Opinião

Decisão do TJ-CE comprova que não existe cultura de precedentes

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19 de dezembro de 2022, 15h12

Zapeando pelos tribunais, encontro uma decisão que mostra que tenho razão quando afirmo que não vingou a tal cultura de precedentes ou, se quisermos, sistema de precedentes.

Spacca
Cidadão, por meio da defensoria, ingressa com apelação. Uma das teses era de cerceamento de defesa na fase pré-processual. O TJ-CE (Tribunal de Justiça do Ceará) negou com base na não comprovação de efetivo prejuízo: "a condenação, por si só, não é prova de efetivo prejuízo. Precedentes do STJ" (1063944-17.2000.8.06.0001).

Se a tese do réu é "boa" ou não, não importa. Impressiona o modo como se aplicou o "sistema de precedentes". O acórdão mostra, não somente nesse ponto, as razões pelas quais "isso-de-cultura-de-precedentes jamais vai 'pegar' por aqui".

Não sei como o Tribunal, regra geral, faz a aplicação de "precedentes". Porém, o caso que aqui analiso não se apresenta como uma amostra favorável. Examinando um conjunto de decisões do Tribunal, descobre-se um certo padrão de uso de "precedentes". Na verdade, são usados mais como viés de confirmação do que como fundamento.

Darei um exemplo tirado aleatoriamente de uma revista do Tribunal: "O defeito de representação processual não acarreta, necessariamente, a nulidade do ato processual ou mesmo de todo o processo, eis que tal defeito é sanável, devendo-se ter em mente o princípio da economia processual, bem como a teoria da nulidade, segundo a qual não há nulidade sem prejuízo (pás de nullité sans grief). Preliminar rejeitada. Precedentes do STJ".  Com a devida vênia, não adianta colocar no acórdão algo assim e não fazer a explicitação das razões da enunciação, como exige o artigo 489 do CPC. Essa fundamentação serve para dezenas de situações. De novo resta a pergunta: o que é isto — o precedente? Ou o que quer dizer a citação "Precedentes do STJ"?

Mas esse é um problema universal no Brasil. Não apenas do Tribunal do Ceará.

Voltando ao acórdão que motivou este texto: vejo que são citados "precedentes" do mesmo modo como se citavam nos meus tempos de estudante e depois promotor de justiça. Escolhe-se algo já julgado e se usa como viés de confirmação. Ignora-se o CPC de 2015.

No caso, tem-se a impressão de que o STJ teria algum "precedente" (por que haveria vários sobre o mesmo tema?) pelo qual teria afirmado que uma condenação por si só não prova o prejuízo sofrido pelo réu que alega nulidade. Pelo visto, é/seria uma nova forma da aplicação do "não há nulidade sem prejuízo" e nem mesmo uma condenação poderia ser considerado prejuízo.

Bom, não há "precedentes" desse tipo no STJ, ao que busquei. Que, é bem verdade, continua a aplicar o tal "princípio (sic) de nome de francês". Mas aí é que reside o problema: se alguém quer citar/usar um precedente tem de demonstrar que a holding, o padrão que dele se pode extrair, é aplicável ao caso concreto. E não fazer como fez o TJ-CE. Mais: qual é a ratio que define o que é isto — o prejuízo? Prejuízo para quem? Esse é o busílis.

Warat denunciava isso nos anos 70-80 como "ementários prêt-à-porters". Lembro que, como promotor, criticava e buscava desmanchar petições e sentenças (e acórdãos) que utilizavam esse tipo de "trucagem precedentalista". Isto é: usa-se um raciocínio de varejo e se aplica no atacado. Algo como "legitima defesa não se mede milimetricamente". Como se todas as legitimas defesas do mundo que se mostram desproporcionais pudessem estar abarcadas nesse enunciado. Cabe tudo… Outro exemplo: a palavra da vítima nos crimes de estupro é de fundamental importância… Ora, claro que é… Mas a partir disso basta a palavra da vítima para condenar? Ora, isso não é aplicação de precedente. Nem de longe.

Sim, Warat já denunciava isso de há muito, como eu disse, com a questão do prêt-à-porter. E o grande ponto aqui é que precedentes, no Brasil, também o são. Só que é exatamente o contrário se a ideia é ter um sistema estável. Mas como ter um sistema estável, como não ter precedentes prêt-à-porter, se nem sabemos identificar um precedente?!

As decisões falam de outras decisões, que falam de decisões, valendo-se de decisões para decidir.

Se o caso não importa mais nas decisões — o descumprimento do artigo 489 do CPC é a prova cabal disso —, como se faz distinguishing de "precedentes citados no atacado"? Quais? Em que casos? Em que circunstâncias? Sem saber qual é a ratio da decisão, não há razão para nos valermos de precedentes para fundamentar, se me permitem o jogo de palavras.

Aliás, cabe tudo, como no caso do Tribunal do Ceará. Alegou nulidade? Rejeito. Com base em quê? Simples: precedentes do STJ. Nem mesmo a condenação é prova de prejuízo…! Como se provaria o prejuízo?  

Qualquer que seja a decisão, sempre cabe um "precedente". Sobretudo quando não se precisa explicitar qual é. E, quando se explicita, basta trazer um ementário. Teoria sobre identificação da ratio decidendi? Identificação das circunstâncias de um caso concreto que permitam sequer o tribunal, mesmo o causídico tentar fazer um distinguishing?

Cá para nós: não sei se houve ou não cerceamento ou qualquer outra nulidade no caso em pauta. Mas afastar a tese defensiva com base em "precedentes do STJ" desse modo quer apenas dizer que jamais um réu no estado do Ceará conseguirá provar qualquer nulidade. Afinal, se nem uma condenação é causa de prejuízo, o que mais será?

Aliás, o acórdão, examinado à luz do artigo 315 do CPP (por que é tão desrespeitado?), espelho do 489 do CPC, foi violado várias vezes no acórdão. Isso para começar a conversa, sem precisar adentrar na questão "cultura de precedentes".

Só mais uma coisa: diz o acordão: "a condenação, por si só, não é prova de efetivo prejuízo. Precedentes do STJ". Ora, em 30 segundos, dá para encontrar no STJ coisas como "não há, num processo penal, prejuízo maior do que uma condenação". Essa decisão não gera precedente?

Então? Como aplicar "precedentes"? Recomendo, de novo, a coluna que escrevi sobre "cultura de precedentes". Também o livro Precedentes Judiciais e Hermenêutica, 4ª. Edição. Discutamos o assunto a sério.

Boa leitura! E boa discussão. Espero. Discutir já será um bom começo. Coloco-me a disposição do egrégio Tribunal.

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