Opinião

Reconhecimento de pessoas, justiça e direitos humanos

Autores

  • Rogerio Schietti Cruz

    é ministro do Superior Tribunal de Justiça coordenador do Grupo de Trabalho para Otimização de Julgamentos no Tribunal do Júri (CNJ) e doutor em Direito Processual pela USP.

  • Luís Geraldo Lanfredi

    é juiz auxiliar da Presidência do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas.

7 de dezembro de 2022, 10h13

O Plenário do Conselho Nacional de Justiça aprovou nesta terça-feira (6/12) resolução que estabelece diretrizes e regulamentos para o reconhecimento de pessoas, destinados a sua aplicação no âmbito do Poder Judiciário.

Fernando Frazão/Agência Brasil
Fernando Frazão/Agência Brasil

A minuta da resolução foi elaborada no âmbito do Grupo de Trabalho sobre Reconhecimento de Pessoas. A complexidade do tema e os desafios que se apresentavam diante de um grupo tão qualificado exigiam da oportunidade empenho e máxima eficiência para o enfrentamento dos dilemas e das perplexidades que o tema provoca, de modo a se permitir soluções pragmáticas, alcançáveis a partir de cuidados e protocolos de atuação até o momento não praticados sistematicamente no Brasil.

Participaram do GT, que foi organizado e esteve coordenado pelo Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativa (DMF), magistrados(as), promotores(as) de justiça, defensores(as) públicos(as), delegados(as) de polícia, acadêmicos(as) e representantes do terceiro setor, merecendo destaque também a composição diversa do grupo do ponto de vista de gênero e racial, o que assegurou uma variedade de perspectivas epistemológicas e de experiências profissionais que está bem refletida em seu produto final.

Instaurado por meio da Portaria nº 209 de 31 de agosto de 2021 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o coletivo de 43 especialistas, distribuídos em comissões temáticas, entabulou diálogos para a amplificação e a qualificação do debate público nacional em torno das dramáticas consequências sociais dos erros de reconhecimento, tanto para os jurisdicionados, que são presos e condenados injustamente, como para o sistema de justiça criminal, que tem a sua credibilidade perante a sociedade seriamente afetada.

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De fato, pesquisa desenvolvida pelo Innocence Project nos Estados Unidos indica que os reconhecimentos pessoais equivocados são a causa dos erros judiciais em 69% dos casos em que houve a revisão das condenações após a realização do exame de DNA.

No contexto doméstico, ganhou amplo destaque o levantamento nacional feito pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro que apontou que em 60% dos casos em que há reconhecimento fotográfico equivocado em solo policial houve a decretação da prisão preventiva, sendo que a pessoa reconhecida erroneamente permaneceu presa por 281 dias, em média. De acordo com o levantamento, em 83% dos casos de reconhecimento equivocado identificados, as pessoas apontadas eram negras.

Além dos dados, casos emblemáticos de erro de reconhecimento, como o do artista plástico mineiro Eugênio Fiúza, que permaneceu preso por 17 anos após ser equivocadamente reconhecido por vítimas de estupros, têm conferido contornos concretos à dimensão humanitária do problema do erro de reconhecimento e demonstrado que é urgente e necessária uma nova abordagem do tema pelo Poder Judiciário.

A resolução vem para suprir lacunas no tratamento jurídico de questões relacionados ao reconhecimento de pessoas, matéria que não é objeto de atualização legislativa desde 1941, quando foi promulgado o Código de Processo Penal, incorporando evidências científicas produzidas pela Psicologia do Testemunho ao longo dos últimos 40 anos. Tais pesquisas apontam fartamente a falibilidade da memória humana e sua suscetibilidade a inúmeras variáveis, que devem ser objeto de atenção e controle, sempre que possível, pelo Poder Judiciário.

Além disso, a resolução alinha-se à jurisprudência mais avançada sobre o tema do reconhecimento de pessoas, ao incorporar as teses recentes firmadas pelas decisões paradigmáticas do STJ, no âmbito do julgamento dos HCs 598.886-SC e 712.781-RJ, relatados pelo ministro Rogerio Schietti, quem liderou as atividades do GT.

Em tais precedentes, o STJ, em uma inflexão jurisprudencial histórica, firmou o entendimento de que o rito procedimental para a realização do ato de reconhecimento, definido pelo artigo 226 do Código de Processo Penal, não possui caráter meramente recomendatório. Ao contrário, as formalidades previstas pelo dispositivo legal devem ser cumpridas obrigatoriamente, porquanto constituem etapas essenciais para garantia da mínima confiabilidade da prova de reconhecimento.

Além da Resolução, o Grupo de Trabalho elaborou outros produtos que foram igualmente avalizados pelo plenário do CNJ. 

Coube ao Comitê Técnico 1 a elaboração de um "diagnóstico" dos elementos catalisadores da prisão de inocentes, relacionados ao chamado "erro de reconhecimento", tendo em consideração as implicações do emprego de inteligência artificial e as situações recorrentes de racismo estrutural, predominante em nosso país.

Esse diagnóstico foi construído a partir de dados colhidos a partir: (i) do levantamento de casos emblemáticos de erro de reconhecimento e falsos positivos, no uso de algoritmos de reconhecimento facial, divulgados em veículos da imprensa; (ii) das informações inerentes à realização do reconhecimento pessoal e fotográfico, bem como acerca da utilização de softwares de reconhecimento facial, por meio do envio de questionários a instituições do sistema de justiça criminal; e (iii) da análise de amostragem de processos judiciais em que o Superior Tribunal de Justiça observou irregularidades no "reconhecimento de pessoas", equívocos esses que acarretaram a prisão ou condenação de inocentes.

A partir deste diagnóstico, objeto do Relatório Final, o CT1 apresentou documento com recomendações técnicas para o fim de disseminar: (a) boas práticas de reconhecimento de pessoas, (b) a qualificação da produção de dados acerca do tema, (c) formas de reparação das vítimas e (d) a contenção da repercussão de reconhecimentos fotográficos irregulares e perfilamento racial.

O Comitê Técnico 2, por sua vez, cuidou de elaborar um "protocolo" para a realização do reconhecimento de pessoas em sede policial, que está projetado para acontecer em três etapas: (i) a entrevista investigativa do reconhecimento; (ii) a preparação do reconhecimento e (iii) a realização do reconhecimento propriamente dito.

A propósito, o "protocolo", que se constitui em um documento de sugestão e orientação para a realização da atividade policial, considera que o reconhecimento começa muito antes do momento em que a vítima ou a testemunha apontam alguém como autor do delito, servindo de base para a entrevista investigativa com a finalidade de permitir ao profissional responsável a coleta da maior quantidade possível de informações verdadeiras e úteis para a apuração em andamento.

A confecção do "protocolo" levou em consideração dados coletados e sistematizados pelo CT2, a partir de 1.800 respostas a questionários enviados às polícias de todo o país, através dos quais policiais foram indagados acerca das práticas de reconhecimento de pessoas mais recorrentemente adotadas. Por meio desse questionário, alcançou-se conhecer as percepções subjetivas dos agentes policiais a respeito da prática.

O Comitê Técnico 3 foi o responsável pela proposta de "resolução" em destaque, a qual vem acompanhada de uma "Nota Explicativa", que para além de contextualizar o tema do reconhecimento de pessoas à luz da jurisprudência nacional e dos pressupostos científicos consolidados internacionalmente no campo da psicologia do testemunho, apresenta fundamentação robusta para cada uma das disposições adotadas.

O Comitê Técnico 4 formulou proposta de "anteprojeto de lei" que se propõe a emprestar uma nova redação para o artigo 226 do Código de Processo Penal, dispositivo este que disciplina, atualmente, o reconhecimento de pessoas.

A intenção é fazer chegar ao Congresso, por meio do CNJ ao Congresso, as importantes contribuições que foram reunidas ao longo do itinerário percorrido, no âmbito do GT.

A proposta teve como ponto de partida o projeto de novo Código de Processo Penal, debatido pelo Senado Federal e enviado à Câmara dos Deputados (PL 8.045/2010, ao qual foi apensado o PLS 676/2021) e aproveitou os avanços já incorporados ao texto do PL, bem como todo o acúmulo dos debates já protagonizados por especialistas ao longo de sua tramitação.

O anteprojeto foi elaborado em cotejo com a legislação de países como Nova Zelândia, Itália, Portugal, Espanha e Uruguai (os quais detêm a legislação mais avançada sobre o assunto) e também se faz acompanhar por "Nota Técnica" da qual consta a fundamentação teórica de todas as opções da proposta de alteração legislativa.

Por fim, mas não menos importante, o Comitê Técnico 5 produziu, a partir de chamamento público, uma "coletânea de artigos científicos", que se dedica a refletir sobre "o reconhecimento de pessoas e caminhos possíveis para o aprimoramento do sistema de justiça criminal".

Adicionalmente, apresentou "proposta pedagógica" para aproveitamento das Escolas de Magistratura, de Cursos de Formação para magistrados e magistradas, extensível a todas as carreiras jurídicas, o qual tem o objetivo de aperfeiçoar a capacitação de magistrados para a tomada de decisões qualificadas, no que tange ao reconhecimento de pessoas, à luz das especificidades das relações sociais e étnico-raciais em nosso país, atentando para os padrões científicos mais atuais de confiabilidade de provas.

Mas não é só.

O CT5 também preparou uma "cartilha", com o objetivo de prover os cidadãos com informações a respeito do que é e como deve ser realizado o reconhecimento de pessoas.

A cartilha cumpre o papel de orientar vítimas, testemunhas e pessoas que eventualmente sejam submetidas a reconhecimento, além de ser útil à capacitação de atores do sistema de justiça criminal e à popularização do tema.

É importante registrar que todas as tarefas desenvolvidas pelos Comitês Técnicos foram acompanhadas e se submeteram ao escrutínio e deliberação de todos os membros do Grupo de Trabalho, que contou com o apoio e a atuação de Relatores Gerais, aos quais também coube a missão de participar das sessões plenárias do GT, registrar as atividades e debates desenvolvidos, harmonizar os produtos e sistematizar o relatório final.

O Conselho Nacional de Justiça, ao disponibilizar à sociedade brasileira todas essas contribuições, assinala um importante passo na elevação do padrão de confiabilidade da prova de reconhecimento, o que milita para a qualificação da prestação jurisdicional e representa uma verdadeira conquista democrática.

Isto porque a observância de balizas cientificas no "procedimento de reconhecimento" é uma providência essencial para ampliar o grau de fidedignidade desse meio de prova e, consequentemente, um passo fundamental na consolidação de uma prestação jurisdicional justa, que nem condene inocentes, nem permita que culpados permaneçam impunes.

Enfrentou-se, portanto, de maneira competente e consciente os desafios de um tema intrincado. E o resultado é um leque de ações institucionais que, endossadas por este Conselho Nacional de Justiça, vão contribuir para dignificar a atuação de magistrados e magistradas de todo o país, bem como ampliar a segurança da sociedade brasileira no Poder Judiciário, representando passo civilizatório decisivo para o fortalecimento do Estado democrático de Direito e das nossas instituições.

Por fim, a resolução e os demais produtos do GT são parte fundamental de uma ação institucional estratégica de enfrentamento ao racismo que, lamentavelmente, se expressa no sistema de justiça criminal e se retroalimenta a partir dele, tendo em vista a especial vulnerabilidade da população negra à seletividade penal e aos erros de reconhecimento.

Parafraseando a ministra Rosa Weber, em voto condutor que introduziu a matéria perante o Plenário do CNJ, às vésperas da celebração do dia da Justiça e do Dia Internacional dos Direitos Humanos, oportuno relembrar o legado que Nelson Mandela deixou para a humanidade. Tanto mais quando ele afirmava que "ser livre não é apenas romper os próprios grilhões, mas viver de forma a respeitar e engrandecer a liberdade dos outros", de modo que "precisamos lembrar constantemente a nós mesmos que as liberdades que as democracias carregam não são conchas vazias, se não acompanhadas de melhorias reais e tangíveis para a vida material de cidadãos comuns".

Clique aqui para ler a "coletânea de artigos científicos"
Clique aqui para ler o relatório final

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  • é ministro do Superior Tribunal de Justiça, coordenador do Grupo de Trabalho para Otimização de Julgamentos no Tribunal do Júri (CNJ) e doutor em Direito Processual pela USP.

  • é juiz auxiliar da Presidência do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas.

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