Opinião

Processo penal e os standards probatórios como controle da decisão judicial

Autores

  • Rafael Zottis

    é advogado criminalista sócio no escritório Marcos Eberhardt Advogados Associados mestre e especialista em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica de Rio Grande do Sul (PUC-RS) e em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet).

  • Gabrielle Casagrande Cenci

    é advogada criminalista sócia no escritório Marcos Eberhardt Advogados Associados pós-graduada em Direito e Processo Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) e graduada em ciências jurídicas e sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

18 de dezembro de 2022, 13h11

É cediço que a motivação de uma decisão judicial consiste na exteriorização da justificativa racional que percorreu o julgador até alcançar uma conclusão jurídica [1]. Destarte, a discussão volta-se a determinar o que é, efetivamente, uma justificativa racional para tomar esta ou aquela decisão; e a resposta para esta questão reside justamente na identificação de um standard de prova que legitime o provimento adotado pelo julgador  cujas razões devem estar expostas na forma de fundamentação.

Nessa linha de intelecção, a fundamentação de uma sentença se dá a partir do que é extraído do exame do conjunto de provas, posto que é com base nos elementos probatórios que constam nos autos que o julgador formará seu convencimento — sendo esta a razão pela qual o processo penal brasileiro adota majoritariamente o sistema do livre convencimento motivado. Desse modo, a exposição do caminho percorrido pelo julgador na formação da persuasão sobre a procedência dos pedidos acusatórios mostra-se como instrumento imprescindível para o posterior controle jurisdicional sobre aquela decisão, inclusive no que diz respeito à efetiva observância do standard probatório.

Em verdade, o dever de motivação das decisões judiciais cumpre dupla função no ordenamento jurídico: não se trata somente da possibilitar posterior aferição sobre a efetiva observância do standard de prova mínimo exigido para uma condenação penal, mas também de oportunizar uma fiscalização jurisdicional ulterior sobre diversas outras garantias constitucionais, constituindo resguardo do qual dispõe o acusado contra o arbítrio que é inerente à função de julgar.

Por silogismo, se o standard de prova  isto é, se a existência de um grau de certeza mínimo para permitir a condenação  somente pode ser aferido com base em uma motivação sólida e adequadamente externada por parte do julgador, e se a fundamentação das decisões judiciais é garantia fundamental que legitima o poder jurisdicional [2], então o corolário lógico é que a definição prévia de um modelo de constatação exigente o suficiente para eliminar as hipóteses de erros de julgamento é critério de validade das decisões penais.

A questão da validade das decisões judiciais parte do pressuposto que a neutralidade do julgador na formação do convencimento é "fundamentalmente ingênua", eis que o juiz sempre se encontra condicionado a fatores de cunho ambiental, emocional, ideológico [3]. Trata-se, então, de possibilitar o controle sobre as razões de decidir, aferindo a efetiva racionalidade  isto é, que a decisão tenha sido tomada de forma lógica, de modo que o julgador tenha formado sua convicção com base somente nas provas trazidas ao processo.

Por fim, há que se pontuar que a adoção de um standard de prova não é uma decisão puramente epistemológica, posto que também reflete uma escolha político-jurídica do legislador, mormente na esfera penal [4]. A exigência de um conjunto probatório que gere certeza acima da dúvida razoável para desconstruir a presunção de inocência demonstra, por exemplo, uma política criminal que, em tese, deveria ser pautada pela primazia da liberdade, dado o grau de rigidez do modelo de constatação eleito nos processos criminais; desta forma, ao menos em teoria, optou-se por dar preferência a absolver um culpado do que a condenar um inocente [5].

A adoção de um standard de prova trata de uma definição teórica prévia que enseje o controle posterior da convicção jurídica formada pelo julgador, justamente por este ser obrigado constitucionalmente a expor os motivos que o levaram a decidir daquela maneira diante do conjunto de provas carreado ao processo. Trata-se de um raciocínio simples: se o conjunto probatório gera uma margem razoável de dúvida na convicção do julgador, o provimento final deve ser em favor do réu, por força do princípio in dubio pro reo [6], tendo em vista que a presunção de inocência exige determinado nível de certeza para ser desconstituída.

A partir do momento em que se considera que a existência de elementos objetivos que embasem a formação de convencimento do julgador é elemento imprescindível do sistema da persuasão racional (sana crítica) [7], tem-se que a motivação de fato deve ser obrigatoriamente exposta na decisão, para possibilitar um controle posterior quanto à observância de uma atividade probatória mínima que justifique a escolha daquela hipótese por parte do julgador sobre as demais que lhe foram apresentadas naquele processo.

Não há como negar que o direito é fenômeno linguístico em uma conjuntura comunicacional [8]. E, segundo Streck, "interpretar é dar sentido" [9]. Assim, o controle jurisdicional posterior da decisão judicial para aferir o respeito às garantias processuais do acusado não significa que haja uma proibição de que o julgador interprete o conjunto probatório dos autos de acordo com seu livre convencimento e construa a conclusão que lhe pareça mais racional.

Como já afirmamos, o dever de fundamentação racional das decisões  e é no múnus da racionalidade incutido ao julgador que se perfaz a ideia de adoção de um modelo de constatação de prova  possui como propósito permitir se determinado provimento judicial foi construído em respeito ao próprio Estado democrático de Direito. A discricionariedade que é concedida ao julgador na formação de seu convencimento não pode o tornar um legislador [10], de modo que a atribuição de significado à norma que se encontra em branco antes de sua interpretação não pode representar arbitrariedade.

O papel do julgador é construir convicção a partir dos elementos que lhe foram demonstrados em uma tentativa de reconstrução de um fato passado que pode repercutir na esfera penal [11], e o standard de prova tem justamente o escopo de delimitar a função interpretativa do juiz, evitando a margem de arbitrariedade que é inerente à "zona cinzenta" da lei positiva. No entanto, Leal faz importante ressalva ao pontuar que "assenhorar-se deste espaço vazio, que é o ponto político da liberdade processual criativa e recreativa de direito formulado, é sair da democracia para o decisionismo autocrático" [12].

O que se busca é o equilíbrio entre a completa discricionariedade e a proibição de interpretar. Reconhecendo que não se pode permitir que o julgador decida tão somente conforme as razões íntimas que lhe orientam a ter determinada visão de mundo; isto é, o solipsismo, a sentença judicial embasada pelo estado de espírito do juiz no momento da formação do convencimento e não pelas circunstâncias fáticas. De outra sorte, tampouco é cabível a completa vedação de uma margem discricionária na tomada de uma decisão judicial, pela própria amplitude textual do direito e pela necessidade de atribuição de significado aos fatos que são levados ao conhecimento do juiz [13].

Não desconhecemos que é tênue a linha entre a mera aferição da suficiência da motivação de fato de uma decisão e uma nova revaloração probatória por ocasião do controle posterior [14]. Este controle jurisdicional possibilitado a partir da fundamentação da decisão judicial deve restringir-se a verificar a efetiva existência de um conjunto probatório apto a gerar o grau de certeza mínimo necessário para desfazer a presunção constitucional de inocência, que é o estado natural do acusado. Assim, em momento algum se ambiciona a imposição de absoluta vedação à liberdade interpretativa do magistrado, mas meramente à delineação de limites para evitar o fenômeno do decisionismo [15].

Ressoa evidente, porém necessário, reafirmar que existe profunda vinculação entre o conceito de standard de prova e do dever constitucional de motivação das decisões judiciais, insculpido no artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal. Nesse sentido, não se pode olvidar que o Código de Processo Penal, em seu artigo 155, determina que compete ao julgador formar seu convencimento acerca do mérito do processo a partir da livre apreciação do conjunto probatório produzido em contraditório; a partir disso, a questão de imposição prévia de um modelo de constatação da prova diz respeito a um padrão probatório mínimo para que se considere uma alegação efetivamente comprovada.

Mais do que meramente almejar a imposição de observância a um padrão mínimo probatório no processo, a teoria dos standards de prova também compreende que a tomada de decisões judiciais está sujeita à falibilidade humana  isto é, a decisão judicial pode ser tomada de forma equivocada após o processo cognitivo de convicção por parte do julgador. Nessa esteira, cotejou-se, neste estudo, o custo que eventuais erros judiciais podem gerar no processo; e, na seara penal, a discussão revolve sobre o aviltamento da liberdade individual do acusado, além da estigmatização social que acompanha uma condenação criminal (ou a simples condição de réu em uma ação penal).

Nesse sentido, a legislação processual penal do Brasil não prevê expressamente a dúvida razoável como critério de julgamento, salvo pela rápida menção que o legislador consignou no artigo 386, inciso VII, do Código de Processo Penal. Entretanto, o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional dispõe no artigo 66, item 3, a recomendação da convicção além da dúvida razoável para a condenação; e o Brasil é país signatário do tratado, que foi recepcionado no ordenamento jurídico interno com força supralegal, de modo que deve haver manifesta influência de tal norma na seara penal.

A dúvida é, em verdade, o estado natural de ignorância do julgador quanto ao fato que é reconstruído por meio do processo. Trata-se da indecisão prévia do magistrado quanto às alegações que são apresentadas pelas partes que compõem a relação processual. É imprescindível recordar que o processo penal não busca a verdade, que é utópica e dogmática; pelo contrário, o processo é instrumento de reconstrução de um fato passado. A dúvida é essencial ao processo, justamente em face da presunção de não culpabilidade que prevê que o acusado é inocente até que a tese da acusação seja efetivamente provada como verdadeira. O modelo de constatação da prova se insere neste contexto na medida em que toda decisão judicial que busca desconstituir o estado natural de inocência do réu remanesce com uma porcentagem da dúvida prévia do julgador. Nessa direção, o standard probatório tem como função a maximização do grau de certeza da decisão sobre o mérito da ação penal, para que, neste processo, haja a redução da chance de erro judiciário.

 

Referências

BAEZA, Javier Maturana. Sana Crítica: un sistema de valoración racional de la prueba. Chile: Thomson Reuters, 2014.

CANTÓN, Fernando Díaz. La Motivación de la Sentencia Penal y Otros Estudios. Buenos Aires: Del Puerto, 2005.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2002.

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Processual da Decisão Jurídica. 3ª ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017.

LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019.

MORALES, Rodrigo Rivera. La Prueba: un análisis racional y práctico. Madrid: Marcial Pons, 2011.

STRECK, Lenio Luiz. O que é isto: decido conforme minha consciência? 6ª ed., rev. e atual. de acordo com as alterações hermenêutico-processuais dos Códigos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017.

VIOLA, Ricardo Rocha. Teoria da Decisão Judicial. 1ª reimp. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016.

ZOTTIS LUCIO, Rafael. Standards de prova e dúvida razoável no Processo Penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2022.

 


[1] CANTÓN, Fernando Díaz. La Motivación de la Sentencia Penal y Otros Estudios. Buenos Aires:

Del Puerto, 2005. p. 99.

[2] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 107.

[3]  FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2002. p. 46.

[4] BAEZA, Javier Maturana. Sana Crítica: un sistema de valoración racional de la prueba. Chile: Thomson Reuters, 2014. p. 386.

[5] MORALES, Rodrigo Rivera. La Prueba: un análisis racional y práctico. Madrid: Marcial Pons, 2011. p. 314.

[6] MORALES, Rodrigo Rivera. La Prueba: un análisis racional y práctico. Madrid: Marcial Pons, 2011. p. 311

[7] BAEZA, Javier Maturana. Sana Crítica: un sistema de valoración racional de la prueba. Chile: Thomson Reuters, 2014.

[8] VIOLA, Ricardo Rocha. Teoria da Decisão Judicial. 1ª reimp. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016. p. 26.

[9] STRECK, Lenio Luiz. O que é isto: decido conforme minha consciência? 6ª ed., rev. e atual. de acordo com as alterações hermenêutico-processuais dos Códigos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017. p. 104.

[10] STRECK, Lenio Luiz. O que é isto: decido conforme minha consciência? 6ª ed., rev. e atual. de acordo com as alterações hermenêutico-processuais dos Códigos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017. p. 104.

[11] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 342.

[12] LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Processual da Decisão Jurídica. 3ª ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017. p. 39.

[13] No ponto, Streck assinala que "[…] é dessa dimensão de significância que emerge a possibilidade do significado. Isso quer dizer que, quando produzimos um enunciado  que, por sua vez, foi resultado da interpretação da compreensão afetivamente disposta  é porque já nos movemos antes compreensivamente nesta estrutura múndica, chamada significância. Esta estrutura não tem o sentido do ver teórico contemplativo, mas sim o sentido da lida cotidiana (mundo compartilhado)" (STRECK, Lenio Luiz. O que é isto: decido conforme minha consciência? 6ª ed., rev. e atual. de acordo com as alterações hermenêutico-processuais dos Códigos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017. p. 111).

[14] BAEZA, Javier Maturana. Sana Crítica: un sistema de valoración racional de la prueba. Chile: Thomson Reuters, 2014. p. 384.

[15] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 63.

Autores

  • é advogado criminalista, sócio no escritório Marcos Eberhardt Advogados Associados, mestre e especialista em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica de Rio Grande do Sul (PUC-RS) e em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet).

  • é advogada criminalista, sócia no escritório Marcos Eberhardt Advogados Associados, mestranda em Ciências Criminais na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), pós-graduada em Direito e Processo Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) e graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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