Retrospectiva 2022

Aspectos relevantes do novo regulamento da Lei Anticorrupção

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8 de dezembro de 2022, 9h07

Com o crescente protagonismo do combate à corrupção e fomento à cultura do compliance, a elaboração e atualização de normas concernentes ao direito da conformidade é constante. É o que se viu neste ano de 2022. 

Spacca
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Resulta desse cenário que, em julho de 2022, o governo federal alterou a regulamentação da Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção) por meio da publicação do Decreto nº 11.129/2022 (Novo Decreto), que revogou o Decreto nº 8.420/2015 para introduzir mudanças neste campo normativo, fruto da experiência acumulada ao longo de oito anos de vigência da Lei. A Controladoria-Geral da União (CGU), por sua vez, publicou a Portaria Normativa CGU nº 19/2022 (Portaria Normativa), por meio da qual inaugurou um novo instrumento sancionador negocial no âmbito da Lei Anticorrupção: o julgamento antecipado.

No geral, o Novo Decreto trouxe alterações concernentes à investigação preliminar, ao processo administrativo de responsabilização (PAR), à dosimetria da multa, ao conceito de vantagem auferida, ao acordo de leniência e ao programa de integridade. Neste artigo cuidaremos de explorar ainda que de forma sintética, as inovações de cada um desses temas.

Essencialmente, a inovação relativa à investigação preliminar consiste na previsão de que, no decorrer de sua condução, os atos necessários à elucidação dos fatos sob investigação contemplem todas as diligências anuídas pela ordem jurídica (artigo 3º, § 3º).

Já os dispositivos referentes ao PAR, apesar de não traduzirem cabal inovação em matéria anticorrupção, visaram a complementar o texto normativo e uniformizar o arcabouço legal anticorrupção, havendo o Novo Decreto apenas atualizado o instrumento que regulamenta a Lei Anticorrupção conforme a Instrução Normativa CGU nº 13/2019 (arts. 6º, § 2º e 8º, § 1º). 

Tais alterações, contudo, não revelam as principais e mais relevantes mudanças introduzidas pelo Novo Decreto, que dizem respeito à dosimetria da multa e ao conceito de vantagem auferida. Esses temas, como se sabe, implicam diretamente a magnitude da principal sanção prevista no instrumento normativo sob análise: a multa administrativa. 

Em relação à dosimetria da multa, foram modificados alguns critérios e alíquotas que determinam precisamente o valor final da penalidade, quais sejam, base de cálculo, circunstâncias agravantes e atenuantes, e limites mínimo e máximo. 

Apesar de a base de cálculo padrão da multa ainda consistir no faturamento bruto da pessoa jurídica no último exercício anterior ao da instauração do PAR, o Novo Decreto inovou ao (I) ampliar as formas de apuração do faturamento, por meio da inclusão da estimativa e da identificação do montante total de recursos recebidos pela pessoa jurídica sem fins lucrativos no referido período; (II) estabelecer que, na hipótese de empresas de um mesmo grupo econômico terem praticado os atos ilícitos previstos na Lei Anticorrupção ou concorrido para a sua prática, a base de cálculo consistirá na soma dos faturamentos brutos de todas as empresas envolvidas; e (III) determinar que, excepcionalmente, caso a pessoa jurídica comprovadamente não tenha tido faturamento no último exercício anterior ao da instauração do PAR, a base de cálculo consistirá no último faturamento bruto apurado pela pessoa jurídica, atualizado até o último dia do exercício anterior ao da instauração do PAR (arts. 20 e 21).

Quanto às circunstâncias agravantes e atenuantes aplicáveis ao cálculo da multa após o estabelecimento da respectiva base de cálculo, o Novo Decreto não só alterou determinadas hipóteses de incidência, como também modificou, ainda que pouco, a quase totalidade das respectivas alíquotas aplicáveis ao cálculo sob análise, conforme os quadros que seguem (artigos 22 e 23):

Circunstâncias agravantes

Hipótese de incidência da agravante

Alíquota

Decreto nº 8.420/15

Alíquota

Decreto nº 11.129/22

Continuidade no tempo deixou de ser agravante e foi substituída pelo concurso dos atos lesivos[1]

1% – 2,5%

0% – 4%

Tolerância ou ciência do corpo diretivo ou gerencial

1% – 2,5%

0% – 3%

Interrupção no fornecimento de serviço público ou na execução de obra – conceito ampliado para também abarcar (i) a entrega de bens ou serviços essenciais à prestação de serviços públicos, e (ii) o descumprimento de requisitos regulatórios

1% – 4%

0% – 4%

Índices de solvência geral e de liquidez geral superiores a um e lucro líquido no último exercício anterior ao da instauração do PAR, e não mais ao da prática do ato lesivo

1%

1%

Reincidência, em menos de cinco anos, contados da publicação do julgamento da infração anterior (acordo de leniência: da celebração até cinco anos após cumprimento)

5%

3%

Contratos mantidos ou pretendidos com o órgão ou com as entidades lesadas, nos anos da prática do ato lesivo – conceito ampliado para também abarcar convênios, acordos, ajustes e outros instrumentos congêneres

1% – 5%

R$ 1,5 mi – R$ 1 bi

1% – 5%

R$ 500 mil – R$ 250 mi

 

Circunstâncias atenuantes

Hipótese de incidência da atenuante

Alíquota

Decreto nº 8.420/15

Alíquota

Decreto nº 11.129/22

Não consumação da infração

1%

0% – 0,5%

Comprovação de ressarcimento – conceito ampliado para abarcar, além do dano, a vantagem auferida pela pessoa jurídica. Também passou a prever a aplicação da atenuante quando inexistir ou não for comprovado dano ou vantagem auferida

1,5%

0% – 1%

Percentual máximo apenas quando, havendo dano ou vantagem, os valores forem integralmente devolvidos

Colaboração da pessoa jurídica com a investigação ou a apuração do ato lesivo

1% – 1,5%

0% – 1,5%

Comunicação voluntária deixou de ser atenuante e foi substituída pela admissão voluntária da responsabilidade objetiva pela pessoa jurídica

2%

0% – 2%

Percentual máximo apenas quando a admissão ocorrer antes da instauração do PAR

Possuir e aplicar um programa de integridade

1% – 4%

0% – 5%

Percentual máximo apenas quando o plano de integridade for anterior à prática do ato lesivo

Vale mencionar que, a fim de estabelecer parâmetros de referência para a aplicação das referidas circunstâncias e respectivas alíquotas, a CGU publicou o documento "Sugestão de Escalonamento das Circunstâncias Agravantes e Atenuantes"[2], que apesar de não possuir caráter vinculante, serve de guia orientativo às autoridades competentes quanto à aplicação, caso a caso, de cada uma das alíquotas.

Sobre os limites mínimo e máximo do valor da multa, nota-se que o Novo Decreto manteve as disposições do antigo instrumento regulamentador em relação ao limite mínimo — que consiste no maior valor entre o valor da vantagem auferida e 0,1% da base de cálculo ou R$ 6 mil —, mas alterou determinados aspectos relacionados ao limite máximo do referido valor. Nesse ponto, o Decreto nº 8.420/2015 previa que o limite máximo do valor da multa consistia no menor valor entre (I) 20% do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do PAR, excluídos os tributos; (II) três vezes o valor da vantagem pretendida ou auferida; e (III) R$ 60 milhões, na hipótese de não ser possível utilizar o critério do valor do faturamento bruto da pessoa jurídica no ano anterior ao da instauração do PAR. Com o Novo Decreto esclareceu-se que, em relação ao primeiro item, apenas os tributos incidentes sobre vendas deverão ser excluídos; quanto ao segundo, deve prevalecer o maior entre os dois valores; e, no que se refere ao último item, apenas será observado o limite de R$ 60 milhões na impossibilidade de se estimar o valor da vantagem auferida (artigo 25).

Além disso, como adiantado, o recente instrumento regulamentador ampliou o conceito de vantagem auferida para fins de definição do teto da multa e definiu três metodologias para a estimativa do seu valor: (I) receita total dos contratos viciados, deduzidos os custos lícitos; (II) valor total de despesas ou custos evitados por conta do ato ilícito, inclusive de natureza tributária ou regulatória; ou (III) lucro adicional auferido pela pessoa jurídica por ação ou omissão de autoridade pública, decorrente da prática infratora (artigo 26). Sobre tais metodologias, cumpre destacar que o Novo Decreto deixou de esclarecer determinadas questões relevantes (e.g., forma de cálculo das despesas e custos tributários e regulatórios; e forma de apuração do lucro adicional), de modo que se espera que tais pontos sejam esclarecidos no próximo ano pela CGU por meio de novos atos normativos. Ademais, considerando que o Novo Decreto definiu que os custos tributários e regulatórios evitados pelo ato ilícito devem ser considerados como vantagem indevida para fins de cálculo da multa e para eventual ressarcimento, resta saber como será tratado possível bis in idem decorrente da competência e atuação das administrações tributárias e agências reguladoras.

Acerca do acordo de leniência, importante e eficiente mecanismo em matéria anticorrupção, as principais inovações se referem à ampliação do rol de requisitos a serem cumpridos pela pessoa jurídica interessada em celebrar o instrumento negocial em tela – que passou a prever a necessidade de a pessoa jurídica reparar integralmente a parcela incontroversa do dano causado e perder, em favor do ente lesado ou da União, conforme o caso, os valores correspondentes ao acréscimo patrimonial indevido ou ao enriquecimento ilícito direta ou indiretamente obtido da infração —, e à possibilidade de alteração ou substituição de obrigações estabelecidas no referido acordo, observados os requisitos previstos na norma (artigos 37, VI e VII, e 54).

Por fim, a principal alteração sobre o programa de integridade, último tópico do Novo Decreto sobre o qual nos debruçamos, remete à ampliação dos parâmetros para sua avaliação, sendo a raiz dessa mudança, sobretudo, o fato de que possuir e aplicar um programa de integridade consiste na circunstância atenuante que mais tem a propensão de reduzir o valor da multa — no caso, em até 5% (artigo 57, § 1º).

Mas além da atualização do instrumento regulamentador da Lei Anticorrupção, o arcabouço legal de combate à corrupção também foi aprimorado recentemente por meio da publicação da Portaria Normativa CGU nº 19/2022[3], que instituiu o Julgamento Antecipado, novo instrumento sancionador negocial no âmbito da referida norma, que deve ser proposto pela pessoa jurídica interessada e no qual há um encurtamento temporal e procedimental do PAR, bem como maior celeridade no estabelecimento de sanções pela CGU e no cumprimento, pela pessoa jurídica, das obrigações estabelecidas pelo órgão.

Note-se que, assim como ocorre no acordo de leniência previsto na Lei Anticorrupção, o julgamento antecipado está em conformidade com os interesses da Administração Pública e prevê a concessão de uma série de vantagens à pessoa jurídica interessada, quando deferido. Nesse caso, os interesses da Administração Pública se traduzem na promoção da responsabilização célere de pessoas jurídicas pela prática de atos lesivos previstos na Lei Anticorrupção e no fortalecimento de sua capacidade de recuperar ativos. Os interesses da pessoa jurídica, por sua vez, referem-se à possibilidade de concessão de benefícios pela CGU, como (I) redução do valor da multa administrativa de 1,5% a 4,5%, a depender do momento processual de oferta da proposta; (II) exclusão dos registros das sanções aplicadas à pessoa jurídica, do Cadastro Nacional de Empresas Punidas (CNEP); (III) não publicação extraordinária da decisão condenatória; e (IV) atenuação de sanções impeditivas de licitar e contratar com o Poder Público (artigos 5º, IV e V, § 1º e 6º, § 2º da Portaria Normativa).

De relevo destacar, ainda, que o pedido de julgamento antecipado poderá ser apresentado não só em face de PAR instaurado ou avocado pela CGU, como também no âmbito de investigação preliminar ou de investigação preliminar sumária. Em ambos os casos, é fundamental que a pessoa jurídica reconheça sua responsabilidade objetiva pela prática dos atos lesivos sob investigação e assuma compromissos, que incluem desde obrigações financeiras até a obrigação de atender a pedidos de informação relacionados aos fatos do PAR que sejam de seu conhecimento, (artigos 1º e 2º da Portaria Normativa).

Como se vê, os benefícios eventualmente concedidos à pessoa jurídica por meio do deferimento do pedido de julgamento antecipado não afastam por completo a aplicação de sanções visando à reparação do dano causado e à reprovação da conduta praticada.

Vê-se, assim, que as alterações e inovações trazidas pelo Decreto nº 11.129/2022 e pela Portaria Normativa CGU nº 19/2022 reforçam o propósito e relevância do combate à corrupção e o fomento à cultura do compliance no cenário nacional no ano de 2022, que vem constantemente se aprimorando com a adoção de novas e efetivas medidas de caráter sancionador-negocial pela Administração Pública. Novidades como essas legitimam a necessidade de contínua evolução do arcabouço jurídico anticorrupção, convidando a todos os operadores do direito ao estudo cada vez mais aprofundado da área.

Naturalmente, toda novidade precisa ser testada e, a depender do resultado, aperfeiçoada. É o que se espera da CGU no próximo ano, onde se terá a oportunidade de esclarecer determinados pontos controversos do Novo Decreto e da Portaria Normativa, por meio de atos normativos próprios.

______________________

[1] Em tese, o concurso de condutas ilícitas ocorrerá quando verificada a prática de duas ou mais condutas no âmbito do mesmo processo. No entanto, ainda pairam dúvidas razoáveis sob aplicação de tal conceito no âmbito do PAR da Lei Anticorrupção (e.g., concurso formal, material e ilícito continuado).

[2] Disponível aqui. Acesso em: 29 nov. 2022.

[3] Disponível aqui. Acesso em: 29 nov. 2022.

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