Estado (enfim) de Direito

Para Aras, não é papel do MPF fabricar manchetes e nulidades, mas resultados

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19 de dezembro de 2022, 8h47

Na segunda parte de sua entrevista exclusiva à revista eletrônica Consultor Jurídico (clique aqui para ler a primeira parte), o procurador-geral da República, Augusto Aras, fala sobre o sucesso da implantação dos Gaecos nacionais, que substituíram o vedetismo megalomaníaco das "forças-tarefa".

Aras mostra que a opção preferencial do MP por manchetes, em gestões passadas, padecia de um defeito inadmissível: a falta de resultados. O pretenso "combate à corrupção", com acusações sem provas ou sem materialidade, era uma fábrica de nulidades que, invariavelmente, terminava sem condenações. Aras reorganizou as prioridades do MPF, resgatando a preocupação com saúde, educação e meio ambiente — sem desprezar o combate ao crime de colarinho branco, que, até então, era o único alvo da PGR.

Leia a seguir a segunda parte da entrevista: 

ConJurComo foi a substituição das forças-tarefas pelos Gaecos federais?
Augusto Aras — Não houve nenhuma alteração substancial entre as forças-tarefas e os Gaecos. Os Ministérios Públicos passaram a funcionar em melhores condições de pessoal e materiais com a implantação dos Gaecos federais, que já tinham sido criados em 2013, mas só foram implementados na minha gestão, em 2020. Hoje temos 27 Gaecos federais, a grande maioria já funcionando adequadamente e uma pequena minoria esperando até março para receber um maior número de procuradores e de servidores que serão deslocados em razão da reestruturação feita nacionalmente. 

Spacca
Ontem (segunda-feira, 12/12), praticamente concluímos, com 98%, a reestruturação do MPF em todo o Brasil. O Ministério Público que encontrei tinha 70% de toda a sua estrutura pessoal e de materiais entre o sul de Minas Gerais e o Rio Grande do Sul. E Norte, Nordeste e Centro-Oeste com apenas aproximadamente 30% dos procuradores. Um verdadeiro abandono. Só na Amazônia temos 59% do território nacional. Se somarmos mais o Centro-Oeste e o Nordeste, temos 70% do Brasil excluído do Ministério Público. Estruturamos os Gaecos para todo o Brasil e estamos construindo um novo momento para que esse vazio do MPF seja suprido com mais membros, mais servidores, mais recursos e mobilidade. 

O resultado das forças-tarefas, que eram só três, pode hoje ser medido pelo resultado de 27 Gaecos. Os resultados não dependem do PGR, nem da Procuradoria-Geral, porque como todos sabem os Gaecos têm organização e estrutura em que cada procurador fica 1 biênio, podendo ser renovado. Também há servidores que podem ser indicados pelos próprios procuradores. A antiga força-tarefa de Curitiba só tinha um membro titular, que era o procurador Deltan Dallagnol. Na nossa gestão, passou a ter cinco ofícios. Ou seja, quatro a mais, e tem 35 servidores que foram cedidos da minha gestão. O Gaeco do Paraná tem mais servidores e procuradores destinados ao combate à corrupção do que talvez 80% das unidades do Brasil. No Rio de Janeiro, todos os integrantes do Gaeco eram da força-tarefa. O Gaeco de São Paulo, que nunca foi tão articulado quanto eram os de Curitiba e Rio, já está funcionando corretamente. Somando todos eles são 27 — 26 unidades da federação, mais o Distrito Federal. 

ConJurPor que foi preciso superar o modelo da "lava jato"?
Augusto Aras — Essas instituições precisam ter regras para funcionar. Para que haja o modelo republicano que adotamos e o sistema de pesos e contrapesos — em que o indivíduo não age por vocação ou capricho, mas para atender ao interesse público —, precisamos ter um conjunto de regras a serem cumpridas. As meras atividades não são orgânicas, mas feitas de acordo com os caprichos de cada um, com o desejo muitas vezes dos holofotes. Os Gaecos, lamentavelmente, só foram organizados na nossa gestão. Desde a instauração dos Gaecos federais, nós agora podemos enfrentar o crime organizado de forma segura para os membros, com a garantia de que esses membros não vão ser afastados de suas atividades, salvo por uma falta muito grave a ser comprovada e mediante uma decisão fundamentada. Significa que há dinheiro e recursos próprios para gerir suas atividades. 

O resultado desse trabalho deve ser buscado em cada Gaeco. Antes da nossa gestão tínhamos três forças-tarefas. O senador Eduardo Girão dizia: por que a força-tarefa não chega ao Ceará? E eu dizia: porque os dados estavam monopolizados pelas equipes das forças-tarefas de Curitiba e Rio. Hoje, todos os bancos de dados estão centralizados na PGR, sob administração, controle e fiscalização da Corregedoria-Geral. Então qualquer membro do MPF pode ter acesso a qualquer informação, desde que diga qual a finalidade, qual o processo aberto, e quem é o procurador responsável. A Corregedoria faz o controle e a fiscalização do uso dessas informações que são relevantes para qualquer cidadão, para a sociedade e para o Estado. 

E eventuais abusos e excessos porventura cometidos no futuro estarão sob controle da nossa Corregedoria Nacional, do Conselho Nacional do Ministério Público, da Corregedoria-Geral ou mesmo de qualquer membro da sociedade. Na nossa gestão nós não temos conhecimento de nenhuma decisão nulificada por vício processual. Não haverá mais forças-tarefas como meras atividades inorgânicas sem estrutura, sem dever de prestar contas, sem objeto certo e sem nenhum controle. Hoje temos controle de tudo isso.

ConJur  — Como punir a corrupção de forma adequada sem quebrar as empresas?
Augusto Aras — Temos, desde 1942, em pleno fascismo italiano, a edição do Código Civil italiano que criou a Teoria da Empresa. Essa doutrina jurídica só foi acolhida no Brasil pela jurisprudência e por leis esparsas a partir de 1976, com a Lei das S/A. O Código Civil de 2002 consagrou no Brasil a Teoria da Empresa. O titular da empresa é o responsável jurídico pelas boas e más ações da empresa, que, como mera atividade, não tem personalidade jurídica para responder do ponto de vista criminal. Dessa forma, temos exemplos do século 20, em que na Segunda Guerra Mundial a Volkswagen produzia os veículos para os nazistas; a Krupp, de elevadores, produzia canhões e balas de canhões; a IBM produzia os cartões para os campos de extermínio; a Bayer produzia o gás das câmaras de gás. Tínhamos todo um complexo industrial nazista e, uma vez acabado o nazismo, as grandes empresas sobreviveram e estão postas até hoje no mercado como grandes conglomerados econômicos internacionais. Mas seus responsáveis legais pagaram a conta nos tribunais de Nuremberg e da Segunda Guerra Mundial. Nós invertemos a lógica no Brasil: punimos as empresas, enquanto alguns empresários foram até premiados com as penas que lhes foram impostas. 

A nossa gestão se voltou para a regulamentação da atividade do MPF para que criminosos sejam punidos, especialmente as organizações criminosas, mas preservando o plano econômico das empresas, com seu legado empresarial. Até porque o Brasil precisa de R$ 500 bilhões de investimento em infraestrutura e nós não temos empresas nacionais em condições de fazer os investimentos que geram empregos, tributos e contribuem para que o país se desenvolva normalmente. É importante dizer que combater a corrupção é política de Estado, não de governo, e saber que a corrupção, como crime, é um fato social. Mas antes de ser crime, também é um grave vício moral, que integra a natureza humana desde sempre. Precisamos lembrar que o darwinismo social gera uma série de vícios, inclusive a corrupção. Não é só o político que comete corrupção. Não é só o mau empresário que comete a corrupção. A imprensa, quando distorce a verdade, comete corrupção. E todas as instituições e pessoas podem ser dadas a cometer atos de corrupção. É preciso ter a compreensão de que a ilicitude, ou mesmo a imoralidade, pode ser um ato de corrupção. 

ConJurQual a sua posição sobre a revisão dos valores de multa fixados nas delações e nos acordos de leniência?
Augusto Aras — Nossa gestão encontrou um conjunto de acordos de colaboração que somavam em torno de R$ 6 bilhões em seis anos de atividade das forças-tarefas. No primeiro ano da nossa gestão, com cinco acusados, nós arrecadamos R$ 5 bilhões. Não vou declarar o nome dessas pessoas físicas — não empresas, mas pessoas físicas. Só cinco pessoas físicas pagaram R$ 5 bilhões, a revelar que, com o cumprimento de metas e regras jurídicas e com uma perspectiva de razoabilidade e proporcionalidade, distantes dos holofotes das mídias, nós cumprimos muito mais em um ano do que em seis anos das chamadas forças-tarefas. 

Hoje temos mais do que dezenas de acordos de leniência e de colaboração, muitas vezes com valores dez vezes superiores aos praticados no afã daquele momento de projeção pessoal das estrelas das chamadas forças-tarefas para mostrar ao público o que se fazia para combater a corrupção, quando o combate — ainda que na via extrajudicial e dos novos meios menos punitivos — necessita do caráter preventivo, no sentido de desestimular o retorno ao crime. Aliás, temos um caso em Curitiba em que um doleiro foi delator do Banestado e em outros crimes e voltou a delinquir normalmente na "lava jato". É preciso que os acordos de colaboração e leniência observem aquilo que Cesare Beccaria, do século 18, já pregava: é necessário que a pena tenha caráter preventivo, repressivo ou redistributivo.

ConJurO senhor afirmou que a reestruturação pode resolver a falta de integrantes do MPF em lugares mais afastados. De que forma é possível deslocar os procuradores a esses locais?
Augusto Aras — Com atrativos para manter os colegas o maior tempo possível em regiões de difícil acesso, pagando a gratificação que existe há mais de 40 anos. Quando entrei na carreira já havia essa gratificação, mas não era dada a ninguém. Daí o motivo de ninguém ir para a Amazônia, o Nordeste, o Centro-Oeste, e para as regiões de fronteira. Também estamos fazendo concursos públicos para prover o maior número de vagas que for possível para o Norte, o Nordeste e o Centro-Oeste. Precisamos ocupar o Brasil. 

ConJur O tema da corrupção, em toda parte, reveste-se de forte fator emocional. Como fazer para que esse fetiche não prejudique temas igualmente importantes, como saúde e educação?
Augusto Aras — Uma nova cultura vem sendo implantada, embora tenhamos de estar vigilantes para não repetirmos os erros do passado e todas as nulidades processuais que foram reconhecidas pelo Supremo depois de seis anos de processos em curso. Precisamos respeitar o valor maior de todo e qualquer processo civilizatório contemporâneo, que é o devido processo legal, para que a Justiça seja catalisadora da paz e da harmonia. 

Na saúde, atuamos no Gabinete Integrado Covid-19 (Giac). O Giac cuidou da Covid muito antes do reconhecimento do estado pandêmico pela OMS. Foram 150 promotores e procuradores espalhados por todo o Brasil, com a coordenação da subprocuradora-geral da República Célia Delgado. Agora, temos a consciência vacinal em curso, com um projeto da PGR, juntamente com o Conselho Nacional do Ministério Público. Estamos em campanha para que o Brasil volte a se vacinar contra a poliomielite e outras enfermidades que nós já tínhamos como debeladas.

Na educação temos vários programas. Tivemos o programa do Fundeb, que ainda está em curso em parte, para a aplicação de recursos na qualificação de professores e na melhoria do ensino, assim como temos fiscalizado certas atividades de ensino que muitas vezes são mercantilizadas sem a correspondente entrega da educação adequada e devida a todos os brasileiros. Isso sem nenhuma censura ou pretensão de restringir a educação. 

ConJur Qual é o contingente do MPF atuante nas áreas cível e criminal — e qual o volume de trabalho de cada uma?
Augusto Aras — Temos 800 colegas procuradores da República atuando na primeira instância, metade na cível, metade na criminal. Há 300 colegas aproximadamente na segunda instância, nos seis Tribunais Regionais Federais. E temos 74 subprocuradores-gerais da República, entre eles o procurador-geral. Em média, 400 mil processos do Superior Tribunal de Justiça passaram este ano na Procuradoria-Geral da República para a atuação dos subprocuradores-gerais. No primeiro semestre, atuei em 33 mil processos aproximadamente. Estamos agora com um concurso tramitando e, creio, podemos nomear até agosto do ano que vem cerca de 30 novos procuradores da República. Conduziremos a maior parte deles às Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste para atender ao grande vazio do Ministério Público nessas regiões. 

ConJurA PGR e a Organização dos Estados Americanos (OEA) assinaram um acordo para capacitação de integrantes do MP e da magistratura. Quais os termos do acordo?
Augusto Aras — Os termos do acordo, no que toca à OEA, é o intercâmbio permanente entre juízes, promotores e procuradores de todos os países que integram a OEA, trocando experiências técnicas para o aprimoramento de um Direito comunitário capaz de preservar os pilares da OEA. Com a atuação ordenada de intercâmbio, não precisaremos que os colegas saiam daqui para ir para fora do país. Os colegas podem estudar a distância e fazer cursos de mestrado, doutorado e aprimoramento.

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