Diário de Classe

A culpa é da Constituição!? Reflexão sobre o constitucionalismo de ocasião

Autor

  • Jefferson de Carvalho Gomes

    é doutorando em Direito pela Universidade Estácio de Sá (bolsista Prosup-Capes) mestre em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis (bolsista Prosup-Capes) especialista em Criminologia Direito e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos e advogado.

10 de dezembro de 2022, 11h11

Na última semana pudemos experimentar a tentativa de sequestro da democracia pela tentativa espúria alterar o sentido da Constituição. Nos Estados Unidos, o ex-presidente Donald J. Trump, ainda inconformado com a derrota eleitoral para Joe Biden na eleição de 2020, defendeu a extinção da Constituição [1], enquanto no Peru, um presidente acuado diante de três pedidos de impeachment [2], "resolveu" dissolver o Congresso, convocar novas eleições, estabelecer um governo temporário de exceção (sic), a elaboração de uma nova Constituição em nove meses e uma curiosa "reorganização" do sistema de justiça daquele país.

Curiosamente, mais ao sul do mundo, também ocorrem chamamentos a atitudes similares. Pensem, por exemplo, em um país onde dois candidatos disputam a Presidência da República, candidatos estes com uma trajetória toda na política, sendo (re)eleitos através de um sistema de votação que antes não era questionado, e de repente ao fim deste pleito um dos candidatos e seus apoiadores, resolvem contestar o resultado questionando o sistema de votação, e passam a dizer que perderam porque o Judiciário — e por conseguinte o Direito, interferiu na "lisura" do pleito.

Ainda por cima, imaginem que os apoiadores do candidato derrotado pudessem ir às ruas conclamando com que militares subissem em tanques e tomassem o poder, invocando inclusive uma interpretação ultraextensiva de um dispositivo constitucional — tendo inclusive apoio de alguns membros da comunidade jurídica, e ainda por cima bradassem de saudade de tempos de exceção vividos naqueles país.

Imaginem ainda, que em no momento em que clamam por tal intervenção militar, ao fechar rodovias, reclamassem justamente da intervenção de militares para desobstrução das vias públicas.

Pois bem, superada a narrativa introdutória de três episódios distintos, creio sermos capazes de enxergar que a questão posta no presente texto é o certo "incômodo" que o Direito dá a determinados segmentos sociais, quando freia seus instintos mais selvagens e primitivos.

Mais além, podemos até refletir sobre tal "incômodo" com a seguinte pergunta: deve o Direito atender o anseio das maiorias? A resposta é um uníssono não! Mas obviamente que um não, posto assim, não é capaz de resolver o problema, que é complexo, mas que tem como ponto de partida justamente o caráter contramajoritário do Direito e por conseguinte da Constituição.

O Direito é justamente a linha de fronteira entre a civilização e a barbárie, para que justamente os anseios da maioria não se tornem o clássico do cinema latino-americano Relatos Salvages, em homenagem ao grande ator Ricardo Darín.

Neste sentido, Lenio Streck e Ziel Ferreira Lopes [3] são cirúrgicos ao constatarem a raiz do problema, quando afirmam que

"A chamada "guerra cultural" tomou conta do debate público, mudando significativamente o modo como articulamos nossas divergências em sociedade. Diante desse novo cenário, algumas pessoas são tomadas por um senso de urgência, uma necessidade de se engajar cada vez mais nas discussões em defesa de suas posições."

Obviamente, que a vida numa democracia implica justamente na convivência harmônica entre pensamentos e culturas diferentes, com o devido limite à regras e princípios que a Constituição põe, justamente como a linha limítrofe para que se não ultrapasse o rubicão em nome da liberdade. Sim, por mais que se pense e até se defenda que há liberdade para tudo, tal liberdade há de ser contida justamente para que não se reverberem discursos odiosos, racistas e que preguem inclusive a ruptura do Estado democrático de Direito, Estado este que nos garante que ainda sejamos livres para nos manifestarmos, respeitando os limites impostos pela Constituição.

Ainda em Streck e Ferreira Lopes [4], temos que

"No âmbito jurídico, os desacordos foram colocados inicialmente como um problema para a descrição do que é direito. Digamos que você quer evitar fazer juízos avaliativos para identificar as normas jurídicas. Você quer desligar o direito da moral, tratando-o apenas como um fato social posto pela mão humana. Uma boa saída para isso seria tratar a norma jurídica como uma convenção socialmente compartilhada. Obviamente, há momentos nos quais não nos entendemos, em que os casos não estão cobertos claramente pelas convenções. Você poderia manter a dignidade de seu modelo convencional, aceitando pontualmente uma certa discricionariedade do juiz para preencher tais lacunas. A explicação é simples, elegante e 'desencantada'."

Contudo, um fenômeno social não explicado parece perturbar essa teoria: por que, quando as regras claras acabam, os juízes continuam agindo como se houvesse direito a aplicar? E por que passam a defender diferentes maneiras de decidir o caso, não como se estivessem exercendo um poder discricionário de "legisladores intersticiais", e sim como se cada uma delas fosse a melhor interpretação do que o direito exige? Você pode argumentar que se trata de uma ilusão coletiva de debate, um jogo de poder disfarçado. Mas a saída não seria tão boa, já que se trata de um fenômeno com vigência concreta e não soa muito bem para uma teoria tentar se salvar descartando um fenômeno relevante. "

Notem que os professores são assertivos, quando ao fim do texto acima colacionado destacam que não soa muito bem uma teoria tentar se salvar descartando um fenômeno relevante. O fenômeno relevante neste caso é a Constituição, que parece sempre ser a culpada por todos os males das mentes autoritárias, que sonham com um golpe de estado para chamar de seu. Nesse sentido, acertada a constatação de Djefferson Amadeus, quando compara a Constituição à Geni, da música Geni e o zepelim, eternizada na tenra voz de Chico Buarque de Holanda. Diz Amadeus [5]: "Geni é a Constituição: quando interessa, bendita; quando não interessa, maldita".

O recorte feito por Amadeus, demonstra uma certa tendência a um constitucionalismo de ocasião, daquele bem clássico solipsista que só importa o que o detentor do poder se agrada na ocasião. Ou seja, quando a Constituição me atende, à amo, quando freia meus instintos à odeio e não lhe quero mais. E sempre lembrando quando algum poder me desagrada, clama-se logo à jogar dentro das "quatro linhas da Constituição", ainda que tal bordão, neste triste momento de eliminação do Brasil em mais uma Copa do Mundo já não seja mais de todo recomendado (alerta: seguir as regras do jogo Constitucional não é só recomendado como necessário, me refiro aqui à metáfora com o futebol).

Mas o que seria jogar dentro das tais "quatro linhas"? Obviamente parece ser cumprir a Constituição, ora! Portanto, cumprir a Constituição em tempos de apedrejamento à la Geni, é completamente revolucionário [6]. E tal revolução começa justamente na defesa da autonomia do Direito e no bom combate pela função social da dogmática.

Quem tem a oportunidade de frequentar as aulas do professor Lenio Streck aprende sempre que, a partir de Wittgenstein, toda linguagem é pública, inexistindo qualquer espécie de linguagem privada. E como pública que é, no ato de ensinar, gera a responsabilidade política daquele que ensina, responsabilidade esta que implica em justamente dizer o não necessário para a sua consciência, quando a Constituição mostra que o que se defende moralmente é totalmente contra os mandamentos que garantem o Estado Democrático de Direito.

Streck [7] nos aponta que

"E, por favor, não esqueçamos que a Constituição é remédio contra maiorias. E é o estatuto jurídico do político. De onde interpretar a norma que prescreve a imperiosidade da independência e da harmonia dos poderes da República não pode(ria) conduzir à ideia de que qualquer um deles possa agir sem prestar contas tanto do ponto de vista interno quanto externo. Viver numa democracia significa isto: accountabillity."

Não resta dúvidas, portanto, que a Constituição nunca será a culpada por nenhuma derrocada de qualquer anseio pessoal de quem exerce temporariamente o poder, pelo contrário, ela será sempre o remédio a um sinthoma conhecido por todos nós como autoritarismo.

Por isso, conclamo a que pensemos sobre a Constituição a partir das três histórias narradas no início desta coluna, pois ali, ao que parecia ser o problema, a Constituição foi em verdade a solução e a salvação da manutenção do status quo. Por sorte, como diz o poeta popular isso tudo "aconteceu numa cidade muito longe daqui, que tem problemas que parecem os problemas daqui" [8], pois é inimaginável crer que em 2022 ainda exista gente pensando e saudando os regimes de exceção que solaparam vidas ao longo do século XX.

Deixo aqui então o registro de que ainda bem que hoje, no avançar do século 21 temos uma Constituição que dê sobrevida e garanta a democracia, pois se os delírios coletivos fossem ouvidos, talvez não pudesse mais nem haver acampamentos na porta dos quartéis clamando que as Forças Armadas apedrejassem a Constituição (ainda que eu particularmente pense ser uma atitude de extremo mau gosto). Portanto, continuemos vigilantes e à postos, pois a Constituição ainda é o único caminho possível para não sejamos comidos pelos crocodilos [9]!

 


[3] STRECK, Lenio Luis; FERREIRA LOPES, Ziel. A teoria do direito pode ajudar a reconstruir democracias divididas? Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-out-14/streck-lopes-teoria-direito-reconstrucao-democracias

[4] Ibidem.

[5] AMADEUS, Djefferson. STF vai moldando 'Constituição Geni': bendita ou maldita, conforme o interesse. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-fev-16/djefferson-amadeus-stf-moldando-constituicao-geni

[6] Cf. Aplicar a Constituição, hoje, é um ato revolucionário. Entrevista com Lenio Streck. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/188-noticias-2018/581764-aplicar-a-constituicao-hoje-e-um-ato-revolucionario-entrevista-com-lenio-streck

[7] STRECK, Lenio Luis. As críticas de Gandra ao STF e a história do crocodilo debaixo da cama. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-dez-01/senso-incomum-criticas-gandra-historia-crocodilo-debaixo-cama

[8] Contém ironia!

[9] STRECK, Lenio Luis: "A democracia morre de várias formas. Inclusive a partir de violência simbólica de professores, deputados, pastores e militares. O professor afirma "com tranquilidade" que não há ruptura institucional. Como Hobbes, tenho medo. Tenho pânico institucional. Tenho medo do crocodilo. E do psiquiatra que diz que o crocodilo é manso. Tenhamos medo. O excesso de tranquilidade pode matar a democracia. Aproveitando a tônica, faço outra confissão: tenho também uma angústia. Como é possível isso? Como é possível que se tenha uma concepção de direito capaz de acomodar um juiz parcial e incompetente, incompetente e parcial, que manda grampear advogados? E se fosse o seu processo? Como é possível que, em meio a tudo isso, a Suprema Corte seja vista como o problema do país? Não fosse o Supremo Tribunal, professor Ives… O senhor, no seu íntimo, sabe bem disso. O STF salvou a democracia brasileira. Vamos dar o nome que as coisas têm. Já não somos Macondo, onde as coisas eram tão recentes que ainda tínhamos que apontar com o dedo…! Numa palavra final: entre a democracia militante e a militância contra a democracia, não prefiro nenhuma. Trata-se de um falso dilema. Entre essas alternativas temos de ser a favor é da democracia constitucional. Porque as constituições não são pactos suicidas. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-dez-01/senso-incomum-criticas-gandra-historia-crocodilo-debaixo-cama

Autores

  • é doutorando em Direito Unesa (com bolsa Prosup-Capes), mestre em Direito pela UCP (com bolsa Prosup-Capes), membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos, professor (ABDConst e FDV) e advogado.

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