Opinião

Gerência compartilhada e artigo 62, inciso II, da CLT: correta evolução jurisprudencial

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31 de agosto de 2022, 10h05

O Informativo do Tribunal Superior do Trabalho nº 257 [1], relativo ao período de 20 de junho a 1º de julho de 2022, traz precedente de relevo, indicativo de que a compreensão da Corte sabe quando e como moldar-se a novas realidades. Trata-se do processo TST-Ag-AIRR-1000902-98.2017.5.02.0602, julgado pela Eg. 1ª Turma, sob a relatoria do ministro Luiz José Dezena da Silva, em 29.06.2022. Esta é a ementa:

TST
O ministro aposentado Alberto Bresciani

"AGRAVO INTERNO EM AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. INTERPOSIÇÃO NA VIGÊNCIA DA LEI N.º 13.467/2017. GERENTE GERAL COMERCIAL. GESTÃO COMPARTILHADA DA AGÊNCIA BANCÁRIA. CONFIGURAÇÃO. ARTIGO 62, II, DA CLT. Mantém-se a decisão agravada que denegou seguimento ao Agravo de Instrumento diante da ausência de transcendência da causa. A decisão agravada coaduna-se com a jurisprudência do TST segundo a qual a gestão compartilhada de agência, hipótese na qual não há hierarquia entre os gerentes responsáveis pelas duas áreas em que subdividida a agência, áreas comercial e administrativa/operacional, não é suficiente para afastar a caracterização do exercício de cargo de gestão a que se refere o artigo 62, II, da CLT. Precedentes".

O acórdão repousa sobre conflito no qual o demandante, sendo gerente comercial, busca afastar a exceção do artigo 62, inciso II, da CLT, com a condenação de seu empregador ao pagamento de horas extas. Casos semelhantes confluíram à Justiça do Trabalho, quando determinados bancos passaram a adotar novo modelo de administração de suas agências, dividindo as atribuições dos antigos gerentes-gerais entre dois cargos pares, os gerentes comerciais e os gerentes administrativos [2], independentes entre si, cada qual com o governo de sua equipe e com atribuições próprias.

Não poucos julgados, de início, acolhiam tais pretensões, sob o fundamento de que a diluição horizontal das atribuições dos gerentes gerais desqualificava a personagem a que se refere o preceito consolidado. Não se olvide que tais conclusões, no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho, também englobavam casos em que o acervo instrutório dos autos indicava que um dos gerentes mantinha alguma dose de ascendência sobre o outro, aspecto de fato determinante e imutável pela impossibilidade de revolvimento de fatos e provas (Súmula l26 do TST), típica dos recursos de índole extraordinária.

Quando ausente essa última circunstância, no entanto, a orientação primeira trazia incômodo, dando tratamento isonômico a situações jurídicas distintas entre si e que desbordavam do padrão tradicional, que levou à edição da Súmula 287 do TST. O verbete nega aos gerentes-gerais de agências bancárias o direito a horas extras, de vez que, com função hierarquicamente diferenciada, são afastados das regras que, no Direito do Trabalho, regulam os limites e acompanhamento de jornada.  

O artigo 62, inciso II, da CLT, com a redação dada pela Lei nº 8.966, de 27.12.1994, enuncia que "não são abrangidos pelo regime previsto neste capítulo […] os gerentes, assim considerados os exercentes de cargos de gestão, aos quais se equiparam, para efeito do disposto neste artigo, os diretores e chefes de departamento ou filial". A moldura original do preceito aludia a "mandato, em forma legal", expressão suprimida.

A norma se reporta àqueles altos empregados, detentores de confiança excepcional, que, efetivamente investidos em poderes de gestão e com remuneração diferenciada, não sejam submetidos a controles de horário. São casos em que os poderes conferidos aos trabalhadores estão próximos aos do empregador ideal, não havendo necessidade de que o substituam plenamente (como orienta a supressão da expressão "mandato, em forma legal"). Os poderes de gestão não estão enumerados e devem ser analisados em seu conjunto a cada caso concreto levado a exame judicial.

Ultrapassada qualquer desconfiança quanto à recepção do preceito pela Constituição de 1988, penso que se lhe deva dar a voz recomendada por nova dinâmica, impressa pelo tempo às relações de emprego. Com efeito, se nenhuma regra, em sua necessária abstração, consegue abarcar todas as situações jurídicas contemporâneas à sua edição, o que dizer daquelas com as quais o futuro vai a todos surpreender? Nada é permanente, a não ser a própria impermanência das coisas, relembra a máxima budista.

Pois bem. Dúvida não há de que, no universo bancário, os gerentes submetidos ao artigo 62, inciso II, da CLT são aqueles excluídos das disciplinas dos artigos 224, caput e §2º, do mesmo Texto. As máximas da experiência não fazem difícil o entendimento do que seja um gerente-geral de agência. A atualidade, no entanto, afasta a concepção de empregado que possa, sempre e livremente, admitir ou dispensar bancários (embora possa sugeri-lo). Também não há que se exigir que estejam livres de subordinação, pois se cuida de condição inerente mesmo aos altos empregados, ainda que atenuada. Enfim, as evidências imprescindíveis para essa classe de empregados são as competências que superem aquelas dos detentores de cargos de confiança do artigo 224, §2º, da CLT, a remuneração qualificada e a efetiva ausência de controle de horários.

A reunião dos requisitos estará sedimentada pelo princípio da realidade, valendo, no diálogo contratual, para empregados e empregadores.

Embora a gerência compartilhada conserve muito do genoma original das relações de emprego, o fato é que o progresso tecnológico e o rejuvenescimento da população que aporta no mercado de trabalho trazem, necessariamente, modernizados paradigmas e ritos às corporações. Nenhum bom resultado pode ser extraído de visões retrospectivas do mundo e do direito, incumbindo ao intérprete dar às normas jurídicas postas as expressões que espelhem a real dinâmica dos fatos e promovam o bem comum.

Sob essa ótica, a gestão compartilhada (ou liderança compartilhada — shared leadership) constitui forte tendência atual. Trata-se de afastar a visão vertical e hierarquizada da estrutura empresarial, para se a diluir horizontalmente, distribuindo encargos entre colaboradores de igual posição. Marshall Goldsmith [3] explica:

Com a globalização, a reestruturação intra e intersetorial e um número crescente de organizações que se fundem, a necessidade de flexibilidade dinâmica, ampla base de conhecimento e expertise são maiores do que nunca. A liderança compartilhada, em virtude de partir das melhores habilidades dos líderes combinadas, é testada como possível solução para se atender a essas carências empresariais desafiadoras [4].

E prossegue:

A liderança compartilhada envolve maximizar todos os recursos humanos em uma organização, capacitando os indivíduos e lhes dando a oportunidade de assumir posições de liderança em suas áreas de especialização. Com mercados mais complexos ampliando as demandas de liderança, o trabalho, em muitos casos, é simplesmente demasiado para um só indivíduo [5].

A gerência compartilhada, de certo modo, é expressão incipiente e híbrida dessa inclinação, mas já revela a necessidade de compreensão atualizada dos aplicadores do direito. Efetivamente, nenhum dano traz ao patrimônio jurídico dos trabalhadores a ela submetidos. Na medida em que, nas agências bancárias, cada um dos gerentes (comercial e administrativo — imaginemos, ainda, as denominações) possui amplos poderes de gestão, dentro de seu segmento, não lhes faltará o status que se reconhece aos gerentes-gerais. Trata-se, objetivamente, de redução de atribuições, diluídas horizontalmente, sem comprometimento da potência de comando.

Sempre me pareceu que o fato de se compartilhar a gerência-geral de agência entre altos empregados, livres de controle superior direto e permanente, com poderes de gestão e remuneração destacadas, ainda autônomos na definição de seus horários de trabalho, não afastaria a incidência do artigo 62, inciso II, da CLT.

Hoje, a jurisprudência da SBDI-1 do Tribunal Superior do Trabalho, órgão uniformizador de jurisprudência, parece pacificada:

"RECURSO DE EMBARGOS REGIDO PELAS LEIS 13.015/2014 E 13.467/2017. HORAS EXTRAS. CARGO DE CONFIANÇA. GERENTE COMERCIAL. GERÊNCIA COMPARTILHADA. AUSÊNCIA DE CONTROLE DE JORNADA. Cinge-se a controvérsia ao enquadramento do empregado bancário no artigo 224, §2º, ou no artigo 62, II, ambos da CLT, em caso no qual o acórdão turmário registra tratar-se de gerência com gestão compartilhada, sem hierarquia entre os gerentes comercial e operacional, atuando o reclamante como gerente comercial. O TRT afirma que na área de atuação do reclamante (gerência comercial) ele era a autoridade máxima. Houve ainda descrição de dados fáticos para demonstrar poderes de mando, gestão e representação do empregador. É de fundamental importância observar que o reclamante não tinha superior hierárquico na agência e não há qualquer elemento a demonstrar que ele estava submetido a controle de horário. Ele próprio afirmou em juízo que não registrava ponto, o que corrobora a constatação de ser ele a autoridade máxima na área comercial da agência. A autodeterminação da jornada, que justifica inclusive a constitucionalidade do artigo 62 da CLT frente ao que prevê o artigo 7.º, XIII, da Constituição Federal, impede enquadrar o reclamante na regra do artigo 224, §2º, da CLT na forma como decidido no acórdão turmário, ora impugnado. Nesse mesmo sentido, esta Subseção, no julgamento do Proc. Proc. E-ED-ARR-854-61.2012.5.09.0013, fez incidir a regra do artigo 62, II, da CLT em caso no qual o reclamante foi reconhecido como autoridade máxima da agência bancária na área comercial, vinculado somente ao superintendente regional, sem haver controle de jornada. Impõe-se, pois, restabelecer a decisão do Tribunal Regional na parte em que reconheceu o enquadramento do autor no artigo 62, II, da CLT e excluiu da condenação as parcelas decorrentes. Recurso de embargos conhecido e provido" (E-RR-2516-89.2012.5.09.0068, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, relator ministro Augusto César Leite de Carvalho, DEJT 28/01/2022).

As ementas transcritas, pelo exposto, levam às lides que as originaram a jurisprudência mais atual e prudente, alicerçada em fatos recentes, revelando intelecção avançada do artigo 62, inciso II, da CLT, preceito que, certamente, ainda merece e merecerá releituras, de forma a atender a inovadores modelos de gestão empresarial, forjados pela contemporaneidade.


[2] Nomenclatura variável.

[3] GOLDSMITH, Marshall. Sharing leadership to maximize talent. Harvard Business Review. Disponível em: <https://hbr.org/2010/05/sharing-leadership-to-maximize#:~:text=What%20is%20shared%20leadership%3F,in%20their%20areas%20of%20expertise>. Acesso em: 22. agosto.2022.

[4] Tradução livre nossa.

[5] Tradução livre nossa.

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