Opinião

A lógica da seleção de recursos e a Emenda Constitucional 125 de 2022

Autores

  • Rodrigo Cunha Mello Salomão

    é advogado mestre em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e vice-presidente da Comissão de Processo Civil da OAB-RJ.

  • Fernanda Bragança

    é pesquisadora do Centro de Inovação Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento doutora em Direito pela UFF e pesquisadora visitante na Université Paris 1 Pantheón Sorbonne.

  • Renata Braga

    é professora da Universidade Federal Fluminense UFF/VR pesquisadora colaboradora externa do Centro de Inovação Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento e doutora em Direito pela UFSC.

29 de agosto de 2022, 10h05

Em 14 julho de 2022, foi publicada a Emenda Constitucional nº 125, a qual institui no recurso especial o requisito da relevância das questões de direito federal infraconstitucional, mas a concepção para o ordenamento brasileiro remonta a 2012, com a PEC nº 209, na Câmara dos Deputados. A proposta teve origem em proposição aprovada pelo Pleno do Superior Tribunal de Justiça em março de 2012, e contou com a liderança do ministro Teori Zavascki na elaboração do anteprojeto.

A proposta foi apresentada na Câmara pela deputada Rose de Freitas e pelo deputado Luiz Pitiman com uma justificativa que levou em conta os seguintes elementos: competência do STJ na Constituição; dados quantitativos relacionados ao número de processos recebidos pelo Tribunal da Cidadania; equivalência com o instituto da repercussão geral no STF e impacto no número de processo nesta Corte; e eficiência institucional. Na sua proposta original, a Emenda propunha a inserção do parágrafo 1º ao artigo 105, da Constituição Federal com a seguinte redação:

§ 1º No recurso especial, o recorrente deverá demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços dos membros do órgão competente para o julgamento.

Em março de 2017, a mesa diretora da Câmara enviou a PEC para apreciação do Senado. Com a tramitação nesta Casa, o artigo 105 da CRFB teve seus parágrafos renumerados e passou a contar, também, com o parágrafo 3º. A redação do dispositivo assumiu a seguinte forma:

§ 2º. No recurso especial, o recorrente deve demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que a admissão do recurso seja examinada pelo Tribunal, o qual somente pode dele não conhecer com base nesse motivo pela manifestação de 2/3 (dois terços) dos membros do órgão competente para o julgamento. Incluído pela Emenda Constitucional nº 125, de 2022)
§ 3º Haverá a relevância de que trata o § 2º deste artigo nos seguintes casos: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 125, de 2022)
I – ações penais; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 125, de 2022)
II – ações de improbidade administrativa; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 125, de 2022)
III – ações cujo valor da causa ultrapasse 500 (quinhentos) salários mínimos; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 125, de 2022)
IV – ações que possam gerar inelegibilidade; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 125, de 2022)
V – hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante o Superior Tribunal de Justiça; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 125, de 2022)
VI – outras hipóteses previstas em lei. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 125, de 2022)

O parágrafo 2º tem uma disposição análoga ao parágrafo 3º do artigo 102 da CRFB, que trata do instituto da repercussão geral, inclusive com o mesmo quórum de rejeição. O parágrafo 3º trata da presunção de relevância [1], ou seja, hipóteses em que o legislador optou por pré-definir que passam pelo filtro. São casos relativos à direitos fundamentais, como o direito à liberdade e direitos políticos e ao fortalecimento da jurisprudência dominante do STJ em que, portanto, o legislador entendeu por bem não obstar de chegar ao tribunal. A expectativa apontada é que o filtro de relevância diminua em 50% o volume de recursos que chegam ao tribunal.

O filtro da relevância passa a valer para os recursos especiais interpostos após a entrada em vigor da referida Emenda e a parte poderá atualizar o valor da causa, conforme dispõe o artigo 2º da PEC 10/2017 do Senado. Nada obstante, há relevante discussão doutrinária acerca da vigência da emenda constitucional antes da promulgação da lei que definirá o conceito de relevância e regulamentará seu procedimento, podendo, inclusive, prever outras hipóteses de presunção (inciso VI, do artigo 3º).

A importância desse mecanismo de seleção para fins de consolidação da jurisprudência é que o STJ não terá que decidir todos os casos com alegada violação da lei federal.

A lógica da seleção é destacar os recursos mais significativos sobre uma determinada matéria para serem apreciados por tribunais superiores. Esse filtro é realizado a partir da análise — ainda que superficial neste primeiro momento — do mérito recursal.

Cabe destacar que, ao nosso ver, a seleção dos recursos corresponde a um critério de seleção para julgamento e não a um requisito de admissibilidade, como alguns autores costumam tratar. O juízo de admissibilidade é relacionado aos pressupostos processuais, tais como interesse de agir e o preparo, a tempestividade, a adequação e o cumprimento de demais exigências formais[2].

A seleção de recursos aplicada em recursos excepcionais reverbera, no ordenamento brasileiro, no recurso extraordinário (artigo 102, III da CRFB) e no recurso especial (artigo 105, III da CRFB). Ambas as espécies recursais servem para o controle da correta aplicação do Direito objetivo, ou seja, o objeto de cognição é restrito aos limites da matéria jurídica[3]. Sendo assim, não se prestam ao reexame de prova, tal como já consagrado pela jurisprudência[4].

A função precípua desses recursos é guardar a interpretação jurídica objetiva que, no âmbito dos recursos especiais, diz respeito à verificação se a norma jurídica foi interpretada corretamente em relação à legislação infraconstitucional.

O intuito de selecionar recursos para serem julgados pelos tribunais superiores tem como umas das principais perspectivas garantir que essa interpretação legislativa resulte em unidade, uniformidade e segurança jurídica. De fato, a variação da interpretação do direito a todo e qualquer caso concreto dificulta a formação de um entendimento coeso do tribunal sobre uma determinada matéria.

A implantação de filtros de seleção tem lastro no sistema common law, em que é possível, por exemplo, que os juízes escolham os casos que desejam julgar, a exemplo do que ocorre na Supreme Court dos Estados Unidos. Essa lógica dos filtros de acesso às instâncias superiores vem sendo incorporadas pelos países de civil law, tal como já ocorre na Alemanha e na Espanha[5].

Sem dúvida, é legítimo o olhar crítico em relação à criação de obstáculos ao acesso à justiça, justamente no Tribunal que ostenta o crivo da “cidadania”, mas é preciso fazer algumas considerações.

Ao longo do tempo, o funcionamento do STJ enquanto Corte Superior foi deturpado em decorrência do volume de processos. O filtro da relevância representa uma iniciativa com o intuito de resgatar a eficiência e a qualidade do sistema de formação dos precedentes[6].

Nem os mais otimistas esperam resolver o problema da sobrecarga de processos no tribunal com a implantação do filtro da relevância. O que se espera é que o STJ possa, ao menos, se reaproximar da essência da sua vocação constitucional e desempenhar o seu papel com ainda maior previsibilidade.


[1] Cf. SENADO FEDERAL. Parecer Nº 266, DE 2021-PLEN/SF. De PLENÁRIO, sobre a Proposta de Emenda à Constituição no 10, de 2017, cuja primeira signatária foi a então Deputada Federal Rose de Freitas, que acrescenta § 1o ao art. 105 da Constituição Federal e renumera o atual parágrafo único. Disponível em: <https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9033843&ts=1659564189115&disposition=inline>. Acesso em: 16 ago. 2022.

[2] SALOMÃO, Rodrigo Cunha Mello. A relevância da questão de direito no recurso especial. Orientador: Humberto Dalla. 2020, 169f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, 2020, pp. 95-96.

[3] MANCUSO, Rodolfo Camargo. Recurso extraordinário e recurso especial. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 124.

[4] Cf. Súmula n. 279 do STF e Súmula n. 7 do STJ.

[5] Essa análise comparada com as experiências estrangeiras será objeto de artigos posteriores.

[6] CHAVES, Guilherme Veiga. O filtro da relevância para o recurso especial. Consultor Jurídico, opinião, 4 jun. 2022. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2022-jun-04/guilherme-chaves-filtro-relevancia-recurso-especial#_ftn6>. Acesso em: 16 ago. 2022.

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