Opinião

A importância na adoção de vagas afirmativas para a população negra

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7 de dezembro de 2022, 15h45

Você sabia que no Brasil a escravidão durou quase 400 anos?
Sim! A escravidão "durou" exatos 388 anos tendo, por óbvio, deixado marcas que nem mesmo o tempo foi capaz de reparar. O "durou" está em aspas exatamente porque mesmo após a assinatura da abolição, na prática, uma infinidade de vantagens e poder ficaram restritas a uma parcela menor da população.

Quando a Lei Áurea foi assinada, os negros não possuíam bens, terras, estudos, dinheiro, heranças e, para boa parte da população da época, nem mesmo almas. Fato é que a única coisa que inegavelmente possuíam era a experiência do trabalho braçal, marcas da exploração, tortura e desigualdade que a escravidão deixou. Os negros, nesse período em que o "estado" indicou o encerramento da escravidão, não receberam qualquer auxílio, incentivos ou reparo e sabidamente foram deixados à própria sorte, tendo que viver com os pouquíssimos recursos e experiências que possuíam.

E quais foram os impactos?
Já se passaram mais de 130 anos desde a abolição da escravatura, mas os efeitos da escravidão permanecem, ainda hoje, latentes e refletem, de maneira direta, na sociedade atual. É só relembrar que até poucos anos atrás, os negros não tinham direito ao voto e, até hoje, são maioria na linha da pobreza.

Ou, ainda, que em pleno século 21 o Congresso Nacional está a apreciar um Projeto de Lei (PL 5.231/2020) que visa vedar a conduta de agente público ou profissional e segurança privada fundada em preconceito de qualquer natureza, notadamente de raça, origem étnica, gênero, orientação sexual ou culto.  

É inegável que com os anos os impactos desse racismo diminuíram e, inclusive, passaram a ser socialmente inaceitáveis. No entanto, seus efeitos podem ser notados e sentidos nas estatísticas nas universidades, no presidio, na taxa de mortalidade e, para a reflexão ora proposta, no mercado de trabalho.

Quando se observa a vida profissional desse grupo de indivíduos pretos que são, numericamente mais representativos na população brasileira, fica evidente que a eles não foram ofertadas (ou facilitadas) as maiores e melhores oportunidades de estudar, se qualificar, se desenvolver. No entanto, ainda que, na sua maioria, não tenham sido suficientemente preparados, concorrem com os demais indivíduos e seus privilégios no mesmo mercado de trabalho.

A pergunta que fica é: será mesmo que essa disputa por vagas se encontra equânime? Pode se afirmar que estar-se-á diante de uma disputa justa?

Sem maiores reflexões ou estudo aprofundado, é possível afirmar, com grande chance de êxito, que essa concorrência pelas vagas de trabalho, especialmente pelas posições de liderança, jamais foi justa!

Mas, então, como modificar realidade que, no frigir dos ovos, faz com que pessoas pretas, que não largaram da mesma posição que os demais indivíduos, consigam ter a oportunidade de concorrer para estas posições?

E é aqui que entram as políticas afirmativas de recrutamento, seleção e desenvolvimento!

Tem sido cada vez mais usual que as empresas, — pensando em diminuir estas distâncias, além de localizar profissionais brilhantes que, muitas das vezes, sequer ultrapassam as primeiras etapas dos processos seletivos , se utilizem de programas direcionados de seleção.

Estes recrutamentos são destinados à grupos minorizados, que por algum traço são desigualmente tratados pela Sociedade. Certamente é caso dos negros. E aqui importa salientar que embora chamados de grupos minorizados, no caso dos negros, sabidamente são mais numerosos dos que os demais.

Nesse esteio, tem-se que este recrutamento direcionado se diferencia dos demais porque já nasce destinado à contratação de uma pessoa negra (no caso deste artigo cuja minoria tratada é esta). Desde sua divulgação, o público-alvo é delimitado, não sendo possível àqueles que não o compõe disputarem essa posição.

É, sem sombra de dúvidas, uma iniciativa real e efetiva de fortalecer políticas de diversidade e inclusão nos ambientes corporativos. E, por óbvio, demonstra o comprometimento desta Companhia com os objetivos de desenvolvimento sustentável  Ods [1] — propostos pela Organização das Nações Unidas, especialmente o de número nº 10 da ONU que indica a "redução das desigualdades".

Com essa atitude, as empresas possibilitam que profissionais capacitados possam avançar no processo de seleção sem ter que se preocupar com o momento em que a entrevista será pessoal ou virtual, com a câmera ligada.

Passam a ter certeza de que o olhar estará integralmente voltado para suas habilidades e competências, e não para o seu cabelo afro ou para a cor de sua pele. E assim, o mercado de trabalho se abre para estes profissionais que, ao logo dos anos, serão inspiração para as gerações que virão.

É, sem sombra de dúvidas, uma opção disruptiva para diminuir estas distâncias e criar modelos que possam ser perseguidos por crianças pretas. Elas precisam se ver e se reconhecer em posições de liderança e poder.

Mas e o aspecto jurídico? Não corro o risco de propor para minha liderança o oferecimento de vagas afirmativas direcionadas à população negra e o meu recrutamento ser considerado discriminatório?
Bom, de início é importante ter em mente que não há uma vedação legal para esta prática o que, em uma análise teleológica do Direito, autoriza a conclusão de ser, portanto, permitido.

E aqui importa destacar que o legislador constituinte, quando consignou no caput do artigo 5º que "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza", não ignorou as indubitáveis diferenças existentes na população brasileira e nos estrangeiros residentes no Brasil. Não estava, portanto, afastando a possibilidade de dispensar tratamento diferente aos seus cidadãos e aos estrangeiros aqui residentes. Complexo isso? Não!

Na verdade, faz parte dos princípios informadores do direito brasileiro a possibilidade de dispensar tratamento desigual aos desiguais para, assim, atingir a equidade de direitos, respeitadas as diferenças naturalmente, historicamente e, até mesmo, socialmente existentes.

Como exemplo dessas políticas afirmativas notoriamente aceitas, e até previstas, na legislação brasileira, pode-se trazer à lume as políticas de cotas PCD e de aprendizagem profissional, ou a conceção de licença maternidade em prazo maior do que a licença paternidade.

Dito isso, a primeira afirmação possível a ser feita é que a adoção de programas de seleção, recrutamento, desenvolvimento direcionados à população negra estão em total harmonia com a Constituição.

E uma vez que tal prática está alinhada com a Lei máxima, acrescida da ausência de expressa vedação para sua utilização conforme dito acima, certamente será juridicamente respaldada a adoção de tais programas.

Para além disso, é possível verificar a existência de autorização legal para a adoção de políticas afirmativas. É o que se vê do artigo 4º, da Lei 12.288/201 (Estatuto da Igualdade Racial), que assim indica:

"Artigo 4º – A participação da população negra, em condição de igualdade de oportunidade, na vida econômica, social, política e cultural do País será promovida, prioritariamente, por meio de:
I- inclusão nas políticas públicas de desenvolvimento econômico e social;
II– adoção de medidas, programas e políticas de ação afirmativa, dentre outras;
(…)."

Ainda, para corroborar o que está ora dito, destaca-se o fato de já ter o Ministério Público do Trabalho, que possui como atribuição exatamente fiscalizar o cumprimento da legislação trabalhista quando houver interesse público, se manifestado, pública e positivamente, acerca da regularidade da adoção das políticas afirmativas para a contratação de pessoas pretas. (Nota Técnica GT de Raça nº 001/2018)

O Supremo Tribunal Federal, ao apreciar as cotas para ingresso em universidades e concursos públicos, também já declarou ser constitucional compatível as ações afirmativas com o princípio da igualdade previsto no artigo 51 (acima já citado) e 7º, XXX da CR (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 186 e Ação Direta de Constitucionalidade 41).

Deste modo, e utilizando-se das bases jurídicas ora trazidas, é possível a você, Legal, amparar a área de RH para a sensibilização e o convencimento do c Level da Companhia. É importante, neste momento, indicar que, como tudo no Direito, sempre há o risco de que tal ação venha a ser juridicamente questionada, porém a chance de êxito da parte questionadora em um tema desta envergadura é mínima.

E auxiliando o RH a apresentar estes projetos demonstrando o baixo risco jurídicos (perda) versus os benefícios sociais, de ESG, financeiros (ebitidas), de imagem da marca, daí advindos, certamente será mais fácil convencer a grande Direção da importância desse movimento.

Legal e RH: o que acham de encorajar os seus decisores trazendo exemplos de resultados positivos decorrentes destas políticas afirmativas de recrutamento?

Quem sabe, juntos, façam a esperada transformação para um mundo corporativo em que estes profissionais negros passem de escolhidos à escolhedores de seus empregos?


[1] Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável são um apelo global à ação para acabar com a pobreza, proteger o meio ambiente e o clima e garantir que as pessoas, em todos os lugares, possam desfrutar de paz e de prosperidade. Estes são os objetivos para os quais as Nações Unidas estão contribuindo a fim de que possamos atingir a Agenda 2030 no Brasil. (https://brasil.un.org/pt-br/sdgs).

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