Opinião

Existência simultânea de qualificadoras não autoriza sua conversão em agravantes

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29 de agosto de 2022, 13h17

A pena cominada ao furto de semoventes (parágrafo 6º) do artigo 155 — dois a cinco anos de reclusão — limita-se à pena de prisão, deixando-se de cominar a pena de multa, a exemplo da qualificadora de furto de veículos (parágrafo 5°). As demais qualificadoras (parágrafo 4º) cominam reclusão de dois a oito anos, cumulada com pena de multa, como ocorre com a previsão do caput.

Teoricamente, com essa previsão o legislador criou certo paradoxo, na medida em que as demais qualificadoras aplicam pena mais grave, além de cominarem também a pena pecuniária. Nesse sentido, destaca Vicente de Paula Rodrigues Maggio [1]: "Para exemplificar, antes da nova lei, um furto de um semovente qualificado pela destruição ou rompimento de obstáculo, ou com abuso de confiança, ou mediante concurso de pessoas (CP, artigo 155, §4º, I, II e IV) teria uma pena em abstrato de reclusão, de dois a oito anos. Com o reconhecimento da nova qualificadora, o mesmo delito terá uma pena em abstrato de reclusão, de dois a cinco anos". Dizemos "teoricamente" porque, a rigor, trata-se de uma qualificadora de menor gravidade, a qual, aliás, na nossa avaliação, ficaria melhor e seria mais técnica como causa de aumento, pois traria menos dissabores interpretativos, apresentando melhor funcionalidade. Com efeito, a aplicação dessa qualificadora afastará as demais, que são relacionadas ao meio de execução do crime de furto (parágrafo 4º).

A coexistência de qualificadoras em alguns crimes, v. g. no furto e homicídio, qualificados, para ficar nesses dois tipos penais de ocorrências mais frequentes em nossa sociedade, deverão ser aplicadas como circunstâncias judiciais, se houver correspondência de previsão legal. E não como majorantes ou agravantes, ao contrário do que tradicionalmente tem sido feito no quotidiano forense. Estamos propondo, de certa forma, uma "inovação" na tradicional forma de dosimetria penal em alguns crimes qualificados, mais consentânea com o Estado democrático de direito, que não admite o bis in idem. Aliás, nesse sentido, relativamente à ocorrência simultânea de qualificadoras no crime de furto, Rogério Sanches [2] levanta uma questão muito interessante, verbispágina?!

"No entanto, sabendo que esse tipo de crime, especialmente quando envolve a subtração dos animais vivos, quase nunca é praticado por um só agente, mas em concurso, com rompimento de obstáculos e uso de via anormal para ingressar na propriedade rural (escalada), pergunta-se: os furtadores vão responder pelo crime de furto qualificado pelo §6º (punido com dois a cinco anos) ou pelo §4º (punido com dois a oito anos, em razão do rompimento de obstáculos, escalada e/ou concurso de pessoas)?"

Pois a frequente possibilidade de ocorrência simultânea de qualificadoras em um mesmo crime também acontece com o homicídio qualificado que, não raro, é denunciado com dupla, tripla ou até quadrupla qualificadoras. Questão extremamente interessante é essa coexistência de qualificadoras em um mesmo crime, para ficarmos nesses dois tipos penais, cujas ocorrências são muito frequentes em nossa sociedade, com acentuado aumento da violência ano após ano.

Sem uma reflexão mais aprofundada, respondendo ao questionamento de Rogério Sanches, acreditamos que deve prevalecer a qualificadora do § 6º, em razão do princípio da especialidade e, inclusive, sua inclusão ocorreu posteriormente, além de ser específica para o crime de furto de animais.  Por outro lado, as outras qualificadoras poderão, no máximo, ser aplicadas se houver correspondência, como circunstância judicial (artigo 59). Aliás, falando na ocorrência de mais de uma qualificadora simultânea, o professor Rogério Sanches sintetiza seu entendimento doutrinário, que pedimos vênia para subscrevê-lo:

"Nas hipóteses de coexistência de qualificadoras, não existindo entre elas relação de especialidade — mas pluralidade de circunstâncias —, deve prevalecer aquela que pune o comportamento do criminoso com mais rigor, sob pena de se violar os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. A outra deve ser considerada pelo magistrado na fixação da pena-base, salvo se prevista também como agravante, caso em que será aquilatada pelo juiz na segunda fase da aplicação da reprimenda [3]."

Contudo, relativamente à ocorrência de mais de uma qualificadora do mesmo fato delituoso, passamos a adotar outra posição, embora reconheçamos a correção da orientação seguida por Sanches. Alguns aspectos de ordem dogmática, porém, levaram-nos a reformular nosso entendimento, no sentido que passamos a expor a seguir.

Doutrina e jurisprudência nacionais, acriticamente, têm admitido, na hipótese de duas qualificadoras, a conversão de uma delas em agravante legal ou em causa de aumento, desde que sejam observadas algumas peculiaridades relativas à tipicidade estrita. Demonstraremos, no entanto, algumas dificuldades para superar questões de ordem jurídico-dogmática a fim de superar essa questionável praxis judicial. Imagine-se, exemplificativamente, o motivo fútil ou torpe, os quais, além de qualificadoras do homicídio, constituem, igualmente, duas agravantes descritas no artigo 61, II, a, do CP. Mesmo assim, essas qualificadoras do homicídio não poderiam ser convertidas nas agravantes similares constante do dispositivo último citado, porque o próprio texto dessas agravantes proíbe essa conversão, exatamente por ser prevista também como qualificadora [4].

Um Estado democrático de Direito não transige com responsabilidade penal objetiva, tampouco com interpretações analógicas in malam partem, como ocorre, por exemplo, na conversão de uma qualificadora (a 2ª ou 3ª reconhecidas para o mesmo crime) em agravantes legais, inclusive em crimes da competência do Tribunal do Júri [5]. Aliás, a impropriedade decorre da própria tipificação dessas agravantes (artigo 61, caput), como demonstramos acima e, fundamentalmente, em respeito à soberania da instituição do Júri, mantida pela atual Constituição (artigo XXXVIII, c).

Com efeito, dogmaticamente e em decorrência do próprio texto legal, a existência de duas qualificadoras não autoriza o julgador a adotar a segunda como circunstância agravante genérica ou causa de aumento, a ser valorada na segunda ou terceira operação da dosimetria da pena, a despeito da orientação jurisprudencial majoritária nesse sentido. Na verdade, doutrinariamente [6], "estamos propondo uma revisão doutrinário-jurisprudencial desse entendimento, por razões jurídico-constitucionais. Passamos a sustentar que eventual majoração da punição decorrente dessa conversão de uma categoria jurídica em outra (qualificadora em agravante) deve ser suprimida da praxis judiciária. Ocorre que o legislador não conferiu ao magistrado essa discricionariedade —  qual seja, de alterar a categoria jurídico-dogmática de institutos penais — no procedimento de individualização da pena do agente, inclusive alterando a metodologia de sua aplicação" [7].

Sendo adotado esse procedimento em primeiro grau — inclusive em crimes da competência do Tribunal do Júri —, deve-se rever a metodologia do cálculo da pena, fixando a pena-base entre os limites mínimo e máximo previstos para o crime qualificado, com uma ou mais qualificadoras, como se fosse única. Referidas qualificadoras — não importa quantas — integram a própria tipificação da figura qualificada, dela não podendo ser afastadas principalmente para agravar a situação do acusado [8], aumentando a sua punição.

As qualificadoras do crime  destacamos literalmente em nosso Tratado de Direito Penal , "não são meros acessórios ou simples características que apenas circundam o crime, como as agravantes e majorantes: são verdadeiras elementares que compõem ou constituem o próprio tipo penal qualificado, e, como tais, não podem dele ser retiradas para serem valoradas, em separado, para majorar a própria pena cominada ao “crime qualificado como um todo" [9]. A rigor  como escrevemos em nosso Tratado, verbis:  

"Não se pode ignorar que as qualificadoras integram, como elementares normativo-subjetivas, o próprio tipo penal, por isso, a impossibilidade de serem extirpadas para serem valoradas em outra etapa da dosimetria penal, especialmente em um sistema penal que adota o critério trifásico. Entendimento diverso, mutatis mutandis, significa autorizar, em determinadas circunstâncias, o julgador a retirar certas elementares do tipo penal, decompondo-o, para compor, completar ou integrar agravantes ou majorantes a fim de elevar a pena final definitiva do acusado. Em outros termos, o magistrado poderia 'jogar' com o tipo penal, desconstituindo-o ou alterando-o de acordo com as conveniências ou as circunstâncias processuais ou procedimentais, violando gravemente o princípio da tipicidade estrita" [10].  

Enfim, a existência de mais de uma qualificadora não serve para agravar a pena-base ou a pena provisória, pois a variedade ou pluralidade de qualificadoras previstas serve somente para ampliar as hipóteses que podem qualificar um crime, mas sua ocorrência simultânea em uma mesma conduta criminosa não autoriza a extrapolar o limite fixado em cada tipo penal, interpretando-as como majorantes ou agravantes. Em outros termos, a pluralidade de qualificadoras em uma mesma conduta deve receber o mesmo tratamento que se atribui aos chamados crimes de ação múltipla ou de conteúdo variado, ou seja, aqueles crimes cujo tipo penal contém várias modalidades de condutas, e, ainda que sejam praticadas mais de uma, haverá somente um único crime (v. g., artigos 122, 180 e 234 do CP). Assim, a segunda ou terceira qualificadoras em um mesmo crime não podem ser aplicadas como agravante ou majorante, pois ela já está integrada na valoração da pena mínima cominada, devendo ser examinadas nas circunstâncias judiciais do artigo 59 do CP.

Por essas razões é inadmissível, na concepção que estamos adotando, a utilização de qualificadoras deslocadas do tipo penal, para valoração na segunda ou terceira fases do cálculo da pena, qual seja, convertidas em agravantes ou majorantes, pois esse procedimento viola o disposto no próprio caput do artigo 61, que determina: "São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime". Ou seja, referido dispositivo legal proíbe que sejam utilizadas, como circunstâncias agravantes ou majorantes, aquelas que "constituem ou qualificam o crime" (caput do artigo 61 do CP). Há, a rigor, uma absoluta inadequação típica, na medida em que esse dispositivo legal somente admite como agravante "circunstância que não integre o próprio tipo penal ou alguma qualificadora do crime".

Ora, a impossibilidade da conversão dessas qualificadoras em circunstâncias agravantes é de uma clareza meridiana: o texto legal exclui expressamente a aplicação de qualificadora como agravante, pela singela razão de que qualificadora é elementar constitutiva do tipo penal qualificado, e, como tal, não pode dele ser separada para funcionar, autonomamente, como se agravante fosse. Afirmar que tal qualificadora não está sendo aplicada como "qualificadora" não a desnatura, isto é, não lhe retira a natureza de "circunstância que qualifica o crime". Logo, esse argumento não passa de manobra diversionista visando burlar a proibição do "caput" do artigo 61 do CP.

Com efeito, a proibição do caput não é apenas de referida circunstância qualificadora ser aplicada nas duas funções, simultaneamente, pois isso seria uma obviedade ululante. Na verdade, o dispositivo legal proíbe a utilização de qualificadora como agravante ou majorante, independentemente de ser aplicada simultaneamente como qualificadora.

O máximo que se poderá admitir, mesmo com reservas — sem violentar o sistema trifásico da dosimetria penal e, principalmente, a estrutura tipológica dos crimes qualificados e o princípio da tipicidade estrita —, será valorar uma segunda ou terceira qualificadora como circunstância judicial, na definição da pena-base, desde que adequada a alguma delas. Mas, nessa hipótese, não pode ser "supervalorizada", pois, assim, seria uma agravante disfarçada de circunstância judicial, burlando o sistema trifásico. Nessa linha, inadmitindo adoção da segunda qualificadora como agravante ou majorante, destacamos decisões do Colendo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, verbis:

"PENAL — APELAÇÃO CRIMINAL — HOMICÍDIO DUPLAMENTE QUALIFICADO — PENA — REDUÇÃO — NECESSIDADE — CONCURSO DE QUALIFICADORAS. Existindo mais de uma qualificadora no crime de homicídio, uma delas deve qualificar o delito enquanto as demais devem ser tidas para aumentar a pena-base quando da aplicação da pena na 1ª fase dosimétrica, e não como agravante genérica na 2ª fase" (TJMG, 4ª CCrim, Ap. 1.0392.11.001313-3/001, relator desembargador Júlio Cezar Guttierrez, v. u., j. 23-1-2013, pub. DJe de 31-1-2013). No mesmo sentido: TJ-MG, 3ª CCrim., Ap. 10525.07.108744-5/002, relator Cruvinel, v. u. j. 8-6-2010; pub. DJe de 29-7-2010).

Por todos esses fundamentos, concluindo, havendo mais de uma qualificadora do crime, nenhuma delas pode migrar para o campo das agravantes ou das causas de aumento, mesmo que o conteúdo da referida qualificadora também seja previsto como agravante ou majorante, pois repercutirá sobre a pena-base, indevidamente, e desrespeitará o sistema trifásico consagrado no artigo 68 do CP. Ademais, essa migração de elementares constitutivas do tipo qualificado representará inadmissível interpretação extensiva ou intepretação analógica em prejuízo do acusado.


[1] Vicente de Paula Rodrigues Maggio. Furto e receptação de semovente domesticável de produção, in <http://vicentemaggio.jusbrasil.com.br/artigos/369425204/furto-e-receptacao-de-semovente-domesticavel-de-producao>, acesso em 21 -8-2022.

[2] Cunha, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal, Parte Especial, Volume único, 12ª ed., Salvador, EDITORA  jus PODIVM, 2020, p. 308.

[3] Cunha, Rogério Sanches, in <https://www.cers.com.br/noticias-e-blogs/noticia/lei-1333016-breves-comentarios>, acesso em 22-8-2022, 22h45.

[4] Artigo 61: "São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime".

[5] Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal — Crimes contra o patrimônio, 18ª ed., São Paulo, Editora Saraiva, 2022, vol. 3, p. 75.

[6] Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal Crimes contra o patrimônio…p.  74-75.

[7] Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal Parte Especial, 18ª ed., São Paulo, Saraiva, 2022, vol. 3, p. 74-75.

[8] Bitencourt. Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, 18ª ed… p. 75.

[9] Bitencourt. Tratado de Direito Penal… p. 75.

[10] Bitencourt. Cezar Roberto.  Tratado de Direito Penal… p. 75.  

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