Opinião

O elo perdido: o desafio da gestão das regiões metropolitanas

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5 de dezembro de 2022, 6h42

Um dos temas cada vez mais discutidos por acadêmicos, legisladores, formuladores de políticas públicas e gestores urbanos internacionalmente é o da gestão metropolitana. Frequentemente vistas e temidas como "supermunicípios" ou "miniestados", as regiões metropolitanas incomodam muita gente — mas essa discussão não pode mais ser evitada. No Brasil, com o arrefecimento da euforia municipalista que caracterizou o processo constituinte e a maior compreensão da complexidade da escala metropolitana intrínseca a diversos dos processos socioeconômicos e socioambientais em áreas urbanas, tem havido nos últimos anos um reconhecimento crescente da importância do tema — e da necessidade de enfrentá-lo acadêmica, política e juridicamente.

Não pretendo tratar aqui das dinâmicas socioeconômicas, urbanísticas, políticas e culturais que caracterizam o fenômeno da metropolização — a ampla geografia da "cidade real", que desconsidera limites administrativos e mesmo limites físicos entre municípios —, para me concentrar na discussão da dimensão jurídico-institucional desse processo. De qualquer forma, cabe destacar que a importância da discussão da gestão metropolitana decorre exatamente da compreensão do impacto socioeconômico que tal processo tem tido — negativa ou positivamente — nos processos de aumento da produção econômica e financeira e de geração de emprego e renda, bem como dos ganhos de competitividade que determinam a medida e as possibilidades de integração das regiões metropolitanas não só nos mercados nacionais, mas também no mercado global que tem se formado com base em um novo sistema de cidades. Também o enorme custo da ordem socioambiental metropolitana tem sido cada vez mais reconhecido.

A busca de uma "fórmula" jurídico-institucional para a ordem metropolitana é uma questão, e um problema, internacional. Qual deveria ser o status jurídico-político-institucional mais adequado para essas esferas socioeconômicas, urbanísticas e territoriais? O principal desafio da gestão metropolitana é promover a construção, política e socialmente, de uma ordem jurídico-institucional que dê expressão adequada à ordem urbano-territorial e socioeconômica que caracteriza as regiões metropolitanas. No Brasil, tal discussão ganha uma importância ainda maior devido ao grande número de regiões metropolitanas existentes, número esse que deve crescer ainda mais devido às mudanças do processo de urbanização no país com o maior crescimento das cidades de porte médio.

Desde já, é preciso fazer uma ressalva: uma tal "fórmula" jurídico-institucional metropolitana não pode ser imposta por leis ou decretos, sob pena de gerar distorções profundas e ainda mais problemas de várias ordens, mas tem de ser construída e amplamente negociada para assim ganhar a necessária legitimidade social e política que lhe dê suporte. Uma vez assim construída, essa "fórmula" deve expressar uma posição jurídica e política quanto a três questões principais inter-relacionadas:

  • a natureza das regiões metropolitanas, isto é, se trata de regiões de serviços comuns; regiões de desenvolvimento econômico; regiões de planejamento administrativo e territorial; um híbrido de tais funções; e também (e essa é uma discussão polêmica e difícil) se trata de uma região política;
  • a medida da convivência da esfera municipal com a escala metropolitana;
  • a titularidade do interesse metropolitano, tanto no que se refere a quem tem competência para agir em matérias metropolitanas, como também no que diz respeito à medida, forma e qualidade de participação popular nos processos decisórios que constituem a ordem jurídico-institucional metropolitana.

Em última análise, a discussão sobre a "fórmula" jurídico-institucional de gestão metropolitana é uma questão constitucional, sendo que, no caso brasileiro, é preciso proceder à sua construção social e politicamente de forma a preparar a discussão plena sobre o tema em um próximo processo constituinte. A importância da construção dessa ordem metropolitana adequada decorre do fato de que tal esfera é o elo perdido no processo de construção de uma ordem verdadeiramente democrática nos países urbanizados, bem como de padrões de eficiência econômica, racionalidade administrativa, justiça social e equilíbrio ambiental para orientação dos processos de gestão urbana em áreas metropolitanas. No Brasil e internacionalmente, exatamente por não incorporar as regiões metropolitanas de maneira adequada, o "mapa" da ordem jurídico-institucional não espelha o mapa da ordem urbano-territorial existente, da mesma forma que o "mapa" da representação democrática não expressa as dinâmicas político-sociais reais.

Uma avaliação das experiências internacionais indica que os políticos em posições de poder nas esferas central e municipal "não gostam" de regiões metropolitanas e que nenhum país conseguiu solucionar totalmente os problemas da gestão metropolitana, sendo que inexiste uma ordem jurídico-institucional metropolitana que seja livre de tensões políticas de várias ordens. Politicamente, as regiões metropolitanas são frequentemente vistas como ameaças aos poderes tradicionalmente estabelecidos, já que tendem a ser controladas por governos de centro-esquerda. Internamente às regiões metropolitanas, há tensões irresolúveis devido aos desequilíbrios causados pelo fato de que os maiores municípios (com frequência cidades capitais) acabam por ter mais poder nos processos de gestão metropolitana; fora das regiões metropolitanas, os municípios não-metropolitanos tendem a ressentir as regiões metropolitanas devido aos desequilíbrios causados pela grande concentração nelas de população e recursos econômicos, oportunidades e influência cultural.

A gestão metropolitana no Brasil
Dada a defasagem existente entre os processos políticos de gestão metropolitana efetivamente em curso e a ordem jurídica em vigor, três tipos básicos de situações podem ser identificados: processos de gestão metropolitana com uma base jurídica melhor, mas sem a devida legitimidade político-social; processos de gestão metropolitana com mais legitimidade político-social, mas com base jurídica precária; e alguns poucos esforços de compatibilização entre legalidade e legitimidade, que, contudo, não são sustentáveis a longo prazo. Para melhor entender tais processos, é preciso recuperar brevemente a história jurídico-institucional das regiões metropolitanas brasileiras.

A noção jurídica de região metropolitana surgiu tardiamente no país em 1967, já no pico do processo de urbanização no país, e ainda dentro do contexto das medidas federalizantes como a reforma tributária de 1965 que visavam de alguma maneira a corrigir as distorções históricas do federalismo brasileiro. De fato, desde a sua instauração em 1891 o pacto federativo constitucionalmente adotado no Brasil tem gerado problemas de todo tipo, fundamentalmente por não refletir o processo histórico do país. Desde 1934, várias têm sido as tentativas de correção do federalismo segregador original no sentido de tornar o pacto federativo mais cooperativo, mas um dos maiores problemas decorre do fato de que, até 1988, o lugar dos municípios nesse pacto não tinha sido claramente definido.

Na Constituição Federal de 1967 (e posteriormente também na redação da Emenda nº 1, de 1969), a natureza atribuída às regiões metropolitanas foi a de "região de serviços comuns", sendo que a titularidade do interesse metropolitano foi atribuída, ainda que de maneira pouco elaborada, a associações compulsórias de municípios, sendo que não havia qualquer menção à competência dos estados-membros em matérias metropolitanas. De qualquer forma, as regiões metropolitanas só foram efetivamente criadas em 1973 através da Lei Complementar nº 14, já no período de crescente centralização financeira, concentração de competências legislativas e autoritarismo político do regime militar. Nesse contexto, a natureza atribuída às regiões metropolitanas foi a de um "híbrido" de região de serviços comuns, região de planejamento territorial e região de desenvolvimento econômico. Além disso, a titularidade do interesse metropolitano foi conferida aos estados-membros, com quase total exclusão dos municípios e da sociedade metropolitanos do processo decisório da ordem pública metropolitana. De fato, a gestão de cada uma das nove regiões metropolitanas criadas foi conferida a um conselho deliberativo presidido pelo governador do estado e composto de quatro outros membros, três deles indicados pelo governador e o outro sendo o prefeito da capital — que, até 1982, não era diretamente eleito. Os demais prefeitos participavam do conselho consultivo, que, contudo, não tinha poder efetivo. Nesse contexto, as deliberações tomadas pelo conselho deliberativo tinham força de lei, sem, contudo, passarem por um processo legislativo regular no nível estadual — e muito menos no nível municipal. Tratavam-se, assim, de verdadeiras leis editadas pelo poder executivo estadual.

Além de tais distorções estruturais, a gestão das regiões metropolitanas durante o período 1973-1988 foi marcada por uma série de outros problemas de várias ordens, tais como a falta de recursos financeiros próprios, o tratamento formal idêntico dado a situações completamente heterogêneas e a utilização de critérios políticos artificiais para determinação de quais municípios deveriam ser incluídos nas Regiões Metropolitanas, enquanto diversos municípios efetivamente integrados pela dinâmica metropolitana (ainda que não necessariamente do ponto de vista da conturbação física) foram excluídos. Como resultado, a "fórmula" jurídico-institucional adotada para a gestão das regiões metropolitanas no período permitiu que elas se tornassem uma das instâncias mais importantes a serviço do governo federal no processo de sustentação do modelo de crescimento econômico promovido pelo regime militar.

De qualquer forma, a despeito de tantas e tão perversas distorções, em alguns casos a gestão das regiões metropolitanas promoveu avanços importantes, sobretudo da perspectiva urbanística e ambiental. Destaque especial deve ser dado à experiência da região metropolitana de Belo Horizonte, que se tornou uma referência nacional. Ainda que marcada por um processo de planejamento essencialmente tecnocrático, a gestão da RMBH serviu significativamente no sentido de suprir lacunas decorrentes da falta de capacidade de ação dos municípios metropolitanos, tendo contribuído para sua reorganização administrativa e financeira. A gestão metropolitana também foi instrumental para segurar pressões do mercado imobiliário especulativo, e, em que pesem os vícios profundos de legalidade e legitimidade da ordem em vigor, a ação sistemática do Conselho Deliberativo da RMBH levou à construção de uma ordem jurídico-metropolitana sólida em matérias de uso do solo urbano (consolidada pela competência para anuência prévia de projetos de parcelamento, nos termos da Lei Federal nº 6.766/79) e de controle ambiental. Iniciativas pioneiras de política urbana tiveram o apoio da RMBH, tais como a inovadora Lei de Uso e Ocupação do Solo de Belo Horizonte, de 1976, e a igualmente pioneira e progressista Lei do Pro-Favela, de 1983. Contudo, as tensões decorrentes da resistência política crescente por parte dos municípios metropolitanos excluídos do processo decisório levaram à articulação de um forte movimento de oposição.

Gestão metropolitana no processo constituinte e no contexto atual
Entre 1986 e 1988, a questão da gestão metropolitana foi discutida durante o processo constituinte, se não pela sociedade em geral, pelo menos no contexto das agências metropolitanas. A discussão nacional sobre o tema levou à formulação de uma proposta conjunta de representantes de oito das nove regiões metropolitanas existentes — com exceção de Salvador —, que foi encaminhada para alguns deputados constituintes e submetida por esses ao Congresso Constituinte. De acordo com tal proposta, seria reconhecida a natureza política das regiões metropolitanas, que, enquanto esferas de poder político, deveriam ser incorporadas no pacto federativo. Além disso, no que toca à definição das competências metropolitanas, a proposta reconhecia a possibilidade de convivência entre os interesses municipais e metropolitanos – por exemplo, nem tudo o que se refere a coleta de lixo ou a transporte público seria da alçada metropolitana. Contudo, o processo constituinte foi marcado por um movimento de "municipalismo a todo custo", que "jogou o bebê fora com a água do banho": dada a tradição de centralismo e autoritarismo que tinha caracterizado a gestão metropolitana até então, ao invés de democratizar e melhorar a "fórmula" jurídico-institucional, o Congresso Constituinte não enfrentou a questão de frente, tendo-a remetido de maneira vaga para as Constituições estaduais sem a definição de critérios básicos a serem cumpridos em todo o território nacional.

Essa "estadualização pela metade" da gestão metropolitana — que não decorreu de uma ampla discussão técnica e política que a justificasse — fez com que a maioria dos aparatos anteriormente existentes fossem gradualmente abandonados. Naqueles estados onde novas "fórmulas" têm sido tentadas, as "receitas" têm sido diferentes, mas são igualmente inadequadas e problemáticas; alguns estados propuseram a criação de assembleias metropolitanas — que podem ser juridicamente mais sólidas, mas que são em grande medida politicamente ilegítimas, e assim tendem ao fracasso. Na falta de um aparato estadual, ou mesmo quando tal aparato existe e é ineficaz, em várias regiões metropolitanas os municípios envolvidos, reconhecendo os limites da ação municipal e a necessidade de cooperação, têm assinado convênios e/ou formado consórcios acerca de diversas matérias de interesse metropolitano — soluções essas que são seguramente mais legitimas politicamente, mas que também são juridicamente mais precárias. Tais arranjos, contudo, não permitem a devida territorialização das políticas metropolitanas e a efetiva aplicação dos planos metropolitanos que não podem assim ser traduzidos em normas efetivas de uso, ocupação, parcelamento e preservação do solo. Uma ordem territorial metropolitana sistemática e compulsória não pode ser criada. Uma experiência isolada, heroica, de tentativa de compatibilização entre legalidade e legitimidade foi a da Câmara Metropolitana do Grande ABC, na qual cada decisão da câmara metropolitana era posteriormente submetida à aprovação das câmaras municipais de cada um dos municípios envolvidos – o que, no contexto do processo político fragmentado do país, certamente não era uma solução sustentável a longo prazo. A experiência mais avançada é novamente a da RMBH, onde todo um aparato institucional articulado foi criado — Assembleia Metropolitana, Conselho Deliberativo, Agência Metropolitana — e um ambicioso Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado PDDI-RMBH aprovado; contudo, na falta de uma ordem política metropolitana plenamente reconhecida tal plano continua sendo mero documento de referência para políticas públicas e ações de atores variados, sem ter a força jurídica necessária para criar uma ordem territorial metropolitana sólida e compulsória da qual decorram obrigações, responsabilidades e direitos.

Conclusão
Tantas décadas após a promulgação da Constituição Federal de 1988, pode-se dizer que, em que pesem os graves problemas existentes, tem havido nacionalmente um avanço do processo de conscientização de que a solução dos problemas metropolitanos não se esgota na soma das ações municipais, e que a falta de um aparato jurídico-institucional adequado para enfrentá-los tem levado a distorções de toda ordem, fazendo com que a gestão urbana nas regiões metropolitanas seja caracterizada pela combinação de processos de ineficiência econômica, irracionalidade administrativa, injustiça social e degradação ambiental. Esse quadro tem sido agravado pelo crescimento artificial do número de municípios metropolitanos por razões estritamente clientelistas.

É fundamental que sejam renovadas as bases da discussão sobre a questão da gestão metropolitana, no sentido de que decisões fundamentais sejam tomadas acerca de seus elementos principais, quais sejam, sua natureza, a medida da compatibilidade entre os interesses metropolitanos e municipais, e a titularidade do interesse metropolitano. Uma tal discussão ampla e crítica da questão certamente contribuiria para a construção político-social de uma ordem jurídico-institucional metropolitana pelo próximo processo constituinte, que, com um atraso de décadas, expresse a ordem metropolitana real de maneira adequada.

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