Opinião

"Revisão da vida toda": variações sobre o mesmo tema

Autor

  • Diego Henrique Schuster

    é advogado professor doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro da atuação jurídica do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP).

14 de dezembro de 2022, 15h16

A tese da "revisão da vida toda" foi chancelada pelo Supremo Tribunal Federal. Sim, chancelada! A palavra indica autorização e aval, mas também garantia. E, portanto, aporta uma tal segurança para se buscar o reconhecimento de tal direito na justiça. É bem verdade que o STF poderia fazer um "apelo" à autarquia, digo, para tal interpretação vincular em todas as esferas, como no caso do Tema 555/STF.

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INSS

O Supremo, no julgamento do Tema 1.102, acertou: o segurado pode optar pela não aplicação de regra de transição mais gravosa que a regra geral (permanente), desde que preenchidos os requisitos legais desta última. Na prática, o segurado, mesmo filiado antes 29/11/1999, que preencher os requisitos ensejadores do benefício, na vigência da Lei 9.876/1999, tem direito de optar pela concessão do benefício nos termos dessa última, com a consideração de todos os salários-de-contribuição.

A tese da "vida toda" é, antes de qualquer outra coisa, uma conquista hermenêutica, vale dizer: contra uma aplicação mecânica das regras (o método silogístico/subsuntivo). É bom lembrar, mas o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 630.501/RS, foi além. Nesse precedente de observação obrigatória restou claro que o segurado tem direito a escolher o benefício mais vantajoso, "conforme as diversas datas em que o direito poderia ter sido exercido", vale dizer: o direito adquirido preserva  também —  situação fática já consolidada mesmo ausente modificação no ordenamento jurídico.

No entanto, esse e outros aspectos acabam passando batidos, em razão do apelo prático da revisão. O julgamento do Tema 1.102/STF reafirmou três indagações importantes, quais sejam: 1) estamos diante de um direito fundamental-social; 2) o pedido de revisão pode ser, em situações similares, universalizado, quer dizer, concedido às demais pessoas; e, para atender esse direito ao melhor benefício, 3) o sistema não está fazendo uma transferência ilegal-inconstitucional de recursos, vale dizer: capaz de ferir a igualdade e a isonomia! [1].

Aliás, dum ponto de vista hermenêutico, a tese da "vida toda" vem confirmar que quem já possui direito adquirido às regras antigas, mas completa os requisitos ensejadores de uma regra de transição depois de 13/11/2019, terá como optar pela regra mais vantajosa. Tomamos como exemplo uma professora com 51 anos de idade e 25 anos de magistério, antes de 13/11/2019. A segurada já possui direito adquirido a uma aposentadoria do professor, com incidência do fator previdenciário. A ela, contudo, será possível a aplicação da RT4 (EC 103/2019, artigo 20), para ver reconhecida uma aposentadoria do professor, sem aplicação do fator previdenciário. Note-se que, ainda em 2020, ela completa os 52 anos exigidos, sendo desnecessário o cumprimento do pedágio de 100%, em razão do cumprimento dos 25 anos de contribuição antes da promulgação da Emenda Constitucional…

Tudo isso é muito bom e bonito. Agora, ao contrário do que possa sugerir para o senso comum, a tese da "vida toda" não significa a possibilidade de revisão a qualquer tempo da aposentadoria. O prazo decadencial incide em relação ao ato de concessão do benefício (com aplicação da regra de transição —  artigo 3º da Lei 9.876/1999). Os temas até agora julgados pelas instâncias superiores (313/STF, 966 e 975/STJ, para citar apenas estes) não deixam espaço para a "actio nata", quer dizer, mesmo que a tese tenha se tornado juridicamente viável somente agora, com o selo jurídico do STF, o prazo decadencial continua a contar do primeiro dia útil do mês subsequente ao recebimento da primeira prestação do benefício. Oportuno sublinhar aquelas situações em que protocolado um pedido de revisão (específico) dentro do prazo de dez anos, devendo ser observado o segundo termo para contagem do prazo decadencial, qual seja, da ciência do indeferimento do pedido de revisão, conforme Tema 256/TNU.

Aqui vai um alerta: é possível não apenas o advogado como também o juiz admitir como verdadeiro um fato inexistente, qual seja, de que o recebimento da primeira prestação do benefício gravita em torno da DIB/DER. Cuidado com aqueles benefícios concedidos na justiça, quer dizer: implantados anos após o requerimento administrativo [2].

No embalo das hipóteses autorizadoras da ação rescisória ("erro de fato"  CPC, artigo 966, VIII, §1º), já temos como responder: sim, cabe ação rescisória com fundamento em lei declarada (in)constitucional pelo STF (artigo 966, V c/c §§15 e 8º, dos artigos 525 e 535). A retroatividade da decisão paradigma só encontra limites numa possível modulação de efeitos e, por óbvio, no prazo decadencial (para a ação rescisória). Sobre este último, o termo inicial aplicado pelos tribunais é o trânsito em julgado da decisão rescindenda — o que merece discussão e, até mesmo, refutação [3]. Aqui não incide o Verbete 343, uma vez que inexiste posição prévia contrária no próprio STF.

Na ação rescisória teremos, cumulativamente, a rescisão da decisão fundamentada em lei declarada inconstitucional pelo STF e, na sequência, um novo julgamento do processo primitivo (CPC, artigo 968, I), logo, deve ser observado o prazo decadencial de acordo com a data em que ajuizada a ação originária, ou seja, se a ação que transitou em julgado foi ajuizada dentro do prazo decadencial, nada muda em relação a isso. Tudo isso serve de pretexto para se incluir uma crítica, qual seja, no âmbito dos juizados especiais federais é vedada a ação rescisória (Lei 9.099/1995, artigo 59). A pergunta  perturbadora  é a seguinte: Uma decisão transitada em julgado no âmbito dos juizados especiais federais vale mais? Ela é inquebrável? [4].

Falaremos mais sobre isso, com certeza. A Turma Nacional de Uniformização já admitiu uma nova ação, com fundamento no artigo 485, VII, do Código de Processo Civil de 1973 [CPC/2015, artigo 966, VII) [5]. A 3ª Turma Recursal do Rio Grande do Sul admitiu ação anulatória em relação à hipótese prevista no inciso VI do artigo 485 do CPC [CPC/2015, artigo 966, VI).[6] Assim como já se cogitou a possibilidade de revisão do que foi estatuído pela sentença de improcedência, colocando a decisão com repercussão geral no mesmo nível de uma alteração do estado de direito (CPC, artigo 505, I), o que se aplica a relações de trato continuado. Poder-se-ia dizer que não há que se falar em afronta à coisa julgada, mas, e isso sim, em coisa julgada inconstitucional?

O propósito desse artigo é fazer um resgate daquilo que acaba ficando retido no discurso, enfim, apontar para aquilo que é condição de possibilidade para a compreensão de uma grande coisa [7]. O conteúdo dos direitos fundamentais-sociais não encontra mais ressonância na ideia de "tudo ou nada" da lei. Enquanto novas normas previdenciárias constituídas de perfil arbitrário e inconstitucional são editadas quase que diariamente, os princípios jurídicos, que comandam as regras devem dar a direção, e não serem anulados por conceitualizações estanques, que fogem da vida real e da história de conquistas constitucionais.

Ao fim e ao cabo, tudo vai depender do cálculo: cada caso é um caso (e isso vale para todos os casos)!

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[1] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: quarenta temas fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento, 2017. p. 259.

[2] Nesse sentido: PROCESSUAL CIVIL E PREVIDENCIÁRIO. AÇÃO RESCISÓRIA. ERRO DE FATO. OCORRÊNCIA. APOSENTADORIA POR TEMPO DE SERVIÇO. DIREITO À REVISÃO DO BENEFÍCIO. LAPSO DECADENCIAL. 1. No que diz respeito ao erro de fato, este deve decorrer da desatenção do julgador e não da apreciação da prova, consistindo em admitir um fato inexistente ou considerar inexistente um fato efetivamente ocorrido (artigo 485, §1º do CPC), como no caso em apreço, em que o Julgador monocrático desconsiderou a data em que o benefício foi efetivamente implantado, em decorrência de decisão judicial. 2. Sentença rescindida, porquanto não verificada a decadência reconhecida no acórdão rescindendo, sendo devida a revisão do benefício da parte autora. (TRF4, AR 0011511-60.2011.4.04.0000, TERCEIRA SEÇÃO, Relator RICARDO TEIXEIRA DO VALLE PEREIRA, D.E. 14/12/2012)

[3] Conforme: SCHUSTER, Diego Henrique. Especificamente o prazo para a propositura de ação rescisória por violação à norma constitucional: variações sobre o mesmo tema. Direito previdenciário pra compreender, 14 jan. 2022. Disponível em: <https://blogschuster.blogspot.com/2022/01/especificamente-o-prazo-para.html>. Acesso em 09 dez. 2022. ______. Ação rescisória com fundamento em lei declarada (in)constitucional pelo STF: do critério topológico ao conteúdo da decisão. Direito previdenciário pra compreender, 12 out. 2021. Disponível em: <https://blogschuster.blogspot.com/2021/10/acao-rescisoria-com-fundamento-em-lei.html>. Acesso em 09 dez. 2022.

[4] Felipe Borring Rocha ilustra o "absurdo" representado pela supressão da ação rescisória no âmbito dos juizados especiais, com fundamento no princípio do devido processo legal: "Prevê o artigo 59 que não se admitirá ação rescisória nas causas dos Juizados Especiais, qualquer que seja o motivo, mesmo em se tratando de sentenças nulas. Para se ver o absurdo desta situação, basta imaginar ação julgada por juiz impedido, suspeito ou corrupto, ou que ofenda a coisa julgada, a lei etc. Muito mais razoável seria, por exemplo, diminuir o prazo da ação rescisória ou seu campo de abrangência, mas não suprimi-la. Isto pode gerar situações incompatíveis com os ditames do devido processo legal. Por isso, minoritários, consideramos este dispositivo inconstitucional e incapaz de afastar a utilização da ação rescisória, nos termos do artigo 485 do CPC, julgado pelo Tribunal de Justiça". ROCHA, Felipe Borring. Juizados Especiais Cíveis: Aspectos polêmicos da Lei nº 9.099, de 26/9/1995, 5. ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 229 e 230.

[5] 0031861-11.2011.4.03.6301, Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais, relator João Batista Lazzari, j. 07.05.2015.

[6] 3ª TR/RS, RI, 5019852-30.2011.4.04.7100, relator Jacqueline Michels Bilhalva, j. 24/04/2014.

[7] O professor Lenio Streck declarou predileção pelo ouriço: "A raposa sabe muitas coisas, o ouriço sabe uma grande coisa. Sou um ouriço, e sei ver que há uma unidade em tudo que temos visto". STRECK, Lenio Luiz. Quebra do sigilo de advogado! "Matem todos os advogados", disse Dick! In: Revista Consultor Jurídico, São Paulo, 18 fev. 2019. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/…/streck-quebra-sigilo-matem…>. Acesso em: 11 nov. 2022.

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