Os dois Aras

MPF não pode utilizar o linchamento como uma ferramenta de trabalho, afirma PGR

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16 de dezembro de 2022, 14h36

O procurador-geral da República, Augusto Aras, é um homem público cercado de aplausos e vaias. Ele foi além de desmascarar a malfadada "lava jato". Em entrevista exclusiva à revista eletrônica Consultor Jurídico, disse que tapou brechas para desvarios do Ministério Público, com protocolos e instrumentos para evitar a repetição de pantomimas que quase pararam o país. Reorientou o foco do MP, todo voltado aos chamados crimes de colarinho branco, para cuidar mais de temas como saúde, educação e meio ambiente.

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O sucesso de crítica, porém, não se repetiu com o público. O modelo brasileiro em que o presidente da República é o empregador plenipotenciário de ministros e do PGR — consentido desde a criação dos cargos — mostra-se próximo do esgotamento. E Aras tornou-se alvo de ataques por não investir pesadamente contra os atos de Jair Bolsonaro — em especial no combate à Covid-19 e nos atentados contra a democracia, o mesmo ocorrendo com próceres da esquerda.

"Cada pessoa pública é, antes de tudo, um cidadão com família, com localização na sociedade e uma imagem pública. Alguns segmentos da imprensa não compreendem que a posição da nossa gestão deveria ter sido sempre a seguida nesta instituição. Desde Sepúlveda Pertence, desde Aristides Junqueira de Alvarenga, quando tudo se fazia como nós fazemos: sem condenar previamente pessoas envolvidas em algum evento ilícito. Nós herdamos o devido processo legal e, historicamente, essa é a maior marca do processo civilizatório, especialmente ocidental", disse Aras.

A imprensa, que se beneficiou fartamente da irresponsabilidade descabelada de procuradores como Rodrigo Janot, o que elegeu Jair Bolsonaro e Sergio Moro, faz cobertura seletiva e rigorosa do mandato de Aras — evidente nostalgia das temporadas de caçada em que se trucidaram presidentes, políticos, empresários e suas empresas.

De outro lado, o próprio presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, os principais ministros do STF e do STJ, o mundo empresarial e as principais lideranças da advocacia homenageiam o freio de arrumação que o PGR deu no MPF e o apontam como o homem que suprimiu o populismo de suas fileiras.

"Mil mentiras não fazem uma verdade. É preciso que a imprensa comece a repudiar Goebbels, e não prestigiar. A imprensa tem prestigiado muito o Goebbels. Eu posso mostrar cada mentira dos três anos e dois meses em que estou aqui. Não vou culpar o jornalista. São meus adversários que plantam as mentiras. Algumas não compensam responder, porque é replicar a mentira. As que são relevantes nós respondemos oficialmente."

Reconduzido por 86% dos senadores — com votos dos principais oposicionistas do governo —, Augusto Aras fica no cargo até setembro de 2023. Nesta sexta-feira (16/12), a ConJur publica a primeira parte da entrevista com o procurador-geral da República. A segunda será publicada na segunda-feira (19/12).

Leia a seguir a entrevista:

ConJurQual o papel da PGR hoje? 
Augusto Aras — A nossa gestão busca manter a qualidade e a eficiência, preservando, antes de tudo, o devido processo legal na atividade de titular da ação penal, que envolve desde a investigação até os recursos. A atuação também se dirige a outras áreas, como a ordem econômica, o meio ambiente e a defesa dos indígenas e quilombolas, mas tudo isso feito preventivamente. 

No plano do meio ambiente, é preciso manter o equilíbrio e a sustentabilidade ante a economia e a sociedade. Do ponto de vista dos indígenas, é preciso preservar o etnodesenvolvimento, no contexto da sustentabilidade, preservando sempre os grupos isolados, que hoje estão situados basicamente no Vale do Javari, e os yanomamis. Temos o maior cuidado porque realmente é preciso um trabalho até que cada grupo defina seu próprio destino. Em relação aos demais grupos indígenas, estamos procurando apoiá-los em todas as dimensões de proteção aos seus costumes, tradições e sobrevivência.

No plano da infraestrutura, o MPF tem tido um grande trabalho. Temos hoje a participação de grupos de trabalho que analisam previamente licitações, contratos públicos e empreendimentos que tenham relevo social para as comunidades, para evitar que haja suspensão, proibição ou interrupção de grandes obras. Todos sabem que o Brasil tem aproximadamente R$ 800 bilhões enterrados em obras paralisadas. Nossa contribuição hoje é no sentido de que, agindo preventivamente, nós não desistimos de acompanhar os trabalhos de execução dos contratos públicos e de grandes empreendimentos privados que afetam a coletividade. 

ConJurA PGR foi bastante criticada por uma suposta blindagem ao presidente Jair Bolsonaro. O que o senhor pensa dessas críticas?
Augusto Aras — Houve uma campanha dos meus adversários desde o dia em que eu fui nomeado, e ela continua até agora. Uma campanha que eu sou obrigado a aceitar, como democrata que sou. Eu respondo a essa campanha com ações que modificaram 30 anos desta casa. Esta casa evoluiu 30 anos internamente. Em todos os aspectos. Externamente, nós produzimos mais do que nos 12 anos anteriores.

Fizemos oito inquéritos contra o presidente Jair Bolsonaro. Temos quase 450 pessoas com prerrogativa de foro no Supremo e no Superior Tribunal de Justiça que foram presas, afastadas, investigadas ou estão respondendo a processos. Cassamos dois governadores; denunciamos um governador, um vice-governador e mais 14 secretários de estado. Temos mais o afastamento de um terceiro governador, que voltou depois das eleições, o de Alagoas (Paulo Dantas, do MDB). Temos mais quatro ou cinco governadores de estado sendo investigados. Ninguém produziu mais do que nós, sem escândalo, estardalhaço, vazamentos e perseguição. Ninguém nunca moveu tantos procedimentos para combater a corrupção como nós, com o zelo devido a cada cidadão.

Cada pessoa pública é, antes de tudo, um cidadão com família, com localização na sociedade e uma imagem pública. Alguns segmentos da imprensa não compreendem que a posição da nossa gestão deveria ter sido sempre a seguida nesta instituição. Desde Sepúlveda Pertence, desde Aristides Junqueira de Alvarenga, quando tudo se fazia como nós fazemos: sem condenar previamente pessoas envolvidas em algum evento ilícito. Nós herdamos o devido processo legal e, historicamente, essa é a maior marca do processo civilizatório, especialmente ocidental.

Mil mentiras não fazem uma verdade. É preciso que a imprensa comece a repudiar Goebbels, e não prestigiar. A imprensa tem prestigiado muito o Goebbels. Eu posso desmontar cada mentira difundida nos três anos e dois meses em que estou aqui. Não vou culpar o jornalista. São meus adversários quem plantam as mentiras. Algumas não compensam responder, porque é replicar a mentira. As que são relevantes nós respondemos oficialmente no nosso site. Nosso site tem centenas de respostas. 

Sempre há uma campanha aqui dentro contra esta gestão. Estamos com o trabalho em dia, mas tem sempre alguém dizendo que o procurador ia perder o prazo. O Judiciário chega a demorar 20 anos para julgar um caso, cinco anos, dez anos para julgar, mas eu nunca vi a imprensa cobrar que um caso só foi julgado depois de 20 anos. Só vejo uma campanha contra a nossa gestão no sentido de que os prazos impróprios foram descumpridos. Prazos de 24 horas e 48 horas, quando a própria lei que rege a matéria dentro do Supremo diz que o menor prazo é de cinco dias. 

Nossa gestão é o resultado de um inconformismo meu acerca do que vi aqui nos últimos 20 anos e não concordo. Junto a mim, vieram mais 30 colegas. O fato é que eu fiz a reestruturação desta casa.

ConJur — O senhor acredita que seus sucessores resistirão à tentação de retomar os linchamentos públicos como ferramenta de trabalho?
Augusto Aras — O Ministério Público do passado, aquele que vivia de linchamentos, não pode subsistir. A cultura implantada nos últimos anos, na nossa gestão, é a do respeito à Constituição e às leis, especialmente ao devido processo legal, com a preservação dos princípios da boa-fé, e também da busca da preservação do investigado, do réu e da vítima, para que todos tenham igual tratamento.

Esse tem sido nosso trabalho por excelência. Creio que quem vier a nos suceder terá sempre um paradigma de respeito a direitos e garantias fundamentais muito caros à sociedade e ao Estado brasileiro. Nossa democracia exige isso. Não é mais possível que o Ministério Público, tão pleno de membros qualificados, precise linchar. Isso é algo que atenta contra o processo civilizatório, contra todos os valores da Constituição e contra nosso processo histórico. É preciso que respeitemos cada cidadão. O fetiche de sangrar quem quer que seja, como atividade institucional, é coisa que nós repudiamos e rejeitamos. Não aceitamos e não aceitaremos jamais. O dever de atuar em defesa da sociedade como órgão do Estado passa, acima de tudo, pelo respeito à Lei Maior e às leis do país.

O MP precisa fazer sua autocrítica e preservar os valores que formam a sua criação histórica. O Estado de Direito é o Estado do império da lei. Ele se opõe ao "Estado do capricho e da pessoalidade". Isso está na Constituição. Precisamos de uma instituição impessoal e republicana, como o próprio título diz: procuradores da República. Ou seja, procuradores que preservam a igualdade de oportunidades para todos e que têm o dever de velar pela correta aplicação da lei, sem desrespeito ao que se aprende nas faculdades de Direito. E precisamos apenas de uma melhor compreensão da imprensa. O nosso trabalho haverá de seguir em frente com outros colegas. E esse trabalho nosso precisa preservar a velha lição de que os membros do MP e da magistratura falam nos autos e não devem atuar com base em seus caprichos.

ConJurA polarização política cresceu de um ano para cá e está levando a casos de violência. Como a PGR está atuando para conter os grupos que não aceitam o resultado eleitoral?
Augusto Aras — Estamos, desde 2021, monitorando grupos que poderiam representar perigo à sociedade e ao Estado. Dessa forma, no 7 de setembro de 2021 não houve nenhum movimento. Foi pacífico e ordeiro. Nós comemoramos, embora nossos adversários tenham criticado nossa comemoração. Certamente eles não sabiam o quanto nós trabalhamos para apagar os incêndios e os pequenos focos de instabilidade criados em diversos estados. Continuamos esse trabalho em 2022. Passamos o 7 de setembro em paz. Vieram o primeiro e o segundo turnos também em paz. Ontem (dia 12, quando manifestantes ameaçaram invadir a sede da Polícia Federal em Brasília e atearam fogo em carros), lamentavelmente, foi a primeira vez em que houve uma situação.

Essa irresignação de alguns, pelo menos por enquanto, não pode ser imputada a nenhum partido ou candidato. Precisaremos de tempo para investigar e saber qual a dimensão. Até porque não podemos acusar partidos. Por enquanto, há muita especulação e nós, dentro de um Estado democrático de Direito, não podemos fazer acusações levianas, temerárias e que demandam identificação de autoria. Essa gestão tem se pautado na discrição e presume todos como inocentes até que se prove o contrário. Há uma regra milenar no Direito, de que a boa-fé se presume e a má-fé se prova. Nós temos o devido processo legal a cumprir e vamos investigar o que houve e qual a dimensão das participações. Temos de ter cautela. 

O processo democrático é esse. É preciso que se respeite os contrários. E é preciso que tenhamos respeito à diversidade de pensamento, de ideias, e à liberdade de expressão. Liberdade de expressão não se confunde com violência. É o primeiro e último dos princípios que a Constituição assegura no regime democrático. 

ConJurO senhor dialogou com militares em momentos de turbulência. Como foram essas conversas?
Augusto Aras — Conversei várias vezes com os comandantes das Forças Armadas e ministros da Defesa, da perspectiva de preservar a paz e a harmonia social. Esses comandantes tiveram o comportamento democrático que se espera. Nunca deixei de lembrar pessoalmente a todos que me rodeiam que esses comandantes são homens da mesma geração que a minha. São homens com uma formação profunda sobre civilidade, democracia e geopolítica. Ninguém vira comandante sem passar por uma formação profunda. 

Nossa perspectiva sempre foi a de trabalharmos juntos com todas as entidades dos estados brasileiros. Com isso, tantas vezes contei com o apoio das gestões (no Supremo Tribunal Federal) dos ministros Dias Toffoli e Luiz Fux, e, mais recentemente, da ministra Rosa Weber, no diálogo para preservar a paz e a harmonia social. O Ministério Público não é protagonista do rompimento da ordem jurídica e muito menos catalisador de violências de qualquer natureza. Estamos aqui para garantir que a ordem jurídica preserve o regime político democrático e para defender os interesses sociais e individuais. Essa é nossa tarefa constitucional. De maneira que é nosso dever apurar responsabilidades se outras instituições ou agentes públicos saírem desse esquadro. Não nos furtamos a isso, mas cumprimos nosso dever dentro da Constituição e das leis. Não fomos, em nenhum momento, acusados de sair do nosso quadrado. Quem sair desses limites estará praticando atos antidemocráticos. 

ConJurO que o senhor pensa sobre a responsabilização criminal dos manifestantes que fecharam rodovias? É possível ou é inconstitucional?
Augusto Aras — É preciso distinguir o que é manifestação, o que é liberdade de expressão, e se essa liberdade atinge bens juridicamente protegidos. Atos de violência e vandalismo podem ter consequências diversas. As leis penais punem atos de vandalismo, danosos ao patrimônio público e privado, e, subsidiariamente, quando esses atos atentam contra um regime político e buscam subverter o regime político. Aí passa-se a ser antidemocrático. Esse é o grande desafio da ordem jurídica: fazer essa distinção entre o que é liberdade de expressão e o que, saindo do campo de um direito e de uma garantia, arranha o sistema jurídico. Mas arranha em que plano? No plano do propósito de atentar contra o regime democrático ou, não chegando a tanto, apenas atinge o patrimônio público e privado? Nosso sistema jurídico prevê ambas as hipóteses e isso faz parte de todo o nosso trabalho no sistema de Justiça. Polícia, Ministério Público e magistratura precisam fazer essa avaliação. 

O que não podemos é ter ideias pré-concebidas. Ter como verdadeiro aquilo que convém a alguns ou não convém a outros. Precisamos trabalhar com elementos que provam, elementos técnicos para compreender a dimensão do fato social relevante. O desafio do sistema de Justiça é distinguir o que são efetivamente atos antidemocráticos e o que são atos de vandalismo. Tudo deve ser feito pelo sistema de Justiça, sem estardalhaço, escândalo, sem pré-julgamentos, sem vazamentos seletivos, sem perseguição seletiva, sem condenação persecutória. Esse é o nosso mantra. 

ConJur Quais serão as prioridades do senhor daqui até setembro de 2023, quando acabará o mandato? 
Augusto Aras — A Amazônia e o combate ao crime organizado. Em três anos eu criei, junto com a Universidade de Lavras, que contribuiu bastante com o MPF em toda a parte técnica, uma ferramenta chamada GeoRadar. Em dez segundos eu lhe digo onde está a invasão na Amazônia, a queimada, uma nova trilha de traficantes, quando antes demoravam cinco meses. Coloquei 30 novos ofícios na Amazônia, onde só tinham oito. Adquirimos, com recursos próprios, sem nenhum acréscimo de dinheiro público nacional ou internacional, cinco embarcações profissionais para transportar nossos colegas servidores nos rios do Pará.

Foram fechadas duas aeronaves anfíbias. Uma vai para Belém, para atender a membros e servidores, e a outra para Manaus. No próximo ano, teremos mais uma aeronave anfíbia com 16 lugares e mais três helicópteros, um para cada local da Amazônia. Esse é um investimento de aproximadamente R$ 300 milhões do nosso orçamento, que nós economizamos. Não se trata de aviação para servir a ninguém daqui. É operacional para atender aos membros deste arco amazônico, para que tenhamos a presença do Ministério Público da União em toda a Amazônia. Com essas atividades, nós começamos não só a preservar o meio ambiente sustentável, mas a enfrentar as organizações criminosas. Nós teremos a presença do Estado pela primeira vez tomando conta do que é seu. 

O ano de 2023 será o grande ano dos Gaecos (Grupos de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado) federais, porque estaremos com todos concluídos. Nós, em 2023, teremos a sagrada missão de defender a nossa pátria e enfrentar o crime organizado. Os Gaecos federais estarão em conexão com os Gaecos estaduais, com as polícias federais e estaduais e com toda a estrutura do sistema de Justiça voltado ao combate à macrocriminalidade. Há sinais de que hoje o Brasil sofre um profundo ataque de organizações internacionais em consórcio com as nacionais. Então teremos um grande trabalho a fazer, sem dia para acabar. Concluída minha gestão nesta casa, fica para mim a satisfação, especialmente quanto à Amazônia.

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