Público & Pragmático

PLP 79/22: avanços para o sistema de controle da ação pública

Autor

  • Laura Mendes Amando de Barros

    é doutora e mestre em Direito do Estado pela USP especialista em Direito Público pela Escola da Paulista da Magistratura e em Autoridades Locais e o Estado pela ENA-Paris ex-controladora geral do município de São Paulo e professora do Insper.

4 de dezembro de 2022, 8h00

Introdução
O projeto de Lei Complementar 79/22 tem por escopo a disciplina da atividade de controle da ação pública, com inegáveis avanços e boas perspectivas de resultado.

Não obstante apresente uma preocupação marcante com a atuação dos Tribunais de Contas, perpassa também pelas outras esferas de controle, como o interno e o social, em uma louvável visão sistêmica dessa fundamental função pública.

Digna de aplausos a iniciativa: quanto maior o envolvimento dos diversos stakeholders, quanto maiores a discussão e o envolvimento da sociedade e demais interessados na tramitação de um projeto legislativo, maior a sua legitimidade — e, portanto, a aderência aos seus dispositivos.

Tal ciclo virtuoso redunda em maior efetividade e eficácia da norma dele resultante, com a produção de efeitos mais profícuos e capazes de maior repercussão jurídica, política e social.

Feita essa brevíssima apresentação do projeto, passemos à consideração — não exauriente — de seus dispositivos propriamente ditos.

Normas constantes do PLP 79/22 e responsividade às demandas da sociedade brasileira
O projeto de Lei Complementar propõe-se a disciplinar, organizar e sistematizar regras voltadas ao incremento da qualidade da função de fiscalização e controle, com marcante preocupação com a coerência e coordenação entre as diversas esferas federativas e instâncias controladoras.

Nesse sentido, traz uma lógica sistêmica e de declarada e vinculante simetria entre os diversos Tribunais de Contas — e, em última análise, de todo o sistema de controle (interno, externo e social).

Um dos instrumentais para tanto concebidos é o desenvolvimento, pelo Executivo federal, de sistemas de registro eletrônico centralizado de informações sobre finanças públicas de todos os Poderes e órgãos autônomos da União, estados, Distrito Federal e municípios – os quais devem ser alimentados de forma padronizada e pormenorizada, de modo a possibilitar análises cruzadas e comparativas.

A ideia seria a criação de um sistema eletrônico com funcionalidades voltadas, por exemplo, ao cálculo e aferição informatizada e automática da observância — ou não — de limites legalmente estabelecidos, cumprimento de condições e normas, além da integração com os sistemas de transferências da União.

A ferramenta deverá contemplar ainda a divulgação de cargos em comissão, contratações temporárias e terceirização, despesas com indenizações e reembolsos (inclusive decorrentes de passagens aéreas, com relação às quais deverá ser especificamente indicada a categoria e pertinência do deslocamento com a atividade finalística do órgão/ente), distribuição e lotação de servidores efetivos.

Incumbirá ao órgão central de contabilidade da União — ouvida previamente a instância de planejamento e orçamento —, a criação de comitês técnicos e um comitê de controle social voltado à viabilização pleno e direto exercício do controle social e o incremento das estratégias de efetiva transparência, com a estruturação de formas de comunicação acessíveis, palatáveis e compreensíveis ao cidadão comum.

Será obrigatória, ainda, a criação de um módulo específico para o exercício do controle social das despesas com remuneração de agentes públicos e funcionários de entidades parceiras, com a possibilidade de controle individualizados e específico de beneficiários de repasses — iniciativa muitíssimo bem-vinda para o controle e afastamento de estratagemas de sobreposição de receitas, não raramente observado.

Com efeito, via-se com relativa frequência a obtenção de recursos públicos para pagamento de pessoal, em diversos instrumentos de parceirização, sem qualquer indicação específica quanto a que agentes, ou que atividades, seriam remuneradas em decorrência de cada um deles.

Tais desvios eram viabilizados, inclusive, pelo disposto no artigo 11, parágrafo único, VI da Lei 13.019/14, que exigia tão somente a divulgação global e genérica dos valores destinados à remuneração de pessoal no âmbito de determinada parceria [1].

A observância de tais regras — com inquestionável potencial positivo — condicionará a realização de transferências voluntárias, operações de crédito, obtenção de garantia da União e estados.

Não obstante seja um passo muitíssimo importante para o incremento da transparência da ação pública, e ressaltadas as exigências de rastreabilidade, compatibilidade (com emprego de formato uniforme) e interoperabilidade, o projeto poderia, a nosso ver, ter ido mais longe e incorporado a exigência de utilização de formato aberto, nos termos já consagrados nos artigos 8º da Lei de Acesso à informação desde 2011 [2] e 3º, XIV e XXV [3] e 29, II [4] da Lei nº 14.129/21 (Lei do Governo Digital).

É claro que uma interpretação sistemática conduziria inexoravelmente ao dever de observância de tal exigência também no âmbito do PLP — mas, inclusive em razão das diversas iniciativas e retrocessos em termos de transparência e participação social observados nos últimos anos, uma previsão expressa e indiscutível seria inquestionavelmente bem-vinda.

O artigo 4º do projeto trata do Sistema Nacional de Auditoria do Sistema Único de Saúde (SNA/SUS), criado pela Lei nº 8.689/93 e responsável pela avaliação técnico-científica, contábil, financeira e patrimonial descentralizada do SUS por meio de órgãos estaduais e municipais, com representação do Ministério da Saúde nos estados e Distrito Federal.

Digna de aplausos a exigência de que os integrantes do corpo técnico de tal órgão seja integrado por agentes efetivos, cujo desempenho deve ter como foco a prevenção, com orientação do gestor para a promoção da qualidade e efetividade das políticas de saúde.

Tal premissa está em plena consonância com o decidido pelo Supremo Tribunal Federal no âmbito da ADI 6.655/SE, assim ementada:

"Administrativo. Dispositivos de leis do Estado de Sergipe que ratam da estrutura administrativa e do quadro de pessoa do Tribunal de Contas de referido ente. Suposta criação de cargos comissionados com delegação de funções típicas de cargo efetivo. Alegada transferência do desempenho das atividades finalísticas de controle externo a comissionados, sem vínculo efetivo, em desacordo com o modelo federal de controle externo das contas públicas. Observância da destinação constitucionalmente fixada para os cargos comissionados, que devem compreender funções de direção, chefia ou assessoramento. Desnecessidade de especificação legal minuciosa de cada uma das atividades inerentes ao cargo. O artigo 9º, caput e § 3º, da Lei complementar estadual nº 232/2013 permite que Coordenadores desprovidos de vínculo efetivo desempenhem atividades de execução do controle externo, de fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial do Estado e dos Municípios. Atividades exclusivas dos Analistas de Controle Externo pertencentes a quadro próprio de pessoal. Afronta, neste ponto específico, ao artigo 37, caput e incisos II e V, da Carta. Interpretação conforme a Constituição para que os Coordenadores que exerçam atividades finalísticas de auditoria e instrução processual sejam apenas aqueles integrantes da carreira de Analista de Controle Externo do Tribunal de Contas do Estado de Sergipe. Manifestação pela procedência parcial do pedido." (STF, rel. min. Edson Fachin)

Vale notar, nesse particular, dispositivo determinante da aplicação subsidiária ao Sistema das normas regentes dos órgãos de controle interno — aos quais é expressamente vedada a invasão de competência do SNA/SUS, nos termos estabelecidos pelo artigo 197 da Lei Maior, em especial quanto aos aspectos técnico-científicos.

A regra traduz valiosa visão sistêmica do controle, segundo a qual não existe qualquer espécie de arranjo hierárquico ou de sobreposição entre os diversos atores, estando todas as instâncias (controle interno, externo e social) sujeitas tão somente a um arranjo de competências a ser regiamente observado, sob pena, inclusive, de comprometimento da lógica de freios e contrapesos e, em última análise, da própria legalidade e divisão de poderes (ou funções).

Duas críticas quanto à redação e lógica de atuação do SNA/SUS: o dever de acessibilidade dos planos e resultados de auditorias aos "órgãos de controle interno e externo e ao Ministério Público)": primeiramente, porque redundante, vez que o Ministério Público indubitavelmente integra a esfera do controle externo; segundo, e mais sério, porque deixa de fora as instâncias de controle social — como se a sociedade civil não tivesse interesse e legitimidade para o exercício da atividade de controle nesse particular.

A centralização da fiscalização no Tribunal de Contas da União consagrada no artigo 5º também ensejaria uma revisão, na medida em que pode conduzir a interpretação equivocada, como se fosse uma regra de exclusão das demais instâncias — em frontal ofensa à lógica do sistema constitucional de controle e promoção da integridade.

Até porque o capítulo a que expressamente faz referência o dispositivo é o relacionado ao "autocontrole", de modo que, ainda que se pretendesse defender o protagonismo de qualquer instância, seria mais coerente fazê-lo com relação ao controle interno.

O dispositivo evidencia a ainda insuficiente assimilação da noção sistêmica do controle, em que não existe relação de exclusão ou sobreposição, mas sim de coordenação, cooperação e retroalimentação.

A abordagem do controle interno o retrata como voltado à percepção e gerenciamento de riscos, devendo as auditorias ser orientadas, via de regra, pela análise custo-benefício, com a pertinente ressalva que não deve se arvorar na condição de gestor ou pretender estabelecer estratégias de atuação.

Evidente aí a coerência do dispositivo com a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), em que uma das preocupações fundamentais é justamente o estabelecimento de limites diferenciais entre as atividades de gestão e controle.

Do capítulo que trata da fiscalização pelo Legislativo consta obrigatoriedade disponibilização a essa esfera — e aos Tribunais de Contas —, pelos órgãos e entidades vinculadas aos demais poderes, de informações atinentes ao respectivo quadro de colaboradores, inclusive inativos, reformados e pensionistas, civis e militares.

Trata-se de dispositivo de fundamental importância, mormente em tempos de LGPD, e que a proteção a dados pessoais vem sendo invocada como a grande panaceia para negativas de pedidos de acesso e compartilhamento de informações.

Vale lembrar escândalo evidenciado por iniciativa da sociedade civil organizada que, por meio da organização Fiquem Sabendo, conseguiu levantar, a duras penas e após inúmeras idas e vindas, os dados atinentes às pensões pagas pelo Executivo federal — inclusive a militares —, após discussões que se estenderam por aproximadamente cinco anos entre TCU, CGU e Executivo federal (que aparentemente entendia que os militares constituiriam um Poder a parte, portanto não sujeitos à decisão do TCU que determinava a divulgação dos dados atinentes a todos os pensionistas do Executivo federal) [5].

Tal relato evidencia a necessidade e importância de abertura dos dados — observado o disposto na LGPD, evidentemente —, a toda a sociedade, de modo a efetivamente viabilizar o exercício do controle social — ponto em que uma vez mais o projeto poderia ter sido mais ousado.

Outros aspectos dignos de menção quanto aos Tribunais de Contas, a serem nacionalmente observados, e que se apresentam como requisitos mínimos de validade do processo fiscalizatório, inclusive: exigência de corpo técnico e estável; auditores concursados e com monopólio do planejamento, coordenação e execução de auditorias; limite de 10% para a criação — excepcional — de cargos comissionados nos Gabinetes dos TCs (exceção que muito possivelmente venha a se tornar regra).

Registre-se, por fim, a criação de duas novas hipóteses de improbidade administrativa, consistentes em: assediar moralmente auditores de controle externo com vistas a inibir sua independência no exercício da fiscalização financeira; e criar, direta ou indiretamente, restrição ao mandato classista, interferência ou intervenção do poder público na organização sindical no pleno funcionamento da associação de classe (conduta igualmente inquinada de abuso de autoridade).

Conclusões
As breves considerações desenvolvidas ao longo do presente — que não se pretendem exaustivas do tema —, evidenciam a conveniência e avanços constantes do PLP 79/22.

Ressalvadas algumas críticas e convites à reflexão, o projeto tem como talvez maior mérito a adoção de uma visão sistemática do controle, tanto com relação aos seus diversos atores e instâncias quanto no que tange às esferas federativas.

Nesse sentido, propicia a criação de um ambiente de maior segurança jurídica, previsibilidade e respeito ao princípio da não surpresa — mais uma vez em plena consonância com os parâmetros estabelecidos pela LINDB.

O clamor por um controle mais efetivo, eficaz, eficiente e parceiro, despido de sanhas persecutórias ou exacerbações ameaçadoras coroa a busca por uma sociedade mais justa, democrática e com serviços públicos de melhor qualidade — o que fatalmente redundará no incremento das condições de vida e desenvolvimento de seus cidadãos.

A plena compreensão das especificidades da função de controle é urgente e condicionante da evolução na luta de combate à corrupção e promoção da integridade pública. Daí a pertinência do projeto, cuja aprovação (ainda que após alguma eventual revisão, a ser muito provavelmente desencadeada após consultas/audiências públicas e debates com a sociedade) será de bom alvitre para todos aqueles que ainda se permitem acreditar em um país melhor.

 


[1] Art. 11. A organização da sociedade civil deverá divulgar na internet e em locais visíveis de suas sedes sociais e dos estabelecimentos em que exerça suas ações todas as parcerias celebradas com a administração pública. Parágrafo único. As informações de que tratam este artigo e o art. 10 deverão incluir, no mínimo: (…) VI – quando vinculados à execução do objeto e pagos com recursos da parceria, o valor total da remuneração da equipe de trabalho, as funções que seus integrantes desempenham e a remuneração prevista para o respectivo exercício.

[2] Art. 8º É dever dos órgãos e entidades públicas promover, independentemente de requerimentos, a divulgação em local de fácil acesso, no âmbito de suas competências, de informações de interesse coletivo ou geral por eles produzidas ou custodiadas. § 3º Os sítios de que trata o § 2º deverão, na forma de regulamento, atender, entre outros, aos seguintes requisitos: (…)II – possibilitar a gravação de relatórios em diversos formatos eletrônicos, inclusive abertos e não proprietários, tais como planilhas e texto, de modo a facilitar a análise das informações; III – possibilitar o acesso automatizado por sistemas externos em formatos abertos, estruturados e legíveis por máquina; IV – divulgar em detalhes os formatos utilizados para estruturação da informação;

[3] Art. 3º. São princípios e diretrizes do Governo Digital e da eficiência pública: XIV – a interoperabilidade de sistemas e a promoção de dados abertos; XXV – a adoção preferencial, no uso da internet e de suas aplicações, de tecnologias, de padrões e de formatos abertos e livres, conforme disposto no inciso V do caput do art. 24 e no art. 25 da Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014 (Marco Civil da Internet);

[4] Art. 29. Os dados disponibilizados pelos prestadores de serviços públicos, bem como qualquer informação de transparência ativa, são de livre utilização pela sociedade, observados os princípios dispostos no art. 6º da Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais). II – garantia de acesso irrestrito aos dados, os quais devem ser legíveis por máquina e estar disponíveis em formato aberto, respeitadas as Leis nºs 12.527, de 18 de novembro de 2011 (Lei de Acesso à Informação), e 13.709, de 14 de agosto de 2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais);

Autores

  • é doutora e mestre em Direito do Estado pela USP, especialista em Direito Público pela Escola da Paulista da Magistratura e em Autoridades Locais e o Estado pela ENA-Paris e ex-controladora geral do município de São Paulo.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!