PENSANDO A LÁPIS

Retomada do julgamento da ADI 4.757 causa preocupação

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5 de dezembro de 2022, 8h00

A Asibama (Associação dos Servidores de Carreira de Especialista em Meio Ambiente) ajuizou, em abril de 2012, a ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) 4.757 no Supremo Tribunal Federal (STF) para questionar diversos dispositivos da LC 140/2011, que regulamenta o artigo 23, p.ú., da CF, fixando regras para a cooperação entre a União, os estados e os municípios nas ações administrativas decorrentes do exercício da competência comum em matéria ambiental. O diploma legal foi editado mais de 20 anos após a promulgação do texto constitucional e é considerado uma das mais importantes normas do Direito Ambiental brasileiro, pois afastou inúmeros questionamentos sobre a competência dos entes da federação para proteção ambiental.

Iniciado o julgamento virtual, a ministra relatora Rosa Weber votou no sentido de julgar parcialmente procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade de dois importantes dispositivos, no que foi acompanhada pelos ministros Alexandre de Moraes, Dias Toffoli e Edson Fachin.

Após destaque do ministro Luiz Fux, o julgamento virtual foi retomado em 2/12 e causa preocupação. Isso porque, havendo aderência dos demais ministros à tese constante do voto da relatora, já conhecido, que declara a inconstitucionalidade do §4° do artigo 14 e do § 3° do artigo 17 da LC 140/2011, o cenário aponta para um clima de insegurança jurídica e de instabilidade que se acreditava havia sido dissipado após mais de 10 anos de vigência da LC 140/2011. Vários juristas já expressaram sua preocupação, tendo a CNI inclusive ingressado como amicus curiae para buscar a improcedência da demanda.

Explica-se: o artigo 14, §4°, a LC 140/2011 estabeleceu que, quando da renovação das licenças ambientais, seu prazo de vigência fica automaticamente prorrogado desde que o requerimento respectivo tenha sido feito em determinado prazo (120 dias antes do vencimento). Não se trata de pedidos de licenças ambientais novas, mas de renovação das licenças ambientais já existentes e devidamente emitidas pelos órgãos ambientais competentes. Tal previsão, aliás, já é aplicável desde 1997 nos processos de licenciamento, quando foi editada a Resolução Conama 237.

A respeito de tal disposição, no entanto, o voto da ministra relatora da ADI 4757 indica que a regulamentação existente é insuficiente por não disciplinar "qualquer consequência para a hipótese de omissão ou mora administrativa imotivada e desproporcional do órgão ambiental" na análise de pedidos de renovação de licenças. Assim, pretendendo atribuir interpretação conforme à Carta Magna ao aludido dispositivo, declarou que a pendência de manifestação definitiva sobre os pedidos de renovação de licenças ambientais também instaura a competência supletiva do artigo 15 da mesma lei, com o deslocamento de competência originária para outro órgão administrativo por decurso do tempo na análise dos pedidos de renovação de licenças.

Ou seja, caso o pedido de renovação de licença se delongue, incidirá a atuação de outro órgão ambiental de outro ente da federação. Em sendo a mora de um órgão estadual, por exemplo, o Ibama terá que assumir supletivamente o processo de licenciamento respectivo.

A previsão do artigo 14, §4°, no entanto, constitui exceção proposital à regra de instauração da competência supletiva prevista no artigo 15 da mesma lei, justamente para garantir ao administrado o direito de não ser penalizado por inércia da própria administração pública quando da renovação da sua licença ambiental.

No caso, o descumprimento de prazos para análise de pedidos de renovação de licenças já emitidas, a consequência do seu descumprimento deve recair sobre a própria administração pública, inclusive para não se atribuir à competência supletiva função punitiva inexistente no ordenamento jurídico.

Fosse o caso de atribuir como consequência da mora do órgão ambiental a instauração da competência supletiva nos casos de pedidos de renovação de licenças já expedidas, não teria o §4° sido editado como exceção à regra do §3° do mesmo artigo 14.

Esse entendimento, no sentido de que a mora da administração na análise de pedidos de renovação de licença deflagra a atuação supletiva do artigo 15, caso prevaleça, poderá afetar inúmeras licenças ambientais e processos de licenciamento, cuja gestão vem sendo feita atenta e escorreitamente pelos órgãos ambientais competentes.

Noutro giro, o voto da ministra relatora da ADI em análise também declara a inconstitucionalidade do artigo 17, §3º, da LC 140/2011 que, em suma, estabelece que no caso de atividades ou empreendimentos devidamente licenciados, compete ao órgão ambiental licenciador a lavratura de autos de infração ambiental.

É preciso ter claro que tal disposição não afasta a competência comum do poder de polícia para fiscalização de infrações ambientais. De fato, todos os entes da federação podem e devem fiscalizar ações incompatíveis com a legislação ambiental. Porém, quando o empreendimento ou a atividade for devidamente licenciada, o auto de infração respectivo deve ser lavrado pelo órgão competente para o seu licenciamento ambiental.

Para boa compreensão, é preciso antes assumir as seguintes premissas, que não são objeto de questionamento na referida ADI: 1) a Lei Complementar 140/2011 foi editada em atenção ao comando do artigo 23, p.ú, CF, fixando regras para o desempenho de ações administrativas decorrentes do exercício da competência comum em matéria ambiental, nas esferas licenciatória e fiscalizatória; 2) existe regra clara repartindo competências em matéria de licenciamento ambiental, conforme previsão dos arts. 7° a 12 da referida lei; 3) a regra do artigo 17, caput, reconhecendo haver competência comum em matéria ambiental, estabelece que o dever de lavratura de autos de infração relativos às atividades licenciadas compete ao ente licenciador.

Evidentemente, constando-se a ocorrência a infração administrativa, se não for o caso de comunicar ao órgão ambiental competente para as medidas cabíveis, é prerrogativa comum dos órgãos ambientais proceder à fiscalização e à autuação, em especial no caso de iminência ou ocorrência degradação ambiental, inclusive na linha do artigo 70 da Lei Federal 9.605/1998 [1].

O que o §3° do artigo 17 da LC 140/2011 fez foi justamente estabelecer que, mesmo nessas circunstâncias, prevalece o auto de infração lavrado pelo órgão ambiental que detenha a atribuição de licenciamento ou autorização da atividade considerada. Ora, o órgão licenciador é o que tem as condições de avaliar se o empreendimento ou a atividade por ele autorizada está ou não cumprindo as normas ambientais e as condicionantes fixadas no processo por ele conduzido. Com efeito, não faz sentido o Ibama impor uma penalidade administrativa a um empreendimento devidamente licenciado por um dos Estados da federação.

Note-se que o dispositivo em análise teve, ao tempo da sua edição, um efeito pedagógico, no sentido de inibir a sanha arrecadatória da administração pública desempenhada por autuações descabidas lavradas por quem não detinha conhecimento sobre as condições da atividade, visto que licenciadas por outro ente, pondo fim ao bis in idem, por meio do qual, pelo mesmo comportamento, o administrado era penalizado por diversos entes.

Salvo melhor juízo, o entendimento constante do voto conhecido não parece divergir daquilo que sempre se compreendeu, de modo que até mesmo a conclusão pela inconstitucionalidade causa dúvida.  

Ora, se é consabido que a "prevalência do auto de infração lavrado pelo órgão originalmente competente para o licenciamento ou autorização ambiental não exclui a atuação supletiva de outro ente federado, desde que comprovada omissão ou insuficiência na tutela fiscalizatória", o que se retira, pela construção do voto e em linha com a CF, é que o exercício da competência comum impõe aos demais entes suprir a omissão e a insuficiência na tutela fiscalizatória do ente licenciador, mas que deverá prevalecer o entendimento deste, dentre outros motivos, para afastar-se punição bis in idem, repudiado por nosso ordenamento jurídico.

Vale lembrar que a regra do §3° do artigo 17 racionalizou a competência para a lavratura de auto de infração no caso de atividades licenciadas/autorizadas e permitiu conferir maior organicidade à atuação dos órgãos ambientais, no sentido da primazia da eficiência, de modo que outra interpretação pode reacender celeuma que se acreditava ter sido solucionada.

Cumpre remarcar que, nessa década de existência da LC 140/2011, tal previsão jamais impediu o exercício da competência comum dos entes da administração pública na tutela administrativa do meio ambiente, tendo apenas estabelecido prevalecer o auto de infração lavrado pelo órgão ambiental competente e licenciador, razão pela qual causa preocupação as implicações práticas de eventual entendimento no sentido de afirmar a inconstitucionalidade do §3° do artigo 17.

A LC 140 trouxe apenas vantagens para o sistema, afastando insegurança jurídica a respeito da definição de competência para o licenciamento ambiental e para a emissão de outras autorizações administrativas nesta seara. Além disso, a norma definiu a forma de cooperação que deve haver entre os entes da federação para a proteção do meio ambiente, dissipando questionamentos sobre os limites da atuação supletiva licenciatória e a competência para lavratura de autos de infração. Dessa maneira, ganhou o meio ambiente, a administração e o administrado.

Com efeito, o diploma contestado na ADI 4757 é uma norma que permitiu a funcionalidade do Sistema Nacional do Meio Ambiente — Sisnama, inaugurado com a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, em 1981, e assegurado pela definição de competência comum regida no artigo 23, p.ú., da Lei Maior. Em outros termos, a LC 140/2011 é funcional, pois, ainda que imperfeita — como sói ocorrer com a maioria das normas atualmente editadas pelo Poder Legislativo, que enfrenta uma crise ao lidar com uma dinâmica social de rápida evolução e assuntos extremamente técnicos —, permitiu que fosse organizada a atuação dos entes da federação na proteção ambiental.

Destarte, o caso é de acompanhar e verificar o que sucederá, ainda no curso do julgamento, inclusive mediante modulação de efeitos, à vista do risco dos temas que se pretendeu endereçar na LC 140/2011 — limites atuação supletiva e a noção do non bis in idem — possivelmente voltarem aos tribunais.

 


[1] "Artigo 70 –  Considera-se infração administrativa ambiental toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente.

§ 1º São autoridades competentes para lavrar auto de infração ambiental e instaurar processo administrativo os funcionários de órgãos ambientais integrantes do Sistema Nacional de Meio Ambiente – Sisnama, designados para as atividades de fiscalização, bem como os agentes das Capitanias dos Portos, do Ministério da Marinha.

§ 2º Qualquer pessoa, constatando infração ambiental, poderá dirigir representação às autoridades relacionadas no parágrafo anterior, para efeito do exercício do seu poder de polícia.

§ 3º A autoridade ambiental que tiver conhecimento de infração ambiental é obrigada a promover a sua apuração imediata, mediante processo administrativo próprio, sob pena de co-responsabilidade.

§ 4º As infrações ambientais são apuradas em processo administrativo próprio, assegurado o direito de ampla defesa e o contraditório, observadas as disposições desta Lei."

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