Opinião

Quase tivemos supremas cortes estaduais para algumas matérias

Autor

  • Rogério Reis Devisate

    é advogado membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias da Academia Internacional de Direito e Ética da Academia Fluminense de Letras do Instituto Federalista e da União Brasileira de Escritores presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da União Brasileira dos Agraristas Universitários (Ubau) membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ e do Ibap autor de vários artigos e do livro Grilos e Gafanhotos Grilagem e coordenador da obra Regularização Fundiária: Experiências Regionais.

15 de dezembro de 2022, 13h16

O Agravo em Recurso Extraordinário nº 1.325.815-SP foi, pela prestigiosa Presidência do Supremo Tribunal Federal, afetada à Repercussão Geral — Tema 1.155, com o seguinte teor: "inadmissibilidade de recurso extraordinário por ofensa reflexa à constituição e/ou para reexame do quadro fático-probatório".

Pelo contexto, a última palavra a respeito seria dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, sequer subindo à Suprema Corte os recursos que debatessem ofensa mediata ou reflexa ao texto constitucional ou a necessidade de revaloração ou revolvimento do conteúdo fático-probatório.     

O STF buscou a oitiva do douto Conselho Federal da OAB.

Diante da envergadura do tema, dos reflexos para os jurisdicionados e para a douta e prestigiosa comunidade jurídica e alvitrando colaborar com o debate, como Amicus Curiae peticionamos em 26.7.2021.

Tese apresentada, como amicus curiae
O Tema 1.155 da Repercussão Geral trazia consigo aspectos que ultrapassavam os limites do Sistema Jurídico vigente, nascido e decorrente da Carta Política de 1.988, indo muito além do verbete 279 [1], da Súmula da Suprema Corte, porquanto, doravante, simplesmente a última palavra a respeito seria dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, em verdadeira delegação de competência, sem previsão no texto constitucional.

Daí, desenvolvemos petição com as seguintes teses, aqui, com breves trechos reproduzidos do original:

Confederação e Federação
Sistema federativo e repartição constitucional de competências

A história dos povos e das nações se constrói pelo encadeamento dos acontecimentos. Nada acontece por acaso. Tudo está interligado e em infinita evolução.

O assunto representa mais do que parece e se propõe a um salto histórico, quiçá modificando a estrutura reinante no Sistema Jurídico.

Nós  que há muito atuamos perante o Supremo Tribunal Federal  sabemos que imensurável é o volume de processos nos quais a pretensão recursal é negada por debater ofensa reflexa ou mediata ao texto constitucional ou por exigir o garimpo dos profundos veios fático-probatório.

Todavia, por meio dos Agravos em Recurso Extraordinário não se negava o acesso do cidadão jurisdicionado à Suprema Corte. Doravante, tudo mudaria, pois o Tema 1.155 da repercussão geral introduz um novo paradigma, que merece detida análise.

Confederação e Federação
Direitos e conformação estatal

Nas suas raízes, a causa remota do federalismo americano era a Confederação, diferentemente do que ocorreu no Brasil — e isso é de extrema importância para a análise do tema proposto.

Em primeiro lugar, devemos buscar as bases da Declaração de Direitos da Constituição dos Estados Unidos da América, de 1787, cujas raízes filosóficas focavam nos direitos individuais e no direito de revolução — registre-se, contra a Inglaterra. Assim, estavam protegidas as liberdades fundamentais e individuais dos cidadãos nos EUA, definindo o sistema de governo federal, a jurisdição e os direitos básicos das pessoas.

Não seria errado dizer que nos EUA a soberania é "dividida" e que cada indivíduo é, ao mesmo tempo, cidadão da federação e do seu estado federado. Tal ocorre porque, nas origens, a autonomia de cada um dos Estados que formaram a Confederação teve de "abrir mão" da sua soberania em prol de um órgão maior, central, daí formando a ideia de uma nação que representasse essa união de tantos em prol de um forte maestro central, surgindo daí o nome de EUA.

Ora, lá a Confederação se conformou em Federação a partir da consolidação desse vigor unitário entre os então Estados Soberanos independentes — as 13 ex-colônias originais — e o povo transferiu poderes para o governo federal, concluindo-se que o que não foi delegado remanesceu com cada ente estatal. Por isso víamos tantas diferenças no agir de cada Estado, como a previsão de pena de morte, etc.

Isso difere em tudo da nossa condição nacional.

A Suprema Corte do Brasil pode receber qualquer assunto. São milhares de casos, todos os anos e é notório que há sobrecarga de trabalho. Nos EUA, a Supreme Court não recebe tantas demandas e seleciona uns 100 casos para julgamento nos períodos em que se reúne, de outubro a junho.

Observemos, assim, a falta de uma natural origem causal na federação fixada pela Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 1891, optando logo por uma união indissolúvel e pelo afastamento da possibilidade de secessão, comum às confederações — uma solução republicana, até para que se proteger a República recém nascida de hipotéticas investidas dos monarquistas [2].

Portanto, no Brasil, não existiu a transição da Confederação para Federação, apenas a ressignificação das antigas províncias do Império em estados federados e, nesse contexto, poderíamos registrar que já éramos Estado Unitário, com poder centralizado e monístico, desde as origens. A Constituição de 1891 cometeu aos estados as terras devolutas e muitas atribuições, como já registramos [3]  o que fortaleceu os "coronéis" locais e alimentou movimentos e revoltas como as das décadas de 1920, a Revolução de 1930 e a Revolta de São Paulo, em 1932.

Foi desconcentração ou "descentralização imposta pelos redatores da Constituição Republicana de 1889/91, que quiseram desfazer a supercentralização do Império (1822-89), para eles nociva ao país", como explica Thomas E. Skidmore [4] , que acrescenta: "De 1930 até 1945, Vargas lutou para substituir essa quase confederação por um Executivo Federal forte […] Depois da queda de Vargas, em 1945, esses líderes estaduais pró-Vargas se mostraram receptivos à ordens de outros ocupantes do poder nacional, comprovando que Vargas criara um sistema de governo nacional que lhe sobreviveria".

Sabemos que o juízo de admissibilidade ocorre tanto na ambiência da Suprema Corte quanto nos tribunais de origem, sejam estaduais ou federais. Se a questão do Tema 1.155 vier a prevalecer, ter-se-á uma situação curiosa, porquanto serão os tribunais inferiores que terão a única e última palavra nos recursos dirigidos ao Supremo Tribunal Federal!

Delegata potestas, delegari non potesti
A frase em latim nos aponta a diretriz de que, na Democracia e no regime republicano, as competências e atribuições são definidas por norma votada pelo Parlamento e, portanto, indelegáveis.

No caso das competências fixadas pela Carta Política de 1988, parece que a relevância do comando aumenta em valor e proporção. […] Portanto, é crível se concluir que o poder que se recebeu por delegação legal não pode ser subdelegado [5].

Assim, salvo melhor juízo, pelo Tema 1.155 se teria a possibilidade de um tribunal não constitucional negar o direito material e recursal à parte que busca tutela constitucional… Outrossim, não se trata de controle difuso de constitucionalidade, mas de pretensão jurídico-processual em típicos recursos de vocação constitucional.

Ademais, a generalização não é útil e salutar, exatamente por permitir tipos abertos a interpretação de toda sorte. […] Assim, a ideia de se transferir parcela da atribuição da Suprema Corte representaria a delegação de "superpoderes" aos tribunais locais, sejam federais ou estaduais. […] A tese pode ser boa e revestida dos melhores propósitos e intenções, mas traz consigo a revelação de uma "porta" estreita demais, a ser gerenciada por quem não tem a atribuição de Corte Constitucional. E se houver excesso, quem e como se o corrigirá?

Em lugar de "delegação" genérica por "repercussão geral" talvez o caminho pudesse vir a ser outro, por meio de Projeto de Emenda Constitucional, que poderia colocar o debate em outro patamar, discutindo-se com o Parlamento as vantagens ou não do sistema proposto. […] penso que a máxima latina Delegata Potestas Delegari Non Potesti nos assombra com o seu vigor, lucidez e atualidade e não se dispensa um ensinamento histórico tão lógico e testado.

Conclusão
Por fim, com as ponderações suso e diante das perceptíveis repercussões da matéria, sustenta a rejeição da repercussão geral proposta…. (Trechos da nossa Petição, protocolizada sob o nº 73787, em 26.7.2021).

Decisão do STF
A prestigiosa e douta Presidência do Supremo Tribunal Federal, em 08.9.2022, profere decisão, cancelando o Tema 1.155 da Repercussão Geral, com os seguintes fundamentos: "RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. TEMA 1.155 DA REPERCUSSÃO GERAL. CANCELAMENTO. DESPACHO: Considerando a relevância e a peculiaridade da proposta de tese no Tema 1.155, a necessidade de aprimoramento no que concerne à eficiência do sistema de precedentes na realidade brasileira, como se observa pela provocação temerária do Poder Judiciário até a 'última instância' para rediscussão de questões já decididas, entendo que a construção de uma tese como a propugnada nestes autos demanda maior reflexão e amadurecimento da comunidade jurídica. […] DETERMINO o CANCELAMENTO do Tema 1.155 da repercussão geral. Publique-se e intime-se. Brasília, 8 de setembro de 2022. Ministro LUIZ FUX presidente".

Assim, permanece íntegro o Sistema Jurídico vigente, com a não delegação das cogitadas competências da Suprema Corte para os Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal.


[1] STF – Súmula 279: Para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário.

[2]

[3] DEVISATE, Rogério Reis. Grilagem das Terras e da Soberania. Rio de Janeiro, Ed. Imagem, 2017.

[4] SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio a Castello (1930-64), tradução Berilo Vargas. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 68 e 70.

[5] DEVISATE, Rogério Reis. Delegata Potestas Delegari Non Potest. Parecer. 1998. Revista DPGE/CEJUR, nº 12.

Autores

  • é advogado (RJ), membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias, da União Brasileira de Escritores e da Academia Fluminense de Letras, presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da Ubau, membro da Comissão de Direito Agrário da OAB-RJ, defensor público (RJ) junto ao STF, STJ e TJ-RJ, associado ao Instituto Brasileiro de Advocacia Pública (Ibap) e ao Instituto Federalista e autor de vários artigos e dos livros Grilos e Gafanhotos Grilagem e Poder, Diamantes no Sertão Garimpeiro e Grilagem das Terras e da Soberania.

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