Opinião

Ausência de democracia na Rússia, China e nos Estados fundamentalistas

Autor

  • Reis Friede

    é desembargador federal diretor-geral da Escola de Magistratura Federal da 2ª Região (biênio 2023/25) ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21) mestre e doutor em Direito e professor adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio).

1 de dezembro de 2022, 19h22

Muitos estudiosos todavia não se deram conta de que há uma diferença marcante (e, consequentemente, muito característica e emblemática) entre a alardeada ausência de democracia (no contexto da visão ideológica do liberalismo ocidental) em países como a Rússia e a China em comparação com o (supostamente) idêntico fenômeno verificado nos Estados de inspiração fundamentalista religiosa, notadamente de natureza islâmica radical.

A distinção, nesse sentido, se apresenta, a toda evidência, de forma cristalina, ainda que a eventual miopia intelectual de muitos pseudoestudiosos os impeça de constatar as indeléveis marcas que nos permitem respirar algum oxigênio de esperança, mesmo em um futuro indeterminado, não somente em função do (inafastável) processo de globalização em que se encontram inseridos esses países (Rússia e China, com as suas respectivas aberturas de mercado e maior intercâmbio cultural) em detrimento das culturas fechadas (e de origem teocrática) que caracterizam os Estados (fundamentalistas radicais) que se imaginam em permanente conflito (choque de civilizações) com a concepção democrática ocidental.

"A economia chinesa cresceu tanto que é fácil esquecer como a metamorfose do país em uma potência era improvável, o quanto sua ascensão foi improvisada e veio do desespero. A proposta que saiu das montanhas, logo adotada como política de governo, foi um primeiro passo crucial. (…)

A China agora lidera o mundo em índices como número de proprietários de casas, usuários de internet, universitários e, dizem, bilionários (ainda que estes não ostentem o controle de suas fortunas). A pobreza extrema caiu para menos de 1% da população. Um lugar estagnado e empobrecido se tornou o maior rival dos Estados Unidos desde o fim da União Soviética. Agora, um desafio histórico tem lugar. O presidente XI JINPING promove uma agenda externa mais assertiva, enquanto endurece em casa. Com o anterior governo TRUMP (2017-21) tendo lançado uma guerra comercial contra a China, em Pequim, a questão não é mais como alcançar o Ocidente, mas como avançar, em uma era de hostilidade dos EUA. (…)" (PHILIP P. PAN; A Metamorfose da China em Potência Global, O Globo, 20/11/2018)

Apesar do histórico autoritarismo atávico chinês (a que alguns preferem nominar como um totalitarismo singular, fundamentado em um sistema econômico socialista de mercado), a verdade é que os Estados Unidos apostaram na transformação do regime político irradiado pelos líderes de Pequim, imaginando não existir uma alternativa viável (e sustentável a longo prazo) ao capitalismo liberal (ou, em melhor acepção, neoliberal).

"O padrão é recorrente: um poder em ascensão desafia o estabelecido. Uma complicação também é familiar: por décadas, os EUA encorajaram a ascensão da China, construindo a parceria econômica mais importante do mundo. No período, os EUA presumiram que a China um dia cederia às supostas regras de modernização e que a prosperidade alimentaria pedidos por liberdade e democratizaria o país. Ou então que a economia naufragaria, sob o peso da burocracia. Mas nada disso aconteceu.

Os líderes chineses apenas abraçaram aparentemente o capitalismo, mas continuaram a trilhar um marxismo com características chinesas. Recorreram à repressão para manter o poder, mas sem sufocar o empreendedorismo. E tiveram mais de 40 anos de crescimento contínuo, com políticas pouco ortodoxas. (…)" (PHILIP P. PAN; A Metamorfose da China em Potência Global, O Globo, 20/11/2018)

A China, entretanto, demonstrou — pelo menos até o presente momento —, que Washington se equivocou, apresentando ao mundo um modelo político e econômico sustentável que passou a ser conhecido como "socialismo com características chinesas".

"Em outubro de 2018 a China celebrou 69 anos de governo comunista, superando a União Soviética. A economia do país aparentemente caminha para virar a maior do mundo (…). Os comunistas chineses estudaram com afinco erros soviéticos. Concluíram que abraçariam “reformas” para sobreviver, mas que isso não incluiria a democratização. (…)

O longo boom econômico do país seguiu o excesso autocrático da Revolução Cultural, que dizimou o aparato do partido. O sucessor de MAO, DENG XIAIPING, guiou o país em uma direção radicalmente mais aberta. Mandou jovens autoridades chinesas para o Ocidente para estudar como as economias modernas funcionavam. Investiu em educação, expandiu o acesso a escolas e universidades e quase eliminou o analfabetismo. A China agora produz mais graduados em ciência e engenharia por ano do que os Estados Unidos, Japão, Coreia do Sul e Taiwan juntos." (PHILIP P. PAN; A Metamorfose da China em Potência Global, O Globo, 20/11/2018)

Em síntese, a China realizou o que a antiga (e extinta) União Soviética não logrou fazer: desafiar o sistema político e econômico ocidental, liderado pelos EUA.

"Outra explicação para as transformações na China está em mudanças burocráticas. Analistas às vezes dizem que a China abraçou a reforma econômica e resistiu à política, mas o partido fez mudanças após a morte de MAO que não foram profundas a ponto de gerarem eleições livres, mas ainda assim significativas. Introduziu limites de mandato e idades de aposentadoria compulsória, o que facilitou a expulsão de funcionários incompetentes. E reformulou os boletins usados para avaliar os líderes locais, concentrando-se quase exclusivamente em metas econômicas concretas. Os ajustes tiveram impacto tremendo, injetando uma dose de prestação de contas e de competição no Sistema Político. Segundo YUEN YUEN ANG, cientista política da Universidade de Michigan, 'a China criou um híbrido único, uma autocracia com características pseudodemocráticas'." (PHILIP P. PAN; A Metamorfose da China em Potência Global, O Globo, 20/11/2018)

Porém, ainda assim, o fato é que a estrutura concepcional de constituição do Estado chinês (ou russo), inobstante o regime político autoritário (ou mesmo totalitário), é idêntica à dos países ocidentais democráticos, com ênfase nos EUA, em que a legitimação do poder se baseia na vontade popular (e não nos desígnios de Deus, como nas teocracias islâmicas).

Por essa sorte de considerações, não se apresenta, no campo pragmático, completamente absurda (como apregoam os "menos instruídos" especialistas de plantão) uma futura (mesmo que ainda distante) estruturação de uma aliança (de conveniência política) entre EUA, Rússia e China (uma espécie de G3) no contexto de uma (programada e planejada) repartição de responsabilidades objetivando, em última instância, a consolidação efetiva (e necessária) de uma governança global, apoiada, do ponto de vista norte-americano, também por uma renovada concepção TRILATERAL (relativa à antiga linha de contenção contra o comunismo, construída no escopo da ultrapassada era da Guerra Fria — 1947/91, que contemplava a antiga Europa Ocidental, o Japão e os EUA).

A eventual (e momentânea) incapacidade perceptiva dos principais protagonistas mundiais, não obstante ostentarem visões disruptivas (no caso chinês) ou revisionistas (no caso russo) em relação à Nova Ordem Internacional, inaugurada em 1991, sob a liderança de Washington, de reconhecer essa nova e impositiva realidade não só poderá comprometer as suas futuras lideranças (ainda que em uma tradução genérica), atrapalhando (sobremaneira) a condução da humanidade no caminho da paz e da prosperidade (mesmo que essas visões estejam ainda distantes umas das outras e diferentes da democracia liberal estadunidense), mas, acima de tudo, prejudicar uma renovada discussão sobre o acesso às amplas (e almejadas) liberdades, conforme almejado no pós-Segunda Guerra Mundial, por meio (dentre outras importantes iniciativas) da proclamação do mais importante documento-compromisso da ONU, qual seja: a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948.

"A crença de que os Estados Unidos não podem agir mal em nome dos valores da liberdade e da democracia é evidentemente tão errônea no exterior como é nos EUA. Mas também é errônea a crença, muito prevalecente nos círculos intelectuais norte-americanos nos anos 1970, de que os Estados Unidos não poderiam nunca agir bem em nome desses mesmos valores. É muito mais provável que o poder dos EUA seja empregado em nome de tais valores do que o poder de qualquer outra nação importante." (SAMUEL P. HUNTINGTON)

Nesse sentido, resta conclusivo afirmar que — apesar de estarmos diante de uma Segunda Guerra Fria, através de uma acirrada competição entre os EUA e a China e também envolvendo a Rússia e a Índia (em uma nova realidade tetrapolar que talvez possa ainda evoluir para um mundo pentapolar, a incluir uma União Europeia "definitivamente resolvida") —, mais cedo ou mais tarde as distintas concepções democráticas destes países (valendo lembrar que nenhum destes autoritarismos atribui-se uma condição que não seja "democrática", incluindo até mesmo — e por absurdo —, a própria Coreia do Norte, que se autodenomina "República Popular Democrática da Coreia") acabará irremediavelmente em choque com as autocracias islâmicas que se estruturam de modo completamente diverso, sendo, portanto, improvável (e para alguns até mesmo impossível) qualquer ensejo ou convergência política que as conduza a uma orientação democrática (de qualquer espécie) e, muito menos, liberal ou neoliberal.

Autores

  • é professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), professor honoris causa da Escola de Comando e Estado-Maior da Aeronáutica (Ecemar), professor emérito da Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais do Exército (EsAO), conferencista especial da Escola Superior de Guerra (ESG) e membro da Sociedade Brasileira de Direito Aeroespacial (SBDA), da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED), do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil (IGHMB) e da Academia Brasileira de Defesa (ABD).

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