Opinião

É preciso demonstrar a relevância no recurso especial agora?

Autor

  • Maíra de Carvalho Pereira Mesquita

    é mestre em Direito pela UFPE especialista em Direito Processual Civil e em Direito Civil professora na graduação e pós-graduação da Faculdade Damas da Instrução Cristã e cursos jurídicos defensora pública federal e coordenadora da Câmara de Coordenação e Revisão Cível da Defensoria Pública da União.

    View all posts

25 de agosto de 2022, 6h46

A Emenda Constitucional 125/2022 alterou a redação do artigo 105 da Constituição, para incluir como requisito de admissibilidade do recurso especial a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas. Veja-se:

2º No recurso especial, o recorrente deve demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que a admissão do recurso seja examinada pelo Tribunal, o qual somente pode dele não conhecer com base nesse motivo pela manifestação de 2/3 dos membros do órgão competente para o julgamento (Incluído pela Emenda Constitucional nº 125, de 2022)".

Da leitura do texto constitucional reformado, depreende-se que o novo requisito de admissibilidade, para ser exigido, depende de regulamentação em lei formal, que ainda não existe. Em outras palavras, a referida emenda constitucional depende de regulamentação legal futura, razão pela qual tal filtro de admissibilidade ainda não pode ser exigido [1].

Por outro lado, o artigo 2º da EC 125/2022 dispõe que a relevância da questão federal será exigida nos recursos especiais interpostos após a entrada em vigor desta emenda constitucional. Com base em tal previsão, há vozes no sentido da incidência imediata do requisito da relevância a partir de 15 de julho de 2022 [2]. Essa não parece ser a melhor interpretação. Vejamos.

A impossibilidade de exigência do requisito da relevância da questão constitucional discutida decorre: 1) da leitura do texto constitucional expresso (nos termos da lei); 2) da inexistência de conceito e conteúdo do que vem a ser a relevância da questão federal; 3) da necessidade de resguardar o devido processo legal e o contraditório (artigo 5º, LV, CF/88) por lei específica que discipline a relevância da questão federal, o procedimento a ser adotado para sua aferição, bem como a consequente alteração do Regimento Interno do STJ; 4) das regras de direito intertemporal [3].

Além disso, sabe-se que o requisito da relevância da questão federal no recurso especial aproxima-se do requisito da repercussão geral do recurso extraordinário para o STF (artigo 102 § 3º CF/88). Ambos constituem filtros para admissibilidade dos recursos excepcionais, a fim de que os tribunais superiores exerçam, efetivamente, sua função de corte de precedentes.

A repercussão geral foi incluída no texto constitucional pela EC 45/2004, veio a ser regulamentada apenas pela Lei nº 11.418, de 19 de dezembro de 2006 e, posteriormente, incorporada ao CPC. Depois da lei de 2006, houve ainda a alteração no Regimento Interno do STF pela Emenda Regimental 21, de 30 de abril de 2007. Apenas após a dupla regulamentação (Lei nº 11.418/2006 e Regimento Interno do STF), o requisito da repercussão geral passou a ser exigido. Não há motivos, portanto, para adotar sistemática diversa no STJ, o que reforça  mais uma vez  a impossibilidade de inadmissão de qualquer recurso especial por suposta ausência de "relevância da questão federal".

Sobre a admissibilidade dos recursos especiais e extraordinários, importante ressaltar que a redação original do artigo 1.030 do CPC/2015 previa que o juízo de admissibilidade seria realizado diretamente pelo STJ e STF, respectivamente. Ou seja, na redação original, não havia duplo juízo de admissibilidade dos recursos excepcionais [4], nem também o agravo do artigo 1.042 para "destrancá-los" em caso de inadmissão. Entretanto, ainda no período da vacatio legis, a Lei nº 13.256/2006 restabeleceu a sistemática do duplo juízo de admissibilidade de tais recursos, na tentativa de "barrar" sua subida aos tribunais superiores.

Com a sistemática que entrou em vigor, em poucas linhas, houve a distinção entre negar seguimento (cabe agravo interno para o próprio tribunal local  artigo 1.030, I c/c § 2º) e não admitir (cabe Agravo em Recurso Especial para o STJ  artigo 1.030, V c/c §1º). Como consequência, caso o presidente ou vice presidente do tribunal local não admita o recurso especial por ausência de um requisito intrínseco ou extrínseco de admissibilidade  por exemplo, reexame de provas conforme súmula 7 do STJ  para a "subida" do recurso especial para o STJ, deve ser interposto o agravo em recurso especial (AResp), previsto no artigo 1.042 do CPC.

Assiste-se, portanto, a uma enxurrada de AResp em face das decisões de inadmissão proferidas pelo presidente ou vice presidente do tribunal local, com um total de 223.335 AResp distribuídos em 2021 e 126.792 em 2022 (até julho). Desses, em 2022, 35,6% foram improvidos, 56,3 % não conhecidos e apenas 4,5% providos; já em 2021, 34,4 % foram improvidos, 57,7% não conhecidos e apenas 4,2% providos. Por outro lado, dos recursos especiais interpostos e admitidos na origem, foram distribuídos 72.311 em 2021 e 38.311 em 2022 (até julho). Dos recursos especiais que chegaram ao STJ, em 2022, 23,1% foram não conhecidos, 30,1% negados e 38,2% concedidos; já em 2021, 25,2% foram não conhecidos, 30,3% negados e apenas 33,8% concedidos [5].

Diante desse panorama, pode-se prever a tendência de que o requisito da relevância da questão federal receba regulamentação semelhante à da repercussão geral no artigo 1.030 do CPC. Caso o STJ entenda que a matéria discutida não é relevante, os demais recursos interpostos sobre o tema não mais serão encaminhados ao STJ porque haverá negativa de seguimento com base no artigo 1.030, I, CPC, sendo cabível Agravo Interno para o próprio tribunal local. Acredita-se que o objetivo do requisito da relevância servirá, ao fim e ao cabo, para diminuir a quantidade de agravos em recurso especial do artigo 1.042 do CPC que aportam ao STJ diariamente.

Percebe-se, entretanto, ser este um mero prognóstico, que depende de regulamentação legislativa. São muitas questões ainda sem definição  o que significa, qual o órgão competente para apreciação, qual o efeito da decisão que reconhece ou não a relevância da questão federal em processos com matéria semelhante , razão pela qual a exigência do requisito da relevância jurídica ofenderia o devido processo legal e a segurança jurídica. Sendo assim, entende-se que deva ser realizado o juízo de admissibilidade dos recursos especiais sem a exigência do requisito da relevância da questão federal, até que entre em vigor lei específica e alteração do regimento interno do STJ sobre o tema.

Entretanto, nos autos do AgInt no AREsp 2.095.488 (DJE 05/08/2022), o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva proferiu decisão monocrática em que assinalou:

O acórdão impugnado pelo recurso especial foi publicado em data anterior à publicação da Emenda Constitucional nº 125, não se aplicando ao caso o requisito de admissibilidade por ela inaugurado, ou seja, a demonstração da relevância das questões de direito federal infraconstitucional.

No mesmo sentido, AgInt no AREsp 2.097.823 (DJE 05/08/2022):

O acórdão impugnado pelo recurso especial foi publicado na vigência do Código de Processo Civil de 1973 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ) e, portanto, em data anterior à publicação da Emenda Constitucional nº 125.

Não obstante se tratar de decisões monocráticas que não exigiram o critério da relevância para o recurso especial, a interpretação extraída é que se o acórdão tiver sido publicado após o dia 15 de julho de 2022, há uma tendência de que o STJ exija a demonstração do novo requisito. Tal postura, apesar de não parecer ser a melhor interpretação pelos motivos já apresentados, não surpreende diante da prática reiterada do STJ de aplicação da jurisprudência defensiva quanto à admissibilidade do recurso excepcional.

Assim, por precaução e apego à argumentação, cabe ao recorrente, ao redigir um recurso especial, abrir uma preliminar [6] sobre a relevância da questão federal, em que se defende a não aplicabilidade imediata do requisito, mas, na eventualidade de o STJ entender ser necessária a demonstração da relevância, passar a demonstrá-la no caso concreto.

Sobre as hipóteses de relevância, sabe-se que o §3º do artigo 105 CF/88 elencou um rol de questões presumidamente relevantes: ações penais; ações de improbidade administrativa; ações que possam gerar inelegibilidade; ações cujo valor da causa ultrapasse 500 salários mínimos, havendo autorização expressa no artigo 2º da EC 125/2022 para a parte atualizar o valor da causa para esta finalidade; quando o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante o STJ; e outras hipóteses a serem previstas em lei.

Além disso, há a possibilidade de que outras questões possam ser a ser consideradas relevantes pelo STJ, exigindo-se, para tanto, um maior ônus argumentativo do recorrente. Falar sobre as escolhas do constituinte reformador quanto às presunções de relevância e o ônus argumentativo fora de tais hipóteses, entretanto, extrapola os limites deste pequeno ensaio, e poderá ser objeto de futuras reflexões.


[1] Sobre o tema, veja-se o ensinamento de Leonardo Carneiro da Cunha: "Tal exigência, não é demais repetir, depende de regulamentação expressa, em lei própria, a ser aprovada oportunamente. O STJ não pode inadmitir recurso especial por falta de relevância, sem que haja a lei regulamentadora. Não se pode dizer que a regulamentação se faz necessária apenas para exigir do recorrente a formalidade de arguir a relevância da questão em seu recurso. Se ele ainda não tem o ônus de argumentar, o tribunal ainda não pode também decidir. Permitir que o tribunal já decida a esse respeito, sem que o recorrente tenha o ônus de arguir, viola, agride, ofende diretamente o princípio do contraditório". Reflexões sobre a relevância das questões de direito federal em recurso especial. https://www.conjur.com.br/2022-jul-23/carneiro-cunha-relevancia-questoes-direito-federal-resp Acesso em 01 ago 2022.

[2] Apesar de a EC 125 falar em "recursos interpostos" a partir da sua vigência, caso se entenda pela aplicabilidade imediata do requisito, a única solução possível é considerar para os recursos especiais interpostos em face dos acórdãos publicados após essa data. Trata-se de entendimento já adotado pelo STJ, por exemplo, quando da vigência do CPC/2015, conforme Enunciados Administrativos nº 2 e 3.

[3] Sobre o tema, conferir: CUNHA, Leonardo Carneiro da. Relevância das questões de direito federal em recurso especial e direito intertemporal. https://www.conjur.com.br/2022-jul-16/cunha-direito-federal-recurso-especial-direito-intertemporal#:~:text=De%20acordo%20com%20o%20%C2%A7,interpostos%20depois%20de%20sua%20vig%C3%AAncia. Acesso em 01 ago 2022.

[4] A redação inicialmente aprovada pelo Congresso Nacional era: Artigo 1.030. Recebida a petição do recurso pela secretaria do tribunal, o recorrido será intimado para apresentar contrarrazões no prazo de 15 (quinze) dias, findo o qual os autos serão remetidos ao respectivo tribunal superior. Parágrafo único. A remessa de que trata o caput dar-se-á independentemente de juízo de admissibilidade.

[5] https://www.stj.jus.br/publicacaoinstitucional/index.php/Bolesta/article/view/12572/12668 Acesso em 15 ago 2022

Para melhor compreensão, veja-se a tabela elaborada com os dados extraídos do STJ.

[6] O STF entender ser necessário abrir uma preliminar para alegação/demonstração da repercussão geral da matéria. Caso não seja inserida a preliminar, há vício formal no recurso extraordinário. Veja-se, a título exemplificativo: ARE 951361 AgR, relator (a): CÁRMEN LÚCIA (Presidente), Tribunal Pleno, julgado em 02/12/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-267  DIVULG 15-12-2016  PUBLIC 16-12-2016; ARE 1249097 AgR, relator (a): EDSON FACHIN, Segunda Turma, julgado em 27/03/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-107  DIVULG 30-04-2020  PUBLIC 04-05-2020

Autores

  • é mestre em Direito pela UFPE, especialista em Direito Processual Civil e em Direito Civil, professora na graduação e pós-graduação da Faculdade Damas da Instrução Cristã e cursos jurídicos, defensora pública federal e coordenadora da Câmara de Coordenação e Revisão Cível da Defensoria Pública da União.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!