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Marco legal dos criptoativos: o que esperar do futuro das moedas virtuais

Autor

  • Amanda Cunha e Mello Smith Martins

    é advogada com bacharelado e mestrado em Direito na USP. Doutoranda em Direito Internacional Privado pela mesma instituição. Pesquisadora no Legal Grounds Institute. Diretora no Instituto Brasileiro de Direito Internacional Privado. Coordenadora de Direito do Consumidor na Comissão de Privacidade e Proteção de Dados da OAB-SP. Autora de livros e artigos sobre Direito e Novas Tecnologias.

6 de dezembro de 2022, 8h00

A discussão vinha ocorrendo desde 2015, mas foi apenas no final de novembro de 2022 que foi aprovado o projeto de lei destinado a regular o mercado de criptoativos no Brasil [1]. O texto do PL 4.401/21 [2] (antigo PL 2303/15 [3]) foi aprovado pela Câmara dos Deputados, seguindo assim para sanção presidencial, a qual poderá ocorrer ainda neste ano. A notícia de que o Brasil está prestes a contar com um marco regulatório das criptomoedas chamou a atenção dos investidores, atentos aos impactos que a nova legislação poderá produzir, bem como das empresas, especialmente aquelas dedicadas à prestação de serviços envolvendo ativos virtuais, as quais serão obrigadas a adotar medidas específicas para que seja autorizada a atuação em território nacional.

ConJur
Duas preocupações centrais motivaram o projeto de lei: a primeira delas, de ordem penal, e, a segunda, de ordem consumerista. Em ambos os casos, o que se pretende, em linhas gerais, é propor diretrizes capazes de garantir maior controle e maior segurança no mercado brasileiro de ativos digitais, tendo em conta a popularização das criptomoedas que vem ocorrendo nos últimos anos, a exemplo do Bitcoin (BTC). De fato, o texto aprovado é de 2021, mas, o projeto de lei original é de 2015 — ou seja, a preocupação com a regulação das criptomoedas não é algo tão recente no Brasil [4]. Na verdade, na justificativa do referido projeto, é citado relatório especial do Banco Central Europeu (BCE) de outubro de 2012, no qual são destacados os riscos envolvidos nessa espécie de regulação [5].

A motivação de ordem penal está relacionada ao potencial de utilização de criptoativos em atividades criminosas, como lavagem de dinheiro ou ocultação de valores, ou como forma de remuneração por atividades ilícitas. A segunda motivação, de ordem consumerista, está ligada à vulnerabilidade dos consumidores que estariam "inadvertidamente expostos a riscos financeiros significativos e sem proteção legal alguma". Dessa forma, um dos objetivos da regulação do setor é oferecer uma maior proteção aos consumidores, atraindo a aplicação do Código de Defesa do Consumidor, e impondo exigências que permitam demandas as empresas prestadoras de serviços no judiciário nacional.

Apesar de mais abrangente, por tratar também de milhagem aérea, o texto original se resumia a quatro artigos, modificando algumas normas já existentes, o inciso I do artigo 9º da Lei 12.865/2013, que trata da competência do Banco Central [6], e o artigo 11 da Lei 9.613/1998, voltada aos crimes de lavagem de dinheiro e ocultação de bens e valores, e a qual criou o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) [7]. Ainda no texto original, ficava estabelecida a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor às "operações conduzidas no mercado virtual de moedas".

O texto aprovado pela Câmara, e que vai seguir para sanção presidencial, por sua vez, procura regulamentar as pessoas jurídicas que prestam serviços ligados às criptomoedas, como troca, custódia, transferência ou administração desses ativos. As empresas que se enquadrarem no conceito de prestadora de serviços de ativos virtuais, nos termos do PL, "somente poderão funcionar no País mediante prévia autorização de órgão ou de entidade da administração pública federal" (artigo 2º), e deverão observar diretrizes específicas, como a defesa do consumidor e a solidez das operações (artigo 4º).

O Projeto não estabelece qual será esse órgão ou entidade, por ser uma indicação de competência do Poder Executivo, enquanto o projeto é de iniciativa parlamentar. Contudo, parece claro que o Banco Central irá assumir esse papel, e tornar-se responsável por autorizar o funcionamento das prestadoras de serviços de ativos virtuais no território brasileiro [8]. Para isso, o órgão irá estabelecer condições e prazos para adequação das prestadoras, de, no mínimo, seis meses. Isso significa que, após a sanção presidencial, e a designação do órgão da administração pública federal responsável, todas as pessoas jurídicas que prestam serviços relacionados a ativos virtuais terão que dar início a um processo específico de adequação [9].

Em sua primeira versão, o PL era voltado especificamente à "inclusão das moedas virtuais e programas de milhagem aéreas na definição de 'arranjos de pagamento', colocando as criptomoedas sob a supervisão do Banco Central". O PL aprovado pela Câmara dos Deputados não fala em "moedas virtuais", mas em "ativos virtuais", e é voltado especificamente às prestadoras de serviços que atuam no ramo. As milhas aéreas, por sua vez, desapareceram do texto, que passou a ser voltado exclusivamente aos criptoativos e seus prestadores, e que exclui expressamente de sua aplicação "pontos e recompensas de programas de fidelidade".

Essa pequena alteração, substituindo "moedas" por "ativos", pode impactar o âmbito de aplicação da norma, que, embora não trate expressamente sobre tais questões, poderia recair não apenas sobre as criptomoedas, mas também sobre outros ativos virtuais, a exemplo de NFTs (Non-Fungible Tokens[10]. Os NFTs, assim como o DeFi e a Web 3, outras temáticas pertinentes ao universo dos ativos virtuais, não foram abordados expressamente pelo texto do Projeto — o que não impede, por outro lado, que regras futuramente estabelecidas pelo órgão regulador venham a impactar tais questões.

O artigo 3º do PL define ativo virtual como a "representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para a realização de pagamentos ou com o propósito de investimento", e exclui algumas espécies de ativos de seu âmbito. Assim, ficam expressamente fora do escopo do PL as moedas nacionais e estrangeiras, bem como as moedas eletrônicas trazidas no texto da Lei 12.865/2013, os pontos e programas de recompensa ou fidelidade (presentes no texto original), e representações de ativos já previstos em lei, como valores imobiliários e ativos financeiros (os criptoativos considerados como valores mobiliários ficarão sob a alçada da Comissão de Valores Mobiliários [11]).

Diante disso, cumpre indagar se uma empresa que intermedia a venda de NFTs, e, portanto, presta serviços de ativos virtuais, estaria sob o âmbito da nova lei; as criptomoedas, nesse contexto específico, poderiam surgir apenas como um meio para compra ou venda de outra espécie de criptoativo, este sim objeto da prestação de serviços daquela empresa.

É bem verdade, no entanto, que tais questões possuem particularidades relevantes, ensejando a necessidade de regulação própria, e inviabilizando a aplicação automática de regras criadas para o contexto das criptomoedas. Sob essa perspectiva, o silêncio do texto sobre NFTs, DeFi e Web 3 é algo positivo. Mas, em um primeiro momento, parece possível que um consumidor invoque a aplicação (ainda que por analogia) de disposições voltadas às criptomoedas a outras espécies de ativos virtuais, não contemplados expressamente no texto do PL [12]. É possível que, com o desenvolvimento da jurisprudência sobre o tema, e com a edição de normas pelo órgão regulador designado, o escopo do marco regulatório dos ativos virtuais torne-se mais claro [13].

Também há uma grande expectativa, quanto à atuação do órgão regulador, em relação aos critérios e prazos que serão fixados para as pessoas jurídicas que prestam serviços de ativos virtuais no Brasil. Recém encerrada a adequação à LGPD, as empresas estão preocupadas em se adequar a uma nova norma [14] — sem saber, ainda, quais serão exatamente as ações e medidas que terão de adotar. No entanto, mesmo que sancionada ainda neste ano, a lei levará seis meses para entrar em vigor [15]; quanto aos critérios e prazos de adequação, quando definidos, não poderão ser inferiores a seis meses, e serão precedidos por ato do Executivo indicando o órgão responsável. Com isso, há tempo hábil para as empresas que, desejando manter sua atuação no Brasil, realizem as adequações necessárias, registrando CNPJ no país, e adotando outras ações para cumprir as novas diretrizes.

Para além da perspectiva dos consumidores e das empresas, o texto legislativo também traz alterações no âmbito penal. No artigo 10º do PL, é criado novo tipo penal, referente a fraudes "com a utilização de ativos virtuais, valores mobiliários ou ativos financeiros" [16], e também são alteradas a Lei nº 7.492/86 (que define os crimes contra o sistema financeiro nacional) e a Lei nº 9.613/98, prevendo aumento de pena de um a dois terços, se os crimes ali previstos foram cometidos por meio do uso de ativos virtuais. As preocupações com o financiamento de atividades ilícitas, corrupção, e lavagem ou ocultação de valores, estiveram presentes desde o início do processo legislativo, e se mantiveram na versão final do Projeto, revelando a busca por maior segurança jurídica no setor como um todo.

Por outro lado, alguns pontos foram controversos, a exemplo da proposta de segregação patrimonial entre as empresas e os investidores, que ficou de fora da versão final do texto. Durante a tramitação do Projeto, no Senado, haviam sido incluídos dispositivos voltados à obrigatoriedade de tal segregação patrimonial. A longa tramitação ganhou impulso recentemente, após a quebra da corretora FTX, plataforma fundada por Sam Bankman-Fried, ocasionando prejuízos bilionários.

A discussão sobre a segregação patrimonial colocou as corretoras nacionais e estrangeiras em pólos opostos; enquanto as primeiras defenderam que a segregação evitaria insolvência por excesso de alavancagem, e reduziria o potencial de fraudes, as estrangeiras apontaram preocupações de ordem comercial, como a inviabilização de produtos, a exemplo do empréstimo e criptoativos, propondo, como alternativa, a constituição de fundos para ressarcir investidores, ou a exigência de provas de reserva. Ao final, a proposta de segregação foi rejeitada, o que não impede que seja retomada em iniciativas legislativas futuras.

Neste momento, em que a regulação infralegal assume posição de destaque, cumpre aguardar a indicação e as diretrizes do Banco Central, e, eventualmente, pelo Conselho Monetário Nacional (CMV), para analisar a efetividade das novas regras tendo em conta os objetivos acima colocados. Enquanto isso, cumpre reconhecer o valor do PL 4401/21 na condição de marco inicial da regulação dos ativos virtuais no Brasil, em busca de maior segurança jurídica, e indo ao encontro da governança esperada para um setor que ocupa espaço cada vez maior no cenário econômico brasileiro, e cuja importância não pode ser ignorada.

 


[1] Segundo dados levantados pelo Estadão, ao menos 27 países "já desenvolvem ou de alguma forma já avançaram em regulação cripto, sendo a principal preocupação o risco monetário que a lavagem de dinheiro e evasão de divisas trazem para o ecossistema financeiro". NICOCELI, Artur. Entenda o impacto da regulaão do mercado cripto para os investidores. Estadão. 21/11/2022. Disponível em: <https://einvestidor.estadao.com.br/criptomoedas/impacto-regulacao-criptomoedas-investidores/>

[2] BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 4401, de 2021. Dispõe sobre a prestadora de serviços de ativos virtuais; e altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e as Leis nºs 7.492, de 16 de junho de 1986, e 9.613, de 3 de março de 1998, para incluir a prestadora de serviços de ativos virtuais no rol de instituições sujeitas às suas disposições. Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/151264>.

[3] BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 2303, de 2015. Dispõe sobre a inclusão das moedas virtuais e programas de milhagem aéreas na definição de "arranjos de pagamento" sob a supervisão do Banco Central. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1555470>

[4] "O texto aprovado é resultado da junção de três projetos de lei da Câmara e dois do Senado, incluindo um que tratava de programas de milhagem de companhias áreas, ainda antes da própria criação do bitcoin em 2008. Os projetos ganharam apelo de parlamentares preocupados com a disseminação de pirâmides financeiras, como a do Faraó dos Bitcoins, que teria redundado em um prejuízo de R$ 19 bilhões (…)". VALOR. Câmara aprova PL das Criptomoedas sem segregação patrimonial. Valor Econômico. 29/11/2022. Disponível em: <https://valor.globo.com/financas/criptomoedas/noticia/2022/11/29/camara-aprova-pl-cripto-sem-segregacao-patrimonial.ghtml>

[5] BANCO CENTRAL EUROPEU (BCE). Virtual Currency Schemes  a further analaysis. Fev., 2015. Disponível em: <https://www.ecb.europa.eu/pub/pdf/other/virtualcurrencyschemesen.pdf>

[6] BRASIL. Lei nº 12.865, de 9 de outubro de 2013. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12865.htm>

[7] BRASIL. Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998. Dispõe sobre os crimes de "lavagem" ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), e dá outras providências. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9613.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%209.613%2C%20DE%203%20DE%20MAR%C3%87O%20DE%201998.&text=Disp%C3%B5e%20sobre%20os%20crimes%20de,COAF%2C%20e%20d%C3%A1%20outras%20provid%C3%AAncias>

[8] "Artigo 2º As prestadoras de serviços de ativos virtuais somente poderão funcionar no País mediante prévia autorização de órgão ou de entidade da administração pública federal a ser indicada em ato do Poder Executivo. Parágrafo único. Ato do órgão ou da entidade da administração pública federal a que se refere o caput estabelecerá as hipóteses e os parâmetros em que a autorização de que trata o caput deste artigo poderá ser concedida mediante procedimento simplificado".

[9] "Artigo 5º Considera-se prestadora de serviços de ativos virtuais a pessoa jurídica que executa, em nome de terceiros, pelo menos um dos serviços de ativos virtuais, entendidos como: I – troca entre ativos virtuais e moeda nacional ou moeda estrangeira; II – troca entre um ou mais ativos virtuais;

III – transferência de ativos virtuais; IV – custódia ou administração de ativos virtuais ou de instrumentos que possibilitem controle sobre ativos virtuais; ou V – participação em serviços financeiros e prestação de serviços relacionados à oferta por um emissor ou venda de ativos virtuais".

[10] "Artigo 3º Para os efeitos desta Lei, considera-se ativo virtual a representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para a realização de pagamentos ou com o propósito de investimento (…)".

[11] COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS (CVM). Parecer de orientação CVM nº 40, de 11 de outubro de 2022. Os Criptoativos e o Mercado de Valores Mobiliários. Disponível em: <https://conteudo.cvm.gov.br/export/sites/cvm/legislacao/pareceres-orientacao/anexos/Pare040.pdf>

[12] Uma possível defesa contra tal argumento, por parte da empresa envolvida, poderia residir no Artigo 3º, que exclui expressamente de seu escopo "III – instrumentos que provejam ao seu titular acesso a produtos ou serviços especificados (…)".

[13] Artigo 5º: "Parágrafo único. O órgão ou a entidade da administração pública federal indicada em ato do Poder Executivo poderá autorizar a realização de outros serviços que estejam direta ou indiretamente relacionados à atividade da prestadora de serviços de ativos virtuais de que trata o caput deste artigo".

[14] A segurança da informação e a proteção de dados pessoais também constam entre as diretrizes obrigatórias a serem observadas pelas empresas prestadoras de serviços de ativos virtuais, colocando-se a urgência na adequação à LGPD, para aquelas empresas que ainda não o fizeram, ou que encontram-se em uma fase intermediária em termos de maturidade em governança de proteção de dados.

[15] O Artigo13 prevê vacatio legis de 180 dias, contados a partir da publicação oficial.

[16] O Código Penal passa a vigorar acrescido do artigo 171-A: "Organizar, gerir, ofertar ou distribuir carteiras ou intermediar operações que envolvam ativos virtuais, valores mobiliários ou quaisquer ativos financeiros com o fim de obter vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento. Pena  reclusão, de quatro a oito anos, e multa".

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