Garantias do Consumo

O retrocesso desmedido da MP nº 1.106, de 17 de março de 2022

Autores

  • Clarissa Costa de Lima

    é juíza de Direito do TJ-RS doutora pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul especialista em Direito Europeu dos Contratos pela Universidade de Savoie ex-presidente do Brasilcon (2012-2014) diretora adjunta da Revista de Direito do Consumidor e vice-presidente do Brasilcon (2020-2022).

  • Rosângela Lunardelli Cavallazzi

    é pós-doutora pela École Doctorale Villes et Environnement — Université Paris 8 doutora e mestre em Direito (UFRJ e UFSC) professora e pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da PUC-Rio bolsista produtividade do CNPq cientista do estado — Faperj membro do Conselho Consultivo do Idec e diretora do Brasilcon.

31 de agosto de 2022, 8h00

Em conjuntura adversa de famílias endividadas e pandemia imanente, do outro lado do rio da boa-fé objetiva, temos a Medida Provisória nº 1.106, de 17 de março de 2022 [1], na esteira do veto presidencial à Lei 14.181, de 2021 [2], em relação ao dispositivo que estabelecia o teto de 30% da remuneração mensal do consumidor para o pagamento das dívidas nos contratos de crédito consignado.

No plano da defesa do consumidor, adotando, portanto, como paradigma o princípio da boa-fé objetiva, o Poder Judiciário se mobiliza para efetivar diretrizes da lei do superendividamento [3]; a Defensoria Pública do Estado do Ceará [4], com pesquisa inédita, aponta que em torno de 50% das ações do Nudecon dizem respeito a mulheres e a questões financeiras; e, simultaneamente, o Brasilcon [5] e o Idec [6] abraçam o diálogo com a sociedade civil e instituições públicas na mesma direção, tudo à luz da luta da comunidade científica, que ganha mais densidade com literatura especializada [7] e práticas jurídicas compatíveis com a eficácia social da Lei 14.181, que alterou o Código de Defesa do Consumidor com regras para a prevenção e o tratamento dos consumidores superendividados.

A Lei 14.181, de 2021, garante o mínimo existencial na concessão e no tratamento com a pactuação do superendividado apesar dos lamentáveis vetos, pois o mínimo existencial compreende o mínimo vital, que não está limitado a priori. A subsistência compreende a pessoa e seu núcleo familiar, segundo o caso concreto.

O veto do artigo 54-E da Lei 14.181/21 constitui, de fato, o veto da escassez. O veto exclui também o direito ao arrependimento, o direito à reflexão no caso do crédito consignado.

A Medida Provisória 1.106 [8] visa ampliar a margem de crédito consignado aos segurados do Regime Geral de Previdência Social e autorizar a realização de empréstimos e financiamentos mediante crédito consignado para beneficiários do Benefício de Prestação Continuada e de programas federais de transferência de renda [9].

A referida medida provisória altera a Lei 10.820, de 2003, que dispõe sobre a autorização para desconto de prestações em folha de pagamento, para aumentar a margem de crédito consignado de aposentados e pensionistas do Regime Geral de Previdência Social de 35% para 40%, dos quais 5% serão destinados exclusivamente para: 1) amortização de despesas contraídas por meio do cartão de crédito ou do cartão consignado de benefício; ou 2) utilização com finalidade de saque por meio do cartão de crédito ou do cartão consignado de benefício [10].

Alcançando práticas inimagináveis no sentido da desconstrução da Lei 14.181, de 2021, a medida também impõe aos consumidores de crédito, hipervulneráveis, de forma irrevogável e irretratável autorizar a União a proceder aos descontos, até o limite de 40% do valor do benefício, em favor de instituições financeiras autorizadas a funcionar pelo Banco Central.

Tudo visando reduzir a pó o risco, inerente a operações de crédito, dos fornecedores de crédito, quando se tratar de amortização de valores referentes ao pagamento mensal de empréstimos e financiamentos.

Segundo os termos da Exposição de Motivos Interministerial (EMI) nº 04, de 2022,

"os requisitos constitucionais de relevância e urgência estão contemplados, tendo em vista que há uma iminente necessidade de facilitar o acesso ao crédito às famílias brasileiras, especialmente àquelas que dependem das rendas oriundas dos benefícios previdenciários ou assistenciais que, atualmente, representam 25% das casas brasileiras. Quanto ao mérito, defende que um aumento moderado da margem de consignação para obter recursos na linha de crédito consignado é vantajoso por ser a que representa menores riscos para as instituições financeiras e a que menos onera os beneficiários do Regime Geral de Previdência Social e dos programas federais de transferência de renda" [11].

Sobre os termos da exposição de motivos, em total oposição aos direitos do consumidor, é urgente afirmar:

Os requisitos constitucionais não estão absolutamente contemplados; ao contrário, é plena de inconstitucionalidade a Medida Provisória 1.106, de 17 de março de 2022.

Constituem condição de crédito irresponsável [12].

Quanto ao mencionado "aumento moderado da margem de consignação", não se trata em absoluto de inocente e insignificante margem a de 35% para 40% do valor do benefício.

Atingem diretamente o mínimo existencial, cujo conteúdo mínimo depende do caso concreto, de cada família, inviabilizando, portanto, a preservação do mínimo existencial e tornando sem efeito a efetividade e a interpretação [13] fundada na boa-fé objetiva da Lei 14.181.

O crédito consignado é uma tradição inventada na sociedade de consumo: um crédito que flexibiliza a proteção ao salário e elimina a proteção do mínimo existencial.

Total e irrevogável transferência de riscos, do contrato, exclusivamente para o consumidor, isto é, o que acontece no crédito em que as instituições financeiras se eximem de todos os riscos inerentes ao contrato de mútuo, ou seja, o consumidor perde o seu direito de escolha de tomar a decisão com liberdade e independência, de quando e como efetuar o pagamento do compromisso assumido.

A modalidade cartão de crédito consignado resulta em uma prisão para o consumidor.

Toda a relação e seus efeitos são invisibilizados. Trata-se de uma ficção, as condições de pagamento, pois os termos do contrato não são conhecidos. A principal obrigação do fornecedor, a oferta do crédito responsável, também não acontece.

Todas essas condições agravadas em relação ao público-alvo preferido: os hipervulneráveis, aposentados idosos.

O desconto mensal é, invariavelmente, da parcela mínima, e o consumidor vai sucessivamente ampliando sua dívida, à medida que o aparente crédito com baixos juros torna-se impagável. Não tem o direito de escolha do pagamento integral e, portanto, o desconto ocorre no pagamento do valor mínimo da fatura do cartão, sendo o saldo adicionado à fatura do próximo mês e, nesse caso, com o acréscimo dos juros do crédito rotativo.

Uma dívida que nunca se paga.

A mercantilização da vida pela via do crédito consignado, embora se relacione com aspectos específicos da estruturação dos mercados de consumo e de trabalho nacionais, deve ser compreendida sob aspectos estruturais, expressão da hegemonia do capitalismo financeiro [14].

Para além do grave processo de endividamento da população brasileira, ampliado na última década, a família endividada [15] na conjuntura da pandemia [16] ganha um contorno específico diretamente relacionado à renda dos idosos e aposentados. Sobre o fenômeno, a pesquisadora Ana Amélia Camarano afirma:

"O que se sabe que está acontecendo neste momento é uma diminuição da renda do trabalho pelo desemprego em todas as idades e pelo corte de salários e, também, o aumento da mortalidade da população, em especial da idosa. São duas faces da pandemia, que afetam a renda das famílias e deixam em destaque o papel dos idosos brasileiros e a contribuição da Seguridade Social para a sua sobrevivência. Chama-se a atenção para o fato de que o idoso é vítima duas vezes nessa pandemia: é quem morre mais e quem é mais afetado pelo desemprego. No entanto, o seu papel nas famílias é pouco reconhecido. Acho que se pode falar que, se morre um idoso, uma família entra na pobreza" [17].

O retrocesso é evidente. A inigualável luta dos consumidores [18] e sua vitória para a exclusão do indecente crédito irresponsável sobre o Auxílio Brasil previsto na Medida Provisória 1.061, de 2021 [19], perde em escala parte do seu efeito, pois de forma reversa os idosos e aposentados são atingidos pela medida provisória.

As construções normativas no campo da Lei 14.181, de 2021, de prevenção e tratamento do superendividamento estão situadas no território das famílias endividadas no Brasil.

 

[2] A lei garante o mínimo existencial na concessão e no tratamento com a pactuação do superendividado, portanto, o veto do art. 54-E da Lei 14.181/21 constitui, de fato, o veto da escassez. O veto exclui também o direito ao arrependimento, o direito à reflexão no caso do crédito consignado. O mínimo existencial compreende o mínimo vital, contudo [que, contudo,] não está limitado. A subsistência compreende a pessoa e seu núcleo familiar.

[4] Disponível em: https://www.defensoria.ce.def.br/noticia/pesquisa-inedita-aponta-que-quase-metade-das-acoes-do-nudecon-e-de-mulheres-e-sobre-questoes-financeiras/. Acesso em: 27 mar. 2022.

"Para ser inserido em várias atividades do cotidiano hoje em dia, você precisa do crédito. Imagina ficar sem acesso ao crédito, como você faz uma simples recarga de celular? Então, o crédito é transversal! Tudo se articula com ele. Desde a alimentação até a moradia. Isso mostra uma atualidade na Lei 14.181, que alterou o Código de Defesa do Consumidor para inserir um capítulo sobre superendividamento. E mostra o quanto é desafiador lidar com isso, porque ainda há um preconceito muito grande com a pessoa endividada. E esse preconceito precisa ser quebrado. Ver tanta gente endividada prova o quanto essa não é uma questão individual e sim reflexo de uma situação coletiva." (defensora pública dra. Amélia Rocha)

[5] Magistrados do Poder Judiciário e professores debaterão a Lei de Superendividamento. Termo de acordo entre a Emerj e o Brasilcon será assinado no encontro. Disponível em: https://www.brasilcon.org/. Disponível em: https://www.emerj.tjrj.jus.br/paginas/noticias_todas/2021/magistrados-do-poder-judiciario-e-professores-debaterao-a-lei.html. Acesso em: 27 mar. 2022.

[8] Ver importante Enunciado da lavra de Enunciado [plural? Enunciados] da "I Jornada CDEA sobre Superendividamento e Proteção do Consumidor UFRGS-UFRJ", realizada no dia 17 de agosto de 2021. "Enunciado 7. A noção do mínimo existencial tem origem constitucional no princípio da dignidade da pessoa humana e é autoaplicável na concessão de crédito e na repactuação das dívidas, visando a prevenção e o tratamento do superendividamento do consumidor pessoa natural, por força da Lei 14.181, 2021, cabendo a regulamentação prevista na Lei, sob o limite da proibição de retrocesso, esclarecer o mínimo existencial de consumo deve ter relação com 'o menor valor mensal não tributável a título de imposto de renda' ou ser feito por faixas de renda, como na França, com um valor fixo 'vital' de um salário mínimo ou de 2/3 do salário mínimo, em todos os casos". (Profa. Dra. Dr. h.c. [correto?] Claudia Lima Marques, Prof. Dr. Fernando Rodrigues Martins, Profa. Dr. Sophia Martini Vial e Profa. Dra. Clarissa Costa de Lima). [Favor verificar a citação. Está correta?]

[9] Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/152261. Sumário Executivo da Medida Provisória 1.106, de 17 de março de 2022. Acesso em: 27 mar. 2021. Publicação: DOU de 18 de março de 2022.

[10] Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/152261. Sumário Executivo de Medida Provisória de Medida Provisória 1.106, de 17 de março de 2022. Acesso em: 27 mar. 2021. Publicação: DOU de 18 de março de 2022.

[11] Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/152261. Sumário Executivo de Medida Provisória Medida Provisória 1.106, de 17 de março de 2022. Acesso: 27/3/2021. Publicação: DOU de 18 de março de 2022.

[12] Ver: LIMA, Clarissa Costa de. O Tratamento do superendividamento e o direito de recomeçar dos consumidores. São Paulo: Revista os Tribunais, 2014.

[13] Enunciado da "I Jornada CDEA sobre Superendividamento e Proteção do Consumidor UFRGS-UFRJ", realizada no dia 17 de agosto de 2021. Enunciado 9. Apesar do veto ao Art. 54-E, que se refere à capacidade de consignação, para evitar o superendividamento do consumidor e garantir a preservação do mínimo existencial na concessão de crédito, é necessário manter a limitação do crédito consignado em 30%." (Autora: prof. dra. Rosângela Lunardelli Cavallazzi)

[14] "A financeirização representa o protagonismo crescente do papel das finanças nas operações do capitalismo. Trata-se do padrão de acumulação em que a produção dos lucros se realiza, de modo privilegiado e gradativo, através dos canais financeiros, em contraposição ao protagonismo da produção industrial e comercial. Ou seja, se altera o conjunto de agentes e elementos beneficiados pela economia, trazendo ênfase exclusiva aos investidores e mercados financeiros, ao invés da economia real" (Bernardo M. Marques)

[15] Segundo Ana Cordeiro Santos, na obra Família Endividadas: uma abordagem de economia política e comportamental, "a crescente hegemonia de políticas neoliberais de privatização e liberalização dos mercados financeiros está contextualizada nas medidas de austeridade implementadas nos últimos anos, que geraram desempregos, impuseram cortes salariais no setor público, aumentaram a carga fiscal sobre o trabalho e as pensões, e dificultaram o acesso a bens e serviços públicos".

[17] Nota Técnica – 2020 – Julho – Número 81 – Disoc [Disoc.] Os Dependentes da Renda dos Idosos e o Coronavírus: Órfãos ou Novos Pobres? Autora: Ana Amélia Camarano. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/200724_nt_disoc_n_81_web.pdf. Acesso em: 27 mar. 2022.

[19] Enunciado da "I Jornada CDEA sobre Superendividamento e Proteção do Consumidor UFRGS-UFRJ", realizada no dia 17 de agosto de 2021. "Enunciado 11. Conceitualmente e por definição o crédito consignado previsto na MP 1.061/21 constitui crédito irresponsável." Autora: prof. dra. Rosângela Lunardelli Cavallazzi.

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