Controvérsias Jurídicas

Breve histórico das legislações sobre segurança nacional e a Lei nº 14.197/21

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

15 de dezembro de 2022, 17h04

Uma das características mais marcantes do último período eleitoral foi a entrada da Lei de Segurança Nacional no debate político. Tal fato se deveu, basicamente, em razão de inúmeras personalidades e políticos terem tecido críticas a autoridades do Poder Judiciário, ensejando a abertura de procedimentos investigativos no Supremo Tribunal Federal. Todavia, por ser considerada herança legislativa da época da ditadura militar (1964-1985), tinha sido poucas vezes utilizada desde o processo de redemocratização do país.

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Não é exclusividade brasileira possuir em seu ordenamento jurídico uma lei específica para atender às necessidades de segurança do Estado. Tampouco é produto da sociedade contemporânea, encontrando legislações similares em outros períodos históricos. No Brasil, já foram editadas diversas leis que versavam sobre esse conteúdo, sendo que a mais antiga delas, datada do ano de 1935 (Lei nº 38), definia os crimes militares e os delitos contra a segurança do Estado. Posteriormente, editou-se a Lei nº 1.803/53, que além de definir quais seriam os delitos contra o Estado, também conceituava as ações que atentavam contra a ordem política e social e o Estado e Direito.

Em 1967, o Decreto 314 transformava em lei a denominada "Doutrina de Segurança Nacional", consistente no estabelecimento dos fundamentos de uma política de proteção ao Estado num contexto de Guerra Fria e de intervenção militar. Substituído pelo Decreto 898/69, o objetivo precípuo ainda consistia na construção de uma política de proteção do Estado contra "inimigos". Idealizada pelos generais Golbery do Couto e Silva e Pedro Aurélio de Góis Monteiro, a política de defesa nacional da época buscava identificar as ameaças internas e externas à estabilidade do Estado, principalmente no que tange a atuação de grupos financiados pela extinta União Soviética.

A Lei nº 6.620/78 não foi inovadora, mantendo basicamente todas as premissas estabelecidas no decreto de 1969, excetuando-se o abrandamento da reprimenda para alguns tipos. Finalmente, a Lei nº 7.170/83 foi a que regulamentou a matéria até os dias atuais, quando foi revogada pela Lei nº 14.197/21. Representando os estertores da ditadura militar, seus mandamentos possuíam cunho evidentemente autoritário, tendo em vista que ao tempo de sua edição constatava-se aumento considerável da pressão popular pela abertura política, resultando no movimento pelas Diretas Já. Nesse cenário, o governo militar buscou instituir uma LSN de caráter transitório, que atendesse em parte as demandas populares enquanto protegia o regime político e seus membros.

A característica opressora da lei pode ser facilmente identificada nos arts. 16 e 17, cujo texto criminalizava a tentativa de "mudança do regime vigente", com o objetivo de se preservar a unidade de pensamento e reprimir eventuais antagonismos políticos. Porém, tais determinações se mostrariam totalmente incompatíveis com a Constituição de 1988, resultado final de um longo processo de redemocratização que estabeleceu a base principiológica da República, com as garantias das inviolabilidades e liberdades individuais.

Publicada em 2 de setembro de 2021, passando a vigorar depois do período de vacatio legis de 90 dias, a nova lei tipifica os novos crimes contra o Estado democrático de Direito, estabelecendo competência para julgamento e respectivas penalidades. As novas disposições legais foram introduzidas no Código Penal com o acréscimo do Título XII, a fim de facilitar sua interpretação conjunta com o ordenamento penal.

Seu principal desafio, contudo, foi equilibrar a defesa da democracia, soberania e integridade do país, sem aviltar o direito fundamental de liberdade de expressão. De forma geral, a lei tipifica os crimes de atentado à soberania, atentado à integridade nacional, espionagem, abolição violenta do Estado democrático de Direito, golpe de Estado, interrupção do processo eleitoral, violência política e sabotagem. Ressalte-se que a própria lei determina sua inaplicabilidade em casos de manifestações críticas contra algum dos Poderes, atividades jornalísticas ou reivindicação de direitos e garantias constitucionais por meio de passeatas, reuniões, greves, aglomerações e manifestações políticas e sociais.

Vale destacar alguns vetos ao texto original. Um dos artigos da nova Lei de Segurança Nacional tipificava a comunicação enganosa em massa, promovendo ou financiando campanha ou iniciativa que disseminasse notícias falsas, determinando pela de reclusão de um a cinco anos, e multa. A justificativa do veto versou acerca da dubiedade de quem seria objeto da criminalização, se a pessoa que criou a "fake news" ou quem a compartilhou. No que tange ao direito de manifestação, o capítulo que tratava dos crimes contra a cidadania incluía no Código Penal o tipo de atentado a direito de manifestação. O veto foi justificado pela impossibilidade de se determinar, no momento da ação operacional, o que viria a ser uma manifestação pacífica.

Também foi objeto de veto presidencial o dispositivo da nova lei que previa o aumento pela metade das penas para militares que cometessem crimes contra o Estado democrático de Direito, cumulado com a perda do posto, patente ou graduação. Em linhas gerais, o veto fundou-se na argumentação de que o texto "viola o princípio da proporcionalidade, colocando o militar em situação mais gravosa que a de outros agentes estatais, além de representar uma tentativa de impedir as manifestações de pensamento emanadas de grupos mais conservadores".

Também foram vetados os dispositivos da LSN que previam causa de aumento de pena caso o crime fosse cometido com o emprego de violência ou grave ameaça mediante arme de fogo ou, ainda, se fosse cometido por funcionário público. Nesses casos, a nova lei também previa como pena a perda do cargo ou da função pública exercida pelo agente. A fundamentação para o veto se deu no sentido de que "a proposição contraria o interesse público, pois não pode se admitir o agravamento pela simples condição de agente público em sentido amplo, sob pena de responsabilização penal objetiva, o que é vedado".

Por mais que possa parecer incompatível com os fundamentos de um Estado democrático de Direito, é necessário que existam mecanismos legais de punição para pessoas que, utilizando-se das liberdades garantidas na democracia, tentem destruí-la. Caso similar ocorreu nos Estados Unidos pós atentado ao World Trade Center e Pentágono, em 11 de setembro de 2001. Naquele contexto foi editado o que se denominou de Patriotic Act, lei pela qual o Estado norte-americano bloqueava o exercício das liberdades consagradas em sua Constituição para grupos terroristas que visavam instaurar o terror e implodir o sistema democrático.

À época, o que se debatia era que os grupos terroristas e organizações criminosas praticavam seus atos sob a garantia da inviolabilidade de comunicação, inviolabilidade de sigilo bancário e liberdade de associação, sendo que se o Estado tivesse agido para mitigar alguns desses direitos, possivelmente o pano terrorista teria sido descoberto, impedindo os trágicos acidentes.

A contemporaneidade nos mostra que os processos de ruptura institucional não ocorrem como em tempos passados, com golpes empunhando baionetas ou com tanques nas ruas. Mas sim de forma insidiosa, dissimulada e gradual.

Também, há de se dizer que a nova lei possui conteúdo não tão autoritário como das legislações anteriores. No decorrer das ditaduras Vargas e militar, leis correlatas permitiam a incomunicabilidade por mais de dez dias daqueles que estivessem sob a custódia da Justiça Militar, prevendo como pena para alguns crimes a morte ou prisão perpétua.

Porém, em que pese sua necessidade para a defesa dos fundamentos do Estado democrático de Direito, a nova Lei de Segurança Nacional (Lei nº 14.197/21) está longe de ser um consenso e seu conteúdo vago e abrangente, com tipificação genérica, permite toda forma de manipulação, mediante construção retórica ao talante da autoridade incumbida de sua aplicação. É necessária cautela quando se trata de restrição a direito fundamental, sob pena de, em nome da preservação do Estado democrático de Direito violar seus princípios fundamentais.

Autores

  • é advogado, procurador de Justiça aposentado do MP de SP, mestre pela USP, doutor pela PUC, autor de obras jurídicas, ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP, do Procon-SP e ex-secretário de Defesa do Consumidor.

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