposição de medidas ao autor do fato) e a diversão com repreensão num processo de mediação para conciliação em crime em que a acusação encontra na intenção de incluir o Art. 375A no CPP" [3].

Apenas por excesso de zelo e para fins de contextualização, impende consignar que, essencialmente, o Acordo de Não-Persecução Penal ostenta a natureza jurídica de negócio jurídico procedimental ou processual (dependendo do momento de sua entabulação: seara exo ou endoprocessual) e tal constatação enseja uma compreensão dialógica da presente espécie de justiça penal negocial, rechaçando, portanto, qualquer visão insular do instituto em testilha. A explicação é simples:

Quaisquer negócios jurídicos (procedimental, processual ou de direito material) que se preze deve estar emoldurado pela heterotópica e cosmopolita cláusula geral da boa-fé objetiva [4] e, de acordo com a "Teoria do Diálogo das Fontes" [5], toda carga axiológica que gravita em torno da disciplina do negócio jurídico lá do Direito Civil deve ser difundido, disseminado na seara processual-penal, sobretudo os seus consectários lógicos: Supressio [6], identificada na já conhecida "nulidade de algibeira", expressão cunhada pelo Ministro do STJ Humberto Gomes de Barros; Surrectio; Tu Quoque; Venire Contra Factum Proprium; Duty to Mitigate the loss (Enunciado nº 169 do CJF); e teoria do adimplemento substancial. Nessa linha intelectiva, a "Tu Quoque" e a vedação do comportamento contraditório (Venire Contra Factum Proprium) serão utilizadas como instrumentos de análise percuciente do protocolo administrativo, deveras desleal, adotado pelo Ministério Público para "oportunizar" a celebração do ANPP.

Consoante se infere das supramencionadas parcelas da boa-fé objetiva procedimental/processual, é vedado a parte que violou determinada norma, princípio e postulado evocá-los contra a outra parte, visando se beneficiar.

Em apertada síntese, significa proibir que uma parte exija da outra aquilo que ela própria não ofereceu. Ou seja: ninguém se valerá da sua própria torpeza. Pois bem.

Após a edição dos enunciados nº 3 da I Jornada Processual-Penal do Conselho de Justiça Federal [7] e nº 05 da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro [8], os quais sedimentaram o entendimento de que a falta de confissão na seara procedimental (investigativa) não configura desinteresse na entabulação do ANPP, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, no intuito de "oportunizar ao investigado a confissão formal e circunstanciada dos fatos para celebração do negócio jurídico em questão", seguindo orientação do órgão de classe, adotou a seguinte providência insculpida na Resolução Conjunta GPGJ/ nº 20 de 23 de janeiro de 2020: notificar o investigado, por Diário Oficial do Ministério Público, para, no prazo de cinco dias, manifestar o interesse de celebrar o ANPP [9].

Olha que ideia genial…se fosse em um país suficientemente desenvolvido e socialmente igualitário, por óbvio.

Diante da adoção do aludido expediente e, ainda, levando-se em consideração a classe social, bem como o nível de escolaridade da esmagadora maioria dos criminosos, pergunta-se: que investigado acessa o Diário Oficial do Ministério Público? Antes disso: o investigado tem acesso à internet e, por conseguinte, aos veículos de comunicação ordinários? Qual o grau de instrução do investigado? O investigado consegue compreender satisfatoriamente os termos jurídicos ínsitos à escrita, na maioria das vezes, erudita dos presentantes do Ministério Público, sem o auxílio de um advogado/Defensor Público? E se o investigado for analfabeto funcional? Indo além: e se o investigado não souber ler? E se o investigado não enxerga? Quem lê o Diário Oficial do MP, além dos membros?

Apesar da aparente "boa vontade do Ministério Público", com a devida vênia, é evidente que a probabilidade de o investigado (considerando aquele que sabe ler minimamente) acessar diariamente o D.O. do MP é remotíssima, tornando, portanto, esta forma de notificação ineficaz e, sobretudo, inefetiva, sendo este um mecanismo atentatório ao conhecidíssimo princípio constitucional expresso no artigo 37, caput, da CRFB/88: o da publicidade. Mas não é só.

Notificar o investigado pelo Diário Oficial do Ministério Público é dar a efetiva publicidade ao ato? Essa providência do presentante consagra a publicidade substancial da administração pública? A resposta só pode ser negativa.

Não é à toa que a publicação por "D.O." é providência subsidiária (vide o aludido §1º). Veja que, no caso de lavratura do Auto de Prisão em Flagrante, os dados qualificativos do investigado sempre serão reduzidos a termo pela autoridade policial para justamente viabilizar a sua identificação na peça acusatória, fato este que facilita a localização do destinatário e que torna a publicação em "D.O." ainda mais subsidiária.

O que aqui se defende não é a publicidade em seu sentido formal, mas, sim, uma publicização substancial dos atos da administração. Essa publicidade substancial (efetiva) tem por objetivo dar concretude, efetividade aos atos praticados pela administração pública, possibilitando o acesso de todos os cidadãos às providências dos membros, precipuamente quando se está em jogo direitos fundamentais (direito de ir e vir), conquanto de forma reflexa.

A publicização material está intimamente amalgamada ao Estado Democrático de Direito, garantidor de direitos fundamentais.

Fixadas as devidas premissas dogmáticas básicas, é absolutamente perceptível que o Ministério Público, quando determina a notificação do investigado por intermédio do Diário Oficial do seu órgão, está, sim, valendo-se da própria torpeza e, portanto, ferindo uma das parcelas da boa-fé objetiva: "Tu Quoque". Isto é, o único anseio ministerial, nesse caso, é o de, na verdade, oferecer denúncia, deflagrar a ação penal.

Ademais, trata-se de comportamento contraditório, porquanto, primeiro, o Ministério Público deseja entabular o ANPP. Depois, mesmo ciente dos problemas sociais que assolam a sociedade e atingem grande parte da classe desfavorecida (e nesta é cediço que os cirminosos se encaixam), incluindo os entraves operacionais de acesso à internet, o órgão ministerial notifica o trangressor por meio de "D.O. Ofcial do MP". Ou seja, a princípio, o presentante quer transacionar, mas, posteriormente, utiliza um meio de comunicação inviável para obter êxito no seu desiderato. Não é esse um comportamento contraditório? Se a resposta for sim, então ofende outra parcela da boa-fé objetiva: vedação do comportamento contraditório (teoria dos atos próprios).

Invariavelmente, todo expediente atentatório à boa-fé objetiva deve ser repudiado e combatido, preservando-se, com isso, a lisura e a honestidade da relação negocial. Qualquer gestão administrativa obstativa da manifestação de vontade do investigado caracteriza uma velada negativa de vigência ao artigo 28-A, caput, do CPP, porquanto inviabiliza a celebração do Acordo de Não-Persecução Penal, tornando o referido dispositivo letra morta.

Destarte, mutatis mutandi, a Resolução Conjunta colacionada linhas acima deve se adequar à realidade social de um país de desigualdades acentuadas. Contudo, se a violação já ocorreu antes da atividade legiferante corretiva, deve o magistrado, também escravo da boa-fé objetiva processual e das suas parcelas, reconsiderar o recebimento da exordial acusatória e, imbuido do espírito da cooperação, insuflar o Ministério Público a estabelecer contato com o investigado, nem que seja pela Coordenadoria de Segurança e Inteligência do Ministério Público, e analisar a possibilidade de entabulação do Acordo de Não-Persecução Penal.

Ora, se o Ministério Público, fiscal da ordem jurídica, aciona a CSI para punir, por qual motivo não acionaria para dar efetiva publicidade à oportunidade de o investigado entabular o Acordo de Não-Persecução Penal?

Derradeiramente, cabe advertir que todos os operadores do Direito têm a responsabilidade de fiscalizar a obediência à boa-fé objetiva processual, capilarizando-a por todo o ordenamento jurídico, pois só assim as arbitrariedades estatais serão cauterizadas, evitando-se a metástase.

 


[1] BRADALISE, Rodrigo da Silva, Justiça Penal negociada: negociação de sentença criminal e princípios processuais relevantes. Curitiba : Juruá , 2016, p. 24 ;

[2] MANDARINO, Renan Posella/ Santino. Valter Foleto "A atuação do Ministério Público ante a expansão da justiça penal negociada no Pacote Anticrime" in AAVV. PACOTE ANTICRIME: VOLUME I. Organizadores: Eduardo Cambi/ Danni Sales Silva/ Fernanda Marinela” Escola Superior do MPPR, 2020: p. 238;

[3] Revista Eletrônica do Ministério Público do Estado do Piauí (Juruá), nº 01 (Jan./Jun. 2021), p. 469 (BRADALISE, Rodrigo Silva, 2016, p. 23);

[4] Superior Tribunal de Justiça, Princípio da boa-fé objetiva é consagrado pelo STJ em todas as áreas do Direito, 2012, Disponível na Internet em: https://stj.jusbrasil.com.br/noticias/100399456/principio-da-boa-fe-objetiva-e-consagrado-pelo-stj-em-todas-as-areas-do-direito;

[5] PRADO, Malta Sérgio, Da Teoria do Diálogo das Fontes, 2013, Disponível na Internet em: https://www.migalhas.com.br/depeso/171735/da-teoria-do-dialogo-das-fontes;

[7] I Jornada de Direito e Processo Penal do Conselho de Justiça Federal, Enunciado nº 03 do CFJ: A inexistência de confissão do investigado antes da formação da opinio delicti do Ministério Público não pode ser interpretada como desinteresse em entabular eventual acordo de não persecução penal, 2020, Disponível na Internet em: https://www.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/jornada-direito-processo-penal.pdf;

[8] Diário Oficial Eletrônico, Resolução DPGE/RJ nº 1092, p. 04, Enunciado nº 05: A ausência de confissão, apesar da duvidosa constitucionalidade de sua exigência, em sede policial, não impede a celebração do acordo de não persecução penal, ed. 088/2021, , Disponível na Internet em: https://defensoria.rj.def.br/uploads/arquivos/Doe/2021.05.18.pdf;

[9] Resolução Conjunta CPGJ/CGMP Nº 20, 2020, Disponível na Internet em: https://www.mprj.mp.br/documents/20184/418733/resolucao_conjunta_gpgj_cgmp_20_2020.pdf.

Autores

  • é ex-assessor jurídico do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, advogado criminalista, pós-graduado em Direito e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes-RJ e professor de Processo Penal.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!