Direito Civil Atual

Cláusula que cancela pontos de fidelidade gratuitos após morte do titular

Autor

  • Luis Felipe Rasmuss de Almeida

    é mestrando em Direito Civil da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP); graduado em Direito pela Universidade de São Paulo; membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo e editor adjunto da Revista de Direito Civil Contemporâneo (RDCC).

12 de dezembro de 2022, 11h16

Os anos que se sucederam ao término da Segunda Guerra Mundial marcaram um momento econômico conturbado e consideravelmente volátil na história mundial, e mais especificamente nos Estados Unidos. Durante o período de guerra, a economia do país foi alvo de incessante controle de preços e de locações por meio do Office of Price Administration (OPA) instituído por Franklin D. Roosevelt em 1941. Por sua vez, para financiar os gastos militares, emitiu-se diversas séries de títulos do tesouro para a população em geral (war bonds), com participação voluntária e amplamente estimulada pelo governo. O objetivo, assim, era o de conter a pressão inflacionária advinda dos gastos militares por meio da redução da moeda livremente em circulação, além de manter o controle da taxa de juros em um teto de 2,5% ao ano, reduzindo o custo de capital com fins militares [1].

ConJur
Em 1947, com a dissolução do OPA e a consequente extinção dos controles de preços, fatores aliados à taxa de juros mantida artificialmente baixa e o aumento de demanda por bens e serviços de natureza interna e externa, levaram a uma inflação de 13% ao ano, cenário que permaneceu também ao longo de 1948 [2]. A situação aos poucos viria a ser controlada, apesar da participação norte-americana na Guerra da Coreia, e os happy days da era Eisenhower que se iniciariam em 1953. Neste período, evidenciou-se considerável expansão dos gastos públicos a exemplo da corrida aeroespacial fomentada pela criação da Nasa, em 1956 , o crescimento vertiginoso do PIB e aumento do poder de compra do cidadão norte-americano médio [3]. É neste período, também, que surgem os primeiros cartões de crédito para o pagamento de bens e serviços em varejistas, a exemplo do Diners Club (1950), American Express (1958), Bank of America e Chase Manhattan (1960) [4].

Paralelamente aos novos métodos de pagamento no varejo, o desenvolvimento dos programas de fidelidade por empresas do varejo e instituições financeiras que, em geral, visam a reconhecer a lealdade do consumidor por meio da oferta de benefícios e recompensas também foi relevante durante a segunda metade do século 20 [5].

Notadamente entre as décadas de 1970 e 1980, observou-se a expansão dos chamados programas de passageiro frequente (frequent-flyer programs) por meio das companhias aéreas United (1972), Texas Airlines (1979), American (1981) e Pan Am (1982) [6]. No Brasil, os primeiros programas do gênero surgiriam em meados dos anos 1990: primeiramente, a TAM, no ano de 1993 (TAM Fidelidade), e em seguida, a Varig (Smiles, atualmente vinculado à Gol) [7]. Já ao final dos anos 2000, surgiria o programa TudoAzul, um ano após a fundação da companhia aérea.

Para além da fidelidade de companhias aéreas, houve a expansão de programas para diversos empreendimentos, a exemplo daqueles vinculados a varejistas, farmacêuticas, postos de abastecimento, hotéis e locadoras de automóveis. Estima-se que, no Brasil, mais de 68 milhões de indivíduos atualmente participem de algum programa de fidelidade, em um mercado que movimentou mais de R$ 4,4 bilhões no primeiro semestre de 2022 [8]. O crescimento tem levado a uma série de tentativas de regulamentação do tema, em matérias referentes à comercialização, extensão e validade dos pontos obtidos.

Diante desta relevante temática, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, por meio do REsp nº 1.878.651/SP [9], reconheceu a validade de cláusula contratual estabelecida pela TAM Linhas Aéreas S.A., com o seguinte teor: "A Pontuação obtida na forma deste Regulamento é pessoal e intransferível, sendo vedada sua transferência para terceiros, a qualquer título, inclusive por sucessão ou herança, dessa forma, no caso de falecimento do Cliente titular do Programa, a conta-corrente será encerrada e a Pontuação existente e as passagens prêmio emitidas serão canceladas".

Destaca-se que, na espécie, houve o ajuizamento de ação pública pela associação de consumidores "Proteste" em face da companhia aérea TAM. Narrou-se a suposta abusividade na aludida cláusula, uma vez que estaria a restringir direitos quando do falecimento do consumidor, para além de outras questões. Em primeira instância, o pedido foi julgado integralmente procedente, com a declaração de nulidade da cláusula restritiva de transferência em relação a herdeiros.

Em sede de apelação, o Tribunal de Justiça manteve a nulidade da referida cláusula em virtude de entendimento colegiado já consolidado. Em sequência, a TAM interpôs Recurso Especial perante o Superior Tribunal de Justiça, no qual sustentou a validade da referida cláusula, uma vez que 1) inexistiria abusividade em virtude de a pontuação obtida no programa de fidelidade não ser transmitida aos herdeiros do participante falecido; 2) ao ser anulada mencionada cláusula, o programa de pontuação por fidelidade seria desvirtuado pois passaria a beneficiar não necessariamente seus clientes fiéis, mas sim os herdeiros deles; 3) os pontos oriundos do referido programa não possuem natureza patrimonial; 4) haveria a potencial violação ao equilíbrio econômico-financeiro do programa; 5) a aplicação de normas do CDC ao contrato de adesão benéfico requer efetivo abuso da posição do proponente, assim como efetivo prejuízo ao consumidor, onerosidade excessiva, além de desproporção nas prestações, que estariam ausentes no caso; 6) os negócios jurídicos benéficos devem ser interpretados estritamente; e 7) o acórdão também geraria, como consequência, a nulidade da cláusula contratual que estabelece que os pontos envolvidos no mencionado programa são de propriedade da TAM, o que extrapolaria o pedido formulado pela parte autora.

Feitas estas considerações preliminares, ressalta-se uma questão antecedente bem destacada pelo ministro relator Moura Ribeiro. Atualmente, existem duas formas principais as quais se dá aquisição de pontos no âmbito de programas de fidelidade em geral: no primeiro caso, há à obtenção de pontos, a título gratuito, como decorrência de um "bônus" por fidelidade obtido no âmbito de uma aquisição de bens ou serviços principais, que é realizada pelo consumidor perante o fornecedor seja ele uma companhia aérea, uma empresa de outro ramo ou um de seus parceiros. Trata-se, neste caso, de instrumento de fidelização do consumidor ao determinado fornecedor. O segundo caso, por sua vez, diz respeito à aquisição de pontos, a título oneroso, como nas hipóteses de inscrição do consumidor em programas ancilares ao principal a exemplo de "clubes" e aceleradores de pontos. Nestas situações, há efetiva e direta aquisição dos pontos, aptos a serem trocado por bens e serviços na respectiva plataforma do programa de fidelidade.

Referida distinção mostra-se relevante para o caso em concreto, uma vez que a causa de pedir do caso dizia respeito exclusivamente a pontos obtidos de forma gratuita. Em razão disto, como bem ressaltado pelo ministro relator, o entendimento expresso no julgamento não se mostra necessariamente aplicável aos casos nos quais houve a aquisição de pontos a título oneroso. No voto condutor, o contrato foi qualificado como de adesão unilateral e benéfico, uma vez que, em seus efeitos, "gera obrigações somente à instituidora do programa, [na medida em que] o consumidor que pretende a ele aderir e dele se beneficiar, não precisa desembolsar nenhuma quantia". Ressaltou-se ainda que, em muitos casos, herdeiros nem sequer são clientes dos programas de fidelidade, o que desvirtuaria o caráter de "lealdade" vinculado aos pontos, e que em não sendo a cláusula abusiva, é de responsabilidade do consumidor a observância desta quando da adesão ao respectivo programa de fidelidade.

A decisão do STJ mostra-se tecnicamente acertada e sensata, em se considerando as peculiaridades apresentadas pelo caso e as próprias considerações feitas pelo ministro relator. Deve-se reiterar que o objeto do julgamento diz respeito à validade de cláusula restritiva à transferência de pontos gratuitos obtidos em programa de fidelidade. Não se trata, portanto, de uma restrição universal e genérica à transmissibilidade de pontos de programas de fidelidade, tampouco se aplica à aquisição onerosa de pontos. É plenamente possível que um determinado regulamento venha a estabelecer hipóteses de transmissibilidade de pontos ou milhas sob determinadas circunstâncias. O que se está a analisar aqui, portanto, é a validade da cláusula restritiva por meio de seu cotejo em face a eventual abusividade.

Dispõe o artigo 51, inciso IV, do Código de Defesa do Consumidor, que são nulas de pleno direito as cláusulas contratuais que "estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade". Não se identificam quaisquer destes elementos na cláusula do programa de fidelidade. Em primeiro lugar, em sendo os pontos adquiridos de forma gratuita e submetidos às regras do programa de fidelidade dentre as quais inclui-se um prazo de validade , cabe ao participante do programa observar o regime específico aplicável aos pontos. Em segundo lugar, em sendo o programa de fidelidade constituído com a finalidade de fomentar a relação existente entre o consumidor e o fornecedor, o falecimento daquele acaba por reconduzir ao término do interesse comercial existente entre as partes, que se reflete nas relações jurídicas antecedentes à participação no respectivo programa de fidelidade. Ainda que eventual interesse comercial possa vir a existir entre o fornecedor e os herdeiros, tal hipótese constituiria mera faculdade do fornecedor, não sendo um direito transmissível e tampouco de natureza patrimonial.

Os benefícios decorrentes de uma relação comercial antecedente da qual participam o consumidor e o fornecedor ou parceiro do programa , a exemplo do caso dos autos, correspondem a mera liberalidade do fornecedor. Além disso, a participação em programas de fidelidade é facultada a consumidores por meio de regulamentos que, via de regra, não estabelecem contraprestação pecuniária obrigatória, ou ainda obrigações de dar ou fazer por parte do aderente. Ainda que se possa argumentar quanto à eventual interesse comercial decorrente da obtenção de dados e preferências pessoais, tais dados, para além de serem de conhecimento do fornecedor em decorrência da relação jurídica antecedente, também estarão sujeitos ao tratamento normativo estabelecido pela Lei Geral de Proteção de Dados [10].

No âmbito de uma sucessão, a mera existência de um "prazo de validade" dos pontos demonstra a inviabilidade prática e econômica de arrolá-los como um bem constituinte do monte-mor: na hipótese de um inventário judicial, em não sendo os pontos comercializáveis ou transferíveis para terceiros, estes podem vir a serem extintos por decurso do prazo de validade no decorrer da ação de inventário, reconduzindo seu valor a zero. Trata-se, em realidade, de consequência ordinariamente prevista no regulamento dos programas de fidelidade, da qual não se questiona a abusividade. Da mesma forma, determinar a impossibilidade de transferência de pontos, ainda que em caso de sucessão, igualmente não se mostra abusiva na hipótese de que estes pontos tenham sido atribuídos gratuitamente.

Embora não tenha sido objeto do julgamento, acredita-se que a hipótese de obtenção de pontos por meio de aquisição direta em caráter oneroso virá a ser objeto de escrutínio futuro no âmbito da corte, em virtude da ampliação desta modalidade nos últimos anos. Ainda que a cláusula de impossibilidade de transferência não seja, por si só, abusiva, não se pode negar que, nesta hipótese, o elemento de "fidelidade"  com evidente caráter intuitu personae tem caráter secundário, e os "pontos" revestem-se sob a forma de uma "moeda de troca" de caráter patrimonial, ainda que restrito. Nesta hipótese, admitir-se a validade irrestrita de cláusulas que impossibilitem a transferência ou utilização dos pontos poderia vir a reconduzir à desvantagem exagerada do consumidor em face do enriquecimento sem causa do fornecedor, uma vez que, diferentemente do caso dos autos, houve efetiva aquisição de pontos conversíveis em bens ou serviços, e não apenas o fornecimento de pontos como cortesia decorrente de uma relação jurídica antecedente.


[1] VANDENBROUCKE, Guillaume. Which war saw the highest defense spending? Depends how it's measured. Federal Reserve Bank of St. Louis. 04 fev. 2020. Disponível em: <https://www.stlouisfed.org/on-the-economy/2020/february/war-highest-defense-spending-measured#:~:text=Total%20spending%20on%20national%20defense,per%20day%2C%20for%20365%20days>. Acesso em 10/12/2022.

[2] DAVIES, Gavyn. How the Fed defeated President Truman to win its independence. Financial Times. 06 jan. 2012. Disponível em: <https://www.ft.com/content/6e207e60-221e-333b-8ef0-1b7953e3b1d0>. Acesso em 10/12/2022.

[3] PACH Jr., Chester. Dwight D. Einsehower: Domestic Affairs. UVA Miller Center. Disponível em: <https://millercenter.org/president/eisenhower/domestic-affairs#:~:text=Wage%20earners%20enjoyed%20a%20prosperous,houses%2C%20frequently%20in%20suburban%20developments>. Acesso em 10/12/2022.

[4] BERGSTEN, Eric. Credit cards: a prelude to the cashless society. Boston College Industrial and Commercial Law Review, v. 8, nº 3, p. 485-518, abr./jun. 1967, p. 485.

[5] CHEN, Yanyan; MANDLER, Timo; MEYER-WAARDEN, Lars. Three decades of research on loyalty programs: a literature review and future research agenda. Journal of Business Research, nº 124, p. 179-197, 2021, p. 179-180.

[6] BOER, Evert; GUDMUNDSSON, Sveinn. 30 years of frequent flyer programs. Journal of Air Transport Management, nº 24, p. 18-24, 2012, p. 18-19.

[7] SILVA, Vanessa Corrêa da. Brasil criou primeiro programa há 18 anos. Folha de São Paulo. 26 mai. 2011. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/turismo/fx2605201107.htm>. Acesso em 10/12/2022.

[8] Neste sentido, destaca-se a seguinte notícia: 45% da população brasileira com acesso à internet já está inscrita em programas de fidelidade. ABEMF. 14 set. 2022. Disponível em: <https://www.abemf.com.br/press-release-45–da-populacao-brasileira-com-acesso-a-internet-ja-esta-inscrita-em-programas-de-fidelidade>. Acesso em 10/12/2022.

[9] STJ. REsp 1.878.651/SP, relator ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, j. 04/10/2022.

[10] Em especial, as disposições quanto à finalidade do tratamento de dados (artigo 6º, inciso I, da LGPD).

Autores

  • é mestrando em Direito Civil da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, graduado em Direito pela USP, membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo e assistente editorial da Revista de Direito Civil Contemporâneo (RDCC)

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!