Opinião

Tributação de criptoativos: estabelecimento para fins de ICMS e do ISS

Autores

  • Daniel de Paiva Gomes

    é doutorando (PUC) e mestre (FGV Direito-SP) em Direito Tributário msc. candidate em blockchain e digital currency pela University of Nicosia especialista em Direito Tributário nacional (PUC) e internacional (IBDT) professor de cursos de extensão e pós-graduação lato sensu pesquisador do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet e advogado em São Paulo.

  • Eduardo de Paiva Gomes

    é doutorando (PUC) e mestre (FGV Direito-SP) em Direito Tributário MSc candidate em blockchain e digital currency pela University of Nicosia especialista em Direito Tributário nacional (PUC) conselheiro do CMT (4ª Câmara Julgadora) juiz suplente do TIT professor de cursos de extensão e pós-graduação lato sensu pesquisador do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet e advogado em São Paulo.

1 de dezembro de 2022, 18h17

No contexto do ecossistema Web3, os debates tributários costumam estar focados na qualificação das operações para fins de delimitação dos tributos eventualmente incidentes. Sob a perspectiva da conhecida regra-matriz de incidência tributária, a atenção está precipuamente direcionada ao dito critério material, de modo a verificar se determinada operação preenche os elementos necessários para que possa ser qualificada como "auferimento de renda ou receita", "circulação de mercadoria", "prestação de serviços", etc.

Tão importante quanto o critério material, todavia, é o critério espacial. É necessário voltar os olhos ao critério espacial, enquanto elemento da regra-matriz de incidência tributária responsável pela identificação do local em que se considera ocorrida a operação e, consequentemente, a Jurisdição competente para exigir o tributo.

O presente artigo tem como objetivo levantar os principais pontos que devem ser levados em consideração sobre o tema sob a perspectiva da tributação nacional no que tange ao ICMS e ao ISS.

E, para tanto, partiremos de algumas premissas essenciais para a correta investigação tributária do fenômeno.

Em primeiro lugar, sob a perspectiva dos "fenômenos Web3", muito se fala sobre a descentralização supostamente inerente ao ecossistema Web3, o que impediria a identificação de potenciais sujeitos passivos tributários. No entanto, para além do fato de que é possível romper com o pseudoanonimato de diversos protocolos, forçoso reconhecer que, no seu atual estágio de desenvolvimento, as entidades e empresas atuantes nesse ecossistema ainda possuem feições centralizadas [1], principalmente quando se está diante de criptoativos com emissor identificado [2].

É por isso que, em se tratando de criptoativos com emissor identificado, a depender do caso concreto, é possível delimitar o local em que tais entidades se encontram estabelecidas. Da mesma forma, a despeito de muito se falar em metaverso, fato é que ditos "metaversos", atualmente, podem ser entendidos, sob a perspectiva jurídica, como plataformas digitais multifacetadas [3].

Em segundo lugar, o presente artigo parte da premissa de que o ICMS pode alcançar a circulação de mercadorias intangíveis, em linha com a ratio decidendi que se extrai da atual jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

Fixadas tais premissas, enfrentaremos o questionamento central deste artigo: o ordenamento jurídico brasileiro possui fundamentos normativos que permitam identificar o local em que se considera ocorrida uma "prestação de serviço" ou "circulação de mercadoria" no ecossistema Web3 ou no "metaverso"?

Para responder a esse questionamento, acreditamos ser necessária a análise: 1) da Lei Complementar 87/1996; 2) da Lei Complementar 116/2003; 3) e do Código Civil.

No que tange ao ICMS, vale analisar o artigo 11, I, "a", da Lei Complementar 87/1996, o qual estabelece que, tratando-se de mercadoria ou bem, o local da operação ou da prestação é o do estabelecimento onde se encontre a mercadoria ou bem.

A nosso ver, a expressão "onde se encontre a mercadoria ou bem" pode ser entendida como "onde se encontre o estabelecimento proprietário jurídico da mercadoria". Isso porque, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem se firmado no sentido de que a localização do proprietário jurídico da mercadoria é o elemento determinante para definição do Estado com competência tributária, sendo irrelevante a localização física das mercadorias [4] [5].

E, quanto ao conceito de estabelecimento para fins de ICMS, o §3º do artigo 11 da LC 87/1996 determina que estabelecimento é o "local, privado ou público, edificado ou não, próprio ou de terceiro, onde pessoas físicas ou jurídicas exerçam suas atividades em caráter temporário ou permanente, bem como onde se encontrem armazenadas mercadorias".

O Inciso I do indigitado parágrafo ainda prevê que "na impossibilidade de determinação do estabelecimento, considera-se como tal o local em que tenha sido efetuada a operação ou prestação, encontrada a mercadoria ou constatada a prestação".

Veja-se que, para conceituar estabelecimento para fins de ICMS, a legislação dá importância ao "local" onde: 1) "as pessoas físicas ou jurídicas exerçam suas atividades"; 2) onde se encontram as mercadorias sob a perspectiva jurídica, à luz da jurisprudência; e 3) ao local em que efetuada a operação, sendo irrelevante se tal local é edificado ou não.

Esta orientação reforça a ideia de que o estabelecimento engloba capital e trabalho, mas não depende, necessariamente, de um espaço físico, o que é confirmado pelo artigo 1.142 do Código Civil.

Nesse contexto, poderíamos enxergar o "estabelecimento virtual" como algo autônomo ou, alternativamente, como um "local" — nos termos da própria legislação — que seja a extensão de um estabelecimento físico. Neste último caso, portanto, um elemento intangível que compõe o próprio estabelecimento.

Em relação ao ISS, o artigo 3º da Lei Complementar 116/2003 estabelece que, via de regra, o serviço considera-se prestado, e o imposto, devido, no local do estabelecimento prestador ou, na falta do estabelecimento, no local do domicílio do prestador, exceto nas hipóteses especificamente listadas nos incisos I a XXV do referido dispositivo.

Por sua vez, o artigo 4º da LC 116/2003 traz o conceito de estabelecimento, nos seguintes termos: "o local onde o contribuinte desenvolva a atividade de prestar serviços, de modo permanente ou temporário, e que configure unidade econômica ou profissional, sendo irrelevantes para caracterizá-lo as denominações de sede, filial, agência, posto de atendimento, sucursal, escritório de representação ou contato ou quaisquer outras que venham a ser utilizadas".

Mais uma vez, o conceito de estabelecimento está vinculado ao "local" em que é "desenvolvida a atividade".

A detida análise dos dispositivos mencionados permite identificar o elemento de conexão eleito pela legislação do ICMS e do ISS para delimitação do critério espacial dos referidos impostos: o estabelecimento, enquanto "local" em que é desenvolvida a atividade.

Em relação ao conceito de estabelecimento para fins de ICMS e ISS, há quem diga que, por se tratar de tributos sobre o consumo, estar-se-ia diante de conceito que pressupõe, obrigatoriamente, feição tangível, daí por que não poderia abarcar operações ocorridas em um ambiente precipuamente intangível tal como o digital.

No entanto, parece-nos que esse entendimento ganha novos contornos com o advento das Leis 14.195/2021 e 14.382/2022, que introduziram alterações relevantes no artigo 1.142 do Código Civil.

O caput do artigo 1.142 do Código Civil determina que se considera estabelecimento todo complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária.

O §1º do referido dispositivo, por sua vez, estabelece que "o estabelecimento não se confunde com o local onde se exerce a atividade empresarial, que poderá ser físico ou virtual".

A interpretação do §1º do artigo 1.142 do Código Civil permite chegar a duas conclusões.

Em primeiro lugar, o conceito de "estabelecimento para fins de direito privado" é diferente daquele adotado para fins de ICMS e ISS. Isso porque, no que tange aos referidos impostos, o estabelecimento é, justamente, o local onde se exerce a atividade, ao passo que, para o direito privado, estabelecimento é o complexo de bens organizado para o desenvolvimento da atividade e que "não se confunde com o local".

Em segundo lugar, ao se referir ao "local onde se exerce a atividade", no §1º do artigo 1.142 do Código Civil, a legislação privada admite a possibilidade de que o local de exercício da atividade empresarial (e que é estabelecimento para fins de ICMS e ISS) seja virtual/digital.

A partir do momento que o local é um elemento componente da definição de estabelecimento para fins de ICMS e ISS, a aplicação do artigo 1.142 do Código Civil levaria à conclusão de que existe a noção — por mais curiosa que seja — de um "local virtual" (que compõe, para fins fiscais, o estabelecimento), o qual, obviamente, não pode ser geolocalizado e, portanto, não poderá fornecer um "endereço de identificação" para qualquer pessoa jurídica. Ao invés disso, o "local virtual", é um intangível que fará parte: 1) da noção cível de estabelecimento enquanto complexo organizado de bens e trabalho; 2) da noção tributária de estabelecimento enquanto local onde se exercem as materialidades dos tributos (ICMS e ISS).

Nesse contexto e justamente para equacionar a inexistência geolocalizável de um "local virtual", o §2º do artigo 1.142 do Código Civil estabelece que, quando o local onde se exerce a atividade empresarial for virtual, o endereço informado para fins de registro poderá ser, conforme o caso, o endereço do empresário individual ou o de um dos sócios da sociedade empresária.

Interpretando-se conjuntamente os referidos dispositivos à luz do artigo 110 do CTN, podemos concluir que o conceito de "estabelecimento para fins de ICMS e ISS", enquanto "local onde se exerce a atividade", pode abranger "locais virtuais".

Nesse contexto, tome-se como exemplo uma operação envolvendo um NFT (non-fungible token) adquirido em um metaverso enquanto plataforma, algo que, no contexto atual, seria uma marketplace com uma experiência lúdica mais desenvolvida e interativa. Neste caso, este NFT pode, em tese, se referir, a depender do seu conteúdo, a uma: 1) operação de circulação de mercadoria e, portanto, submetida à incidência do ICMS; ou 2) prestação de serviço tributável pelo ISS.

Dessa forma, o fato de sua aquisição (do NFT) ter se dado "no metaverso" não infirmaria a incidência. O "metaverso" seria o "local virtual" por meio do qual ocorreu a aquisição da mercadoria ou do serviço envelopado no NFT.

Logo, partindo da premissa de que estabelecimento é o local físico ou digital onde se exerce a atividade (aplicação do §2º do artigo 1.142 do Código Civil ao termo "local onde se exerce a atividade" constante das LCs 87/1996 e 116/2003), o ICMS e o ISS serão devidos ao Ente Federativo em que localizados o empresário individual ou o de um dos sócios da sociedade empresária, quando informados os respectivos endereços para fins de registro, conforme o caso.

Para fins de ICMS, é relevante identificar a localização do proprietário jurídico da mercadoria (física ou digital) a que se refere o NFT, pois este será qualificado como o local onde se encontra juridicamente a propriedade da mercadoria transacionada, para delimitação do critério espacial do imposto.

E, em relação ao ISS, quando não for possível identificar o estabelecimento, o ISS será devido no domicílio do prestador, ressalvando-se, contudo, as hipóteses especificamente listadas nos incisos I a XXV do artigo 3º da LC 116/2003, que demandam análise casuística, a depender do tipo de serviço a que se refere o NFT.

A análise da legislação permite concluir que existem argumentos hábeis a sustentar que a delimitação do local da ocorrência de operações ocorridas no ecossistema Web3 no contexto do ICMS e do ISS já seria possível.

A legislação, em verdade, acaba por confirmar a premissa de que a "realidade" é composta pelo mundo tangível e intangível, de modo que a ausência de fisicalidade não é elemento para afastar, de imediato, a produção de efeitos tributários.

Obviamente, esta discussão ainda deve ser travada à luz da necessidade de criação de novas regras, voltadas especificamente para operações "puramente digitais". Assim, questiona-se: há necessidade de alteração da Lei Kandir e da LC 116, a fim de que referidos diplomas criem regras específicas (similares, por exemplo, àquelas contidas no Convênio 106) direcionadas ao local onde se considera ocorrido o fato gerador em operações metaversiais ou, por outro lado, o racional acima descrito, no que tange ao conceito de estabelecimento, já resolveria esta celeuma?

 


[1] É por isso que, ao se falar em DAOs (Decentralized Autonomous Organizations), o que se tem, em verdade, são DINOs (Decentralized in the name only).

[2] Sobre a taxonomia dos criptoativos, confira-se: GOMES, Daniel de Paiva. Bitcoin: a tributação de criptomoedas — da taxonomia camaleônica à tributação de criptoativos sem emissor identificado. 2ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022.

[3] Sobre o tema: "Com base nesse amálgama de definições, bem como tendo em vista o uso leviano do termo metaverso que acaba por confundi-lo com os elementos que o compõem, entendemos que um metaverso é uma PADID2E, ou seja, uma plataforma em ambiente digital interconectado, descentralizado, distribuído e estendido (ID2EDEP — Interconnected, decentralized, distributed and extended digital environment platforms), sendo certo, ainda, que o termo "estendido" abrange a realidade virtual, imersiva, mista e aumentada. Metaversos (ou PADID2Es/ID2EDEPs) enquanto plataformas (MeP ou MaaP – Metaverse as a Platform), este, a nosso ver, é o melhor modo de encararmos o fenômeno (Cf. GOMES, Eduardo de Paiva; GOMES, Daniel de Paiva. Metaverse as a platform (Maap), metalinguagem e direito. In GOMES, Daniel de Paiva (coord.); GOMES, Eduardo de Paiva (coord.); CONRADO, Paulo Cesar (coord.). Criptoativos, Tokenização, Blockchain e Metaverso: aspectos filosóficos, tecnológicos, jurídicos e econômicos. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, Capítulo 89, p. 1.668.

[4] Este, inclusive, foi o entendimento firmado pelo STF no julgamento do ARE 665.134, onde foi fixada a seguinte tese: "O sujeito ativo da obrigação tributária de ICMS incidente sobre mercadoria importada é o Estado-membro no qual está domiciliado ou estabelecido o destinatário legal da operação que deu causa à circulação da mercadoria, com a transferência de domínio".

[5] Partimos da premissa de que a operação de circulação de mercadoria submetida à incidência do ICMS é aquela qualificada como negócio jurídico que implique transferência jurídica de bem móvel tangível ou intangível suscetível de apreciação econômica e destinado à mercancia, independentemente da movimentação física da mercadoria. Consequentemente, a mercadoria somente pode se encontrar com a pessoa que a possui sob a perspectiva jurídica, não sendo influenciada pela sua localização física, já que somente o proprietário pode "dar saída" à mercadoria enquanto negócio jurídico que implique transferência de propriedade.

Autores

  • é doutorando (PUC) e mestre (FGV Direito-SP) em Direito Tributário, msc. candidate em Blockchain e Digital Currency pela University of Nicosia, especialista em Direito Tributário Nacional (PUC) e Internacional (IBDT), professor de cursos de extensão e pós-graduação lato sensu, pesquisador do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet e Advogado em São Paulo.

  • é doutorando (PUC) e mestre (FGV Direito-SP) em Direito Tributário, MSc candidate em Blockchain e Digital Currency pela University of Nicosia, especialista em Direito Tributário Nacional (PUC), conselheiro do CMT (4ª Câmara Julgadora), juiz suplente do TIT, professor de cursos de extensão e pós-graduação lato sensu, pesquisador do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet e advogado em São Paulo.

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