Opinião

Impacto da ausência de custódia de provas na fé pública dos agentes de Estado

Autor

  • Lorenzo Parodi

    é perito judicial e assistente técnico em forense digital documentologia e fraudes com atuação em processos de grande repercussão sobretudo na esfera penal autor dos livros "Manual das Fraudes" e "Falsificação de Documentos em Processos Eletrônicos" pesquisador escritor (articulista) consultor professor e palestrante.

3 de dezembro de 2022, 13h22

O tema da cadeia de custódia ainda é espinhoso, não em razão da sua recente incorporação explícita ao Código de Processo Penal, mas sobretudo em razão da relativização da sua não observância, sobretudo por decisões judiciais que ainda insistem na perspectiva da existência ou não de um tal prejuízo, ignorando que o tema diz respeito a direitos e garantias fundamentais.

A despeito das múltiplas questões palpitantes sobre o assunto, um ponto merece a atenção, que é justamente avaliar a correlação entre a fé pública dos atos praticados pelos agentes do estado, sobretudo aqueles encarregados da persecução penal, e a preservação da cadeia de custódia. O objetivo, aqui, é lançar um olhar diante desta problemática, mesmo que não exaustivo.

A fé pública do agente público funda-se na presunção de legitimidade e na presunção de veracidade dos atos por ele praticados. Por sua vez a presunção de legitimidade e a presunção de veracidade decorrem dos princípios constitucionais que regem a administração pública (o tal do LIMPE), que estão previstos no artigo 37 da CF: "A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência".

Em especial as presunções de legitimidade e veracidade estão relacionadas aos princípios da legalidade, moralidade e, em alguma medida, também ao princípio da impessoalidade.

Isso significa dizer, a grosso modo, que os atos realizados pelo agente público são (ou deveriam ser) sempre: 1) conformes à Lei e 2) verdadeiros os fatos neles alegados.

Importante observar que tanto a presunção de legitimidade quanto a presunção de veracidade são "Juris Tantum", ou seja, não absolutas, mas relativas ou "até prova em contrário".

A fé pública, então, pode ser presumida até prova em contrário em relação à legalidade dos atos realizados pelo agente e também quanto à moralidade de tais atos, senão de todos os demais princípios regentes a administração pública. A moralidade, por sua vez, está relacionada à adoção dos mais estritos princípios de boa fé e probidade, afastando, entre outros, o conceito que "os fins justificam os meios".

Progredindo no raciocínio, é importante destacar alguns pontos.

O primeiro é que a ignorância da Lei é inescusável, conforme claramente estabelecido pelo artigo 21 CP e também pelo artigo 3º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb 4.657, de 4/9/1942).

Tal afirmativa é ainda mais válida quando diz respeito à atuação de agentes públicos envolvidos com a persecução penal, que, pela natureza de sua função, cargo e capacitação, não se pode crer que desconheçam as leis aplicáveis aos diversos atos que praticam.

Parece-me evidente que, neste caso, não seja cabível sequer alegar que, de forma geral, o eventual descumprimento de preceito legal, inerente ao exercício de suas funções, tenha ocorrido "sem a consciência da ilicitude do fato" (artigo 21, parágrafo único, CP), situação que poderia levar à redução da pena, mas, ainda assim, não escusa a ilegalidade.

O segundo é que, no caso de descumprimento, por parte de agentes públicos envolvidos com a persecução penal, dos procedimentos de custódia das provas previstos nos artigos 158-A a 158-F CPP (combinados com o artigo 3 CPP), deve se lembrar que tais artigos são a evolução de uma portaria da Senasp (Secretaria de Segurança Pública, órgão do Ministério da Justiça) em vigor há quase dez anos, desde 2014 (Portaria nº 82/2014), e que os próprios mencionados artigos do CPP foram introduzidos pela chamada Lei Anticrime (Lei nº 13.964/19), que foi promovida pelo então ministro da Justiça Sergio Moro e teve enorme repercussão na mídia em geral e, mais ainda e especialmente, no meio jurídico. Ou seja, se trata de questões conhecidas até por pessoas fora do meio jurídico, que é impossível imaginar que possam ser desconhecidas por quem tem como função e cargo aplicar a Lei.

Por quanto acima, o eventual descumprimento dos procedimentos de custódia, somente pode ser interpretado como consciente e proposital o que implica uma frontal afronta ao princípio da legalidade e, por ser proposital, também ao princípio da moralidade e, possivelmente, até da impessoalidade, revestindo de patente má fé a atuação do agente público.

Fica evidente que, neste caso, encontra-se bem caracterizado um claro exemplo daquela "prova contrária" necessária para afastar a presunção de legitimidade e a presunção de veracidade em relação não apenas aos atos praticados, mas também a todos os demais deles resultantes ou correlatos, com especial atenção às declarações do agente (ou dos agentes) envolvido (s).

O que se defende, em resumo, é que o agente público, quando age ou deixa de agir, em desacordo com os procedimentos legais sobre a cadeia de custódia, afeta justamente o que dá suporte à validade do seus atos e declarações, ao contrariar de forma frontal os princípios constitucionais que os regem.

Por quanto acima, aquele agente público, nas questões relativas ao caso em foco, não poderá mais ser considerado portador de presunção de legitimidade nem de presunção de veracidade, ou seja, não ostentará mais fé pública em relação a suas declarações e atos, pois prejudicada por seu doloso descumprimento de preceito legais.

A situação é de tamanha gravidade que não somente o réu será prejudicado (por não poder se defender em relação à uma prova contaminada) mas até o próprio juízo não poderá ter qualquer certeza quanto a higidez, integridade e autenticidade das provas apresentadas pela acusação, não custodiadas de acordo com a lei.

Por óbvio, ainda assim, o agente público poderá ser ouvido como testemunha, mas com o afastamento da presunção de veracidade de suas declarações e, possivelmente, até na condição de testemunha “suspeita”, em função da patente má fé demonstrada pelo consciente e proposital descumprimento de explícitos preceitos legais.

Aqui vale um paralelo com dados revelados em recente decisão da 5ª turma do STJ (AREsp nº 1.936.393  RJ), onde o relator, ministro Ribeiro Dantas, apresentou um estudo publicado pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP, 2011), segundo o qual 74% das prisões pelo delito de tráfico de drogas no município de São Paulo/SP se fundamentam somente nas palavras dos policiais responsáveis pela diligência, evidentemente com base na fé pública destes.

Seria interessante complementar tal estudo com dados acerca da efetiva adoção, por parte dos mesmos policiais, dos procedimentos de custódia previstos nos já mencionados artigos do CPP, em relação às apreensões de vestígios e provas realizadas na ocasião de tais diligências, para verificar a aderência de tais agentes públicos aos princípios da legalidade e moralidade.

A fé pública é uma prerrogativa muito importante para a eficiente condução dos atos de interesse público assim como um alicerce de estabilização do sistema de justiça criminal, mas não pode continuar sendo uma máxima que permita supressão de regras e determinações legais, sobretudo quanto aos aspectos processuais que não são sugestivos, mas imperativos para a concretização da perspectiva de correta reconstrução dos fatos por meio do processo penal.

O pressuposto inalienável da fé pública deve ser a irretocável boa fé e a observância e aplicação rigorosa dos preceitos legais, todos eles, por parte do agente público. Diversamente a fé pública passaria a ser algo próximo do fideísmo, quando não da cegueira seletiva.

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