Segunda Leitura

Direito e Justiça na Coreia do Sul

Autores

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

  • Tayuri Ishi Matsumi

    é advogada ambientalista e Mestre em Direito Econômico e Socioambiental na área de concentração Direito Socioambiental e Sustentabilidade pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná.

4 de dezembro de 2022, 8h00

A Coreia do Sul, ou simplesmente Korea, é um país situado na Ásia e que, por localizar-se em uma península, faz divisa apenas com um país, a Coreia do Norte, da qual se separou no ano de 1945. Tem uma população de 51,74 milhões de habitantes e um território de 100.210 km2, portanto, pouco maior do que o Estado de Pernambuco. Seul é a sua capital, que conta com quase 10 milhões de habitantes.

Spacca
A Coreia do Sul pertence ao G-20, que é o grupo das mais fortes economias do mundo, e à OCDE. É líder em inovação e tecnologia, sendo o terceiro país no mundo com mais patentes registradas, possuindo indústrias de relevância internacional (v.g., Samsung e Hyundai). Do ponto de vista religioso, o cristianismo e o budismo contam com a maioria de seguidores e na área cultural o cinema vem obtendo destaque surpreendente.

O sucesso econômico da Coreia do Sul recomenda o estudo do seu Direito e Justiça, uma vez que nenhum país avança se não tiver um bom sistema de Justiça. Não há como supor que um país atrasado ou com elevado nível de corrupção que esteja, por exemplo, na última posição no ranking da Transparência Internacional,[1] pois com certeza não terá sistema de Justiça que sirva de referência.

Comecemos pela base, ou seja, pelo ensino do Direito. Desde a aprovação, em 2007, do Act on the Establishment and Operation of Law Schools, adotou-se modelo de ensino semelhante ao dos Estados Unidos, com aulas dadas através do método socrático e  um ensino básico comum a todas as áreas (College), ao qual se segue a graduação, com a duração de três anos. Após esta formação, é possível realizar o National Bar Examination — NBE, equivalente ao nosso exame para a Ordem dos Advogados do Brasil, para só então, se aprovado, o candidato receber a habilitação para exercer a advocacia [2].

No ano de 2018, em 25 Escolas de Direito da Coreia do Sul, graduaram-se apenas 1.638 pessoas [3], o que mostra o rigor do ensino e a diferença de números a menor em comparação com o Brasil.  A Escola de Direito da Universidade Nacional de Seul (SNU, em inglês) é a mais prestigiada de todas.

O Poder Judiciário da Coreia do Sul tem seu ponto de partida no Capítulo V da Constituição, denominado "As Cortes". Todos os juízes têm assegurada sua independência, devendo obediência apenas à Constituição e às leis do país (art. 103). A Suprema Corte tem 14 ministros, com mandato de seis anos, podendo haver recondução (art. 105). Os demais juízes servem por 10 anos, nas mesmas circunstâncias. Há Cortes Militares, cujos julgamentos submetem-se à Corte Suprema.

A nomeação do Presidente da Suprema Corte é feita através de indicação do Presidente da República e aprovação da Assembleia Nacional. Os demais membros da Suprema Corte são indicados pelo Presidente do Tribunal ao Presidente da República que, se de acordo, submeterá o nome ao Legislativo. Os juízes de primeira e segunda instância são indicados pelo Presidente do Supremo, com a concordância do Conselho de Ministros da Corte.

A Constituição tem poucos artigos sobre a matéria, cabendo à Lei de Organização dos Tribunais regular todas as atividades do Judiciário [4]. Na pirâmide judiciária há Tribunais Distritais (1ª. instância) com 870 juízes, alguns especializados (v.g., Família e Patentes), 6 Tribunais Superiores (High Courts) equivalentes aos nossos TJs, TRFs, TRTs e TJMs. Acima de todos, a Suprema Corte.

A Suprema Corte oferece em seu site a orientação de sua jurisprudência, dividindo os precedentes dos últimos anos por matéria e resumindo-os para facilitar a compreensão [5].

O Capítulo VI da Constituição prevê uma Corte Constitucional, com 9 ministros, cabendo-lhes julgar questões constitucionais e políticas. O provimento dos cargos, o status e o tempo de duração do mandato são semelhantes ao da Suprema Corte. Se em um julgamento, em qualquer instância do Poder Judiciário, surgir dúvida sobre a constitucionalidade de uma lei, o juiz ordenará a remessa do processo à Corte Constitucional e, uma vez julgada a alegação, prosseguirá na jurisdição, seguindo o que nela foi decidido.

As leis sul-coreanas são conhecidas pelo assunto de que tratam, ficando a numeração discretamente colocada ao lado direito do preâmbulo. Por exemplo, a LEI DE PROMOÇÃO DE RECICLAGEM DE RESÍDUOS DE CONSTRUÇÃO, tem à direita do título, escrito em pequenas letras: Act Nº. 16317, Apr. 16, 2019 [6].

O Ministério Público sul-coreano não tem previsão na Constituição, está subordinado ao Ministério da Justiça e as atribuições, direitos e deveres de seus membros estão previstos na Lei do Ministério Público [7]. O ingresso na Promotoria dá-se por habilitação, examinada por um Comitê de Avaliação que recomenda os candidatos ao procurador-geral, o qual pede a nomeação ao ministro da Justiça. A cada sete anos os promotores são avaliados por uma comissão composta por nove pessoas oriundas de órgãos diversos (e.g., um professor, um advogado). Os promotores podem aposentar-se após 20 ou mais anos de serviço no órgão, sendo que aos 65 anos a aposentadoria é compulsória (artigos 40 e 41). Os promotores investigam os casos de crimes complexos, como os praticados contra a ordem econômica, além de supervisionar a ação da polícia e das agências. Não há plea bargaining no sistema de Justiça.

A advocacia no referido país é exercida por aproximadamente 20 mil advogados. Na capital, Seul, os advogados são obrigados a dedicar 20 horas por ano ao atendimento de pessoas economicamente carentes. Além disto, "desde 1963, a entidade de classe da advocacia em Seul passou a oferecer consultoria gratuita para coreanos e trabalhadores estrangeiros residentes no país" [8]. Segundo reportagem de abril deste ano, uma advogada associada [9] em um grande escritório ganha cerca de R$ 4.900,25 por mês [10].

Peculiaridades da legislação:
O Código Penal [11] admite a responsabilidade penal a partir dos 14 anos e tem previsão de pena de morte (art. 41, I), muito embora ela não seja aplicada há 25 anos. O fato de o país encontrar-se em permanente estado de alerta contra a Coreia do Norte, faz com que haja vários tipos penais relacionados com a segurança do estado. Por exemplo, praticar espionagem a favor de um país inimigo é apenado com morte ou prisão perpétua (art. 98). A obstrução de suprimento de eletricidade ou gás tem pena de prisão de 1 a 10 anos (art. 173).

O Código de Processo Penal [12] mostra-nos artigos totalmente diferentes do nosso sistema de Justiça. Por exemplo, se qualquer das partes requerer, o Tribunal deverá permitir gravação de áudios ou vídeos (art. 56, II (1). A exibição de filmes e fotos em uma tela durante o julgamento é medida muito utilizada naquele país e que não é explorada, como meio de prova, no Brasil. Se o réu foi considerado inocente, o Estado deve pagar-lhe todas as despesas feitas com o processo (art. 194-2). A testemunha depõe sob juramento, mas pode recusar-se caso tenha motivo relevante. Se não tiver motivo que justifique a recusa, ser-lhe-á aplicada multa (art. 161). A lei processual penal prevê o especialista-testemunha, ou seja, aquele que pode dar um parecer e/ou defender sua posição em audiência (art. 171). Os julgamentos são feitos adotando-se fortemente o princípio da oralidade (art. 275-3).

Em 2017 entrou em vigor a "Lei de participação dos cidadãos em julgamentos criminais" [13], a qual tem por finalidade permitir aos cidadãos que exerçam o seu poder de participação nos julgamentos criminais. Dita lei prevê um júri com nove jurados (art. 12 e seguintes). Ocorre que a decisão dos jurados, que deve ser unânime como nos EUA, não vincula o juiz togado, sendo mera peça opinativa (art. 46, 5).

Como se vê, muito ainda há a ser estudado no sistema de Justiça sul-coreano (v.g., o sistema processual civil), o qual, em que pesem as diferenças culturais entre o nosso país e aquela milenar nação oriental, pode servir-nos como forma de aprimorar o nosso sistema. Aproveitemos, assim, a Coreia do Sul, pois ela muito tem a nos oferecer.

 


[1] Transparência Internacional Brasil. Índice da Percepção da Corrupção 2021. No último lugar está o Sudão do Sul. Disponível em: https://transparenciainternacional.org.br/ipc/. Acesso em: 2/12/2022.

[2] KIM, Namhee. Law Schools in South Korea: Past, Present, and Future. Waseda Bulletin of Comparative Law, vol. 39, jan. 2021. p. 35-43.

[3] Statista. Number of law school graduates in South Korea in 2018, by university. Disponível em: https://www.statista.com/statistics/829892/south-korea-graduate-number-by-law-school/. Acesso em: 30/11/2022.

[4] KLRI e KLT,  Court Organization Act. Disponível em: https://elaw.klri.re.kr/eng_service/lawView.do?hseq=52135&lang=ENG. Acesso em: 2/12/2022.

[5] Supreme Court of Korea. Decisions. Disponível em: https://eng.scourt.go.kr/eng/supreme/decisions/guide.jsp. Acesso em: 2/12/2022.

[6] KRLI e KLT. Construction waste recycling promotion Act. Disponível em: https://elaw.klri.re.kr/eng_service/lawView.do?hseq=50851&lang=ENG. Acesso em 2/12/2022.

[7] KRLI e KLT. Prosecutors´ Office Act. Disponível em: https://elaw.klri.re.kr/eng_service/lawView.do?hseq=55253&lang=ENG. Acesso em 2/12/2022.

[8] CONJUR. Advogados de Seul têm de trabalhar 20 horas pro bono ao ano. Revista eletrônica Consultor Jurídico, 10/2/2013. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2013-fev-10/seul-advogados-cumprir-20-horas-anuais-consultoria-pro-bono. Acesso em 2/12/2022.

[9] Advogado que não é empregado e nem sócio, ganhando proporcionalmente ao serviços que prestam.

[10] Vivendobauru.com.br. Quanto ganha uma advogada na Coreia do Sul? Disponível em: https://www.vivendobauru.com.br/quanto-ganha-uma-advogada-na-coreia-do-sul/. Acesso em 2/12/2022.

[11] Refworld.. Criminal Act. Disponível em: https://www.refworld.org/docid/3f49e3ed4.html. Acesso em 2/12/2022.

[12] KRLI e KLT. Criminal Procedure Act. Disponível em: https://elaw.klri.re.kr/eng_service/lawView.do?lang=ENG&hseq=22535. Acesso em 2/12/2022.

[13] KLRI e KLT. ACT ON CITIZEN PARTICIPATION IN CRIMINAL TRIALS. Disponível em: https://elaw.klri.re.kr/eng_service/lawView.do?hseq=46745&lang=ENG. Acesso em 2/12/2022.

Autores

  • é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná; pós-doutor pela FSP/USP, mestre e doutor em Direito pela UFPR; desembargador Federal aposentado, ex-Presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª. Região. Foi Secretário Nacional de Justiça, Promotor de Justiça em SP e PR, presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

  • é advogada ambientalista e Mestre em Direito Econômico e Socioambiental, na área de concentração Direito Socioambiental e Sustentabilidade, pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná.

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