Opinião

Reflexões sobre a relevância das questões de direito federal em recurso especial

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23 de julho de 2022, 7h09

O recurso especial passará a ter, depois de regulamentação expressa em lei, um requisito de admissibilidade previsto no §2º do artigo 105 da Constituição. No recurso especial, o recorrente deverá, nos termos da lei, demonstrar a relevância das questões de direito federal discutidas no caso.

Tal exigência, não é demais repetir, depende de regulamentação expressa, em lei própria, a ser aprovada oportunamente. O STJ não pode inadmitir recurso especial por falta de relevância, sem que haja a lei regulamentadora [1]. Não se pode dizer que a regulamentação se faz necessária apenas para exigir do recorrente a formalidade de arguir a relevância da questão em seu recurso. Se ele ainda não tem o ônus de argumentar, o tribunal ainda não pode também decidir. Permitir que o tribunal já decida a esse respeito, sem que o recorrente tenha o ônus de arguir, viola, agride, ofende diretamente o princípio do contraditório.

Não é sem razão, aliás, que não se pode decidir sobre questão a respeito da qual a parte não teve oportunidade de se manifestar (CPC, artigo 10). E não se pode exigir da parte que demonstre um requisito de admissibilidade que depende de regulamentação legal. Sem a regulamentação legal, não há diretrizes, padrões nem exigências a serem observadas.

O §3º do artigo 105 da Constituição prevê casos em que há presunção de relevância. Também não se pode dizer que tal disposição já está em vigor. Nenhum recurso especial pode já ser examinado a partir da exigência de relevância. Não faz sentido dizer que o recorrente já deve, antes mesmo da lei, afirmar que seu caso está entre os do §3º do artigo 105 da CF, pois a relevância é presumida para todos os casos. Não se pode, ainda, examinar, sem lei, a falta de relevância, nem se deve, sem lei, exigir qualquer ônus para a parte recorrente.

Ainda não há a regulamentação legal, mas já é possível fazer algumas reflexões sobre a relevância das questões de direito federal, inclusive de lege ferenda

Qualquer questão federal pode ser considerada relevante ou não, sem limitação de matéria. A questão a ser considerada relevante pela turma pode ser de direito material ou de direito processual. A lei a ser editada não pode limitar  ou previamente excluir  determinadas matérias da relevância, sob pena de manifesta inconstitucionalidade, não somente por atentar contra o acesso à justiça, mas também por impedir que o STJ exerça sua função constitucional de conferir sentido e interpretar toda a legislação federal.

É bem provável que os critérios a serem eleitos pela lei assemelhem-se aos que são adotados para a repercussão geral, estabelecendo-se a relevância econômica, a política, a social e a jurídica, com ampla fluidez de sentido, a exigirem esforço argumentativo para o seu preenchimento. Tais critérios não restringiriam a relevância da questão federal a determinada matéria, apenas estabelecendo balizas ou diretrizes, genéricas e abstratas, para sua aferição em cada caso concreto. Nada impede, aliás, que outros critérios sejam utilizados, a exemplo de relevância educacional, científica, sanitária ou, até mesmo, risco para direitos fundamentais.

Enfim, os critérios legais para presença da relevância deverão ser amplos, alcançando toda a legislação federal, sem restrição de matéria ou área.

Por outro lado, a lei regulamentar poderá criar hipóteses de presunção de relevância, como permite o inciso VI do §3ª do artigo 105 da Constituição. Para tanto, poderá se valer dos mais variados critérios. Aliás, o §3º já se valeu de critérios distintos: por exemplo, ao garantir a presunção de relevância nas ações penais e de improbidade administrativa, o critério adotado foi a matéria debatida, que envolve restrição de direitos fundamentais; ao garantir a presunção de relevância nas ações cujo valor da causa supere 500 salários mínimos, o critério adotado foi econômico.

Assim, a lei regulamentadora poderá garantir a presunção de relevância pelo critério temático, por exemplo, quando a demanda envolver direitos da personalidade, ressarcimento ao Erário, tutela da criança e do adolescente, bem como ações de estado. Também se pode adotar o procedimento como critério, a exemplo das ações coletivas e ações de interdição. O critério poderá ser subjetivo, quando, por exemplo, envolver indígenas, quilombolas, organismos internacionais e estados estrangeiros [2].

Seria até fundamental que a lei regulamentar aperfeiçoasse a hipótese prevista no inciso V do §3º do artigo 105 da Constituição para esclarecer o significado do termo "jurisprudência dominante", conferindo-lhe coerência sistêmica. A adoção do termo "jurisprudência dominante" é um problema e causa uma fissura no sistema. Fixada uma tese em recurso repetitivo (CPC, artigo 927, III), o recurso especial que a contrarie terá seu seguimento negado pelo presidente ou vice-presidente do tribunal de origem (CPC, artigo 1.030, I, b). O recurso especial que ficou sobrestado durante a afetação dos recursos representativos da controvérsia, se estiver de acordo com a tese neles fixada, deve provocar a adequação do acórdão recorrido pelo próprio tribunal de origem (CPC, artigo 1.030, II).

A presunção de relevância não deve decorrer de uma "jurisprudência dominante", mas da existência de algum precedente obrigatório sobre o tema. A lei regulamentadora do §2º do artigo 105 da Constituição faria bem se esclarecesse que "jurisprudência dominante" significa qualquer uma das hipóteses previstas nos incisos III a V artigo 927 do CPC, afastando, assim, o anacronismo da emenda constitucional e mantendo coerência do sistema de justiça brasileiro.

O §3º do artigo 105 da Constituição permite, em seu inciso VI, que a lei regulamentadora crie outras hipóteses de presunção de relevância. O próprio §3º do artigo 105 da Constituição prevê que há presunção de relevância quando o valor da causa for superior a 500 salários mínimos. A lei a ser editada, ao regulamentar a hipótese, pode  e é até recomendável que o faça  estabelecer que o valor da causa deve ser atualizado no momento da interposição do recurso especial, devendo ser considerado o equivalente em tal instante processual, e não o valor da causa originário, sem correção monetária.

Também pode a lei regulamentadora eleger o valor da condenação ou o valor do proveito econômico como outro critério de presunção da relevância, prevendo que a partir de determinado montante da condenação ou do proveito econômico, e não apenas do valor da causa, haveria relevância da questão federal. É frequente observar que muitos casos têm valor da causa módico, mas, depois da condenação ou da liquidação, se percebe que sua repercussão econômica ou financeira é bem maior, devendo ser admitido o recurso especial.

Quanto ao procedimento, também é possível já fazer algumas reflexões imediatas.

O novo dispositivo prevê o ônus do recorrente de demonstrar "a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso", a fim de que a "admissão do recurso seja examinada pelo Tribunal, o qual somente pode dele não conhecer com base nesse motivo pela manifestação de 2/3  dos membros do órgão competente para o julgamento".

O quorum qualificado é para considerar que a questão não tem relevância. Há, portanto, uma presunção em favor da exigência da relevância.

Em outras palavras, somente o STJ poderá dizer que não há relevância da questão federal, não podendo o presidente ou vice-presidente do tribunal local fazer essa análise. É da apreciação exclusiva do STJ dizer que não há relevância da questão federal. Quanto a isso não há dúvida. Dessa forma, não é possível que o relator, no STJ, inadmita, monocraticamente, o recurso, por não reputar relevante a questão discutida, sem necessidade de remeter os autos à turma. Somente a turma, por votação qualificação, de 2/3 dos seus membros, é que pode deixar de admitir o recurso especial.

A análise da relevância da questão federal pressupõe que o recurso especial tenha preenchido os demais requisitos gerais de admissibilidade (tempestividade, legitimidade recursal, interesse etc.). Se o recurso for tempestivo, houver legitimidade, interesse e se estiverem presentes os demais requisitos de admissibilidade, ele pode ser examinado.

Embora ainda dependa da legislação regulamentar e, também, da posterior adequação do regimento interno do STJ, já se pode observar que o exame da relevância da questão federal não deva ocorrer em sessão exclusiva para seu julgamento, como se dá com a repercussão geral e a afetação de recursos repetitivos. O exame da relevância, dos demais requisitos de admissibilidade e do mérito do recurso deve ocorrer conjuntamente, em julgamento abrangente, resultando em apenas um acórdão.

Portanto, no julgamento do recurso especial, haverá quóruns deliberativos diversos: para afastar a relevância da questão, exige-se quórum de 2/3, mas o julgamento das demais questões depende de maioria simples, sem qualquer maioria qualificada. É preciso, portanto, haver colheita específica de votos para a relevância da questão, separada dos votos relativos aos demais pontos do recurso [3].

Se a turma do STJ entender que a questão federal não tem relevância, o recurso não será admitido. A partir daí, qualquer integrante da turma, mas só da própria turma, poderá, como relator, inadmitir, monocraticamente, recursos especiais que veicularem a mesma questão federal. No âmbito daquela turma, os recursos especiais que contenham aquela questão federal passam a ser inadmissíveis, atraindo a aplicação do artigo 932, III, do CPC.

A relevância da questão federal no recurso especial difere da repercussão geral no recurso extraordinário. Neste, é o plenário do STF que deve afirmar se há ou não repercussão geral, somente podendo recusá-lo pela manifestação de 2/3 de seus membros. No caso do recurso especial, a decisão que lhe nega a relevância é da turma do STJ, que não produz precedente obrigatório. Desse modo, mesmo depois do acórdão de turma do STJ que entenda não haver relevância da questão federal, não será possível ao presidente ou vice-presidente dos tribunais de origem negar seguimento a recurso especial, até porque – internamente – as turmas do STJ podem divergir entre si. A relevância da questão federal não tem a mesma dimensão da repercussão geral.

A relevância da questão federal em recurso especial também difere da transcendência no recurso de revista (CLT, artigo 896-A). No TST, poderá o relator, monocraticamente, inadmitir o recurso de revista que não demonstrar transcendência (CLT, artigo 896-A, §2º). É um requisito de admissibilidade examinável, desde logo, pelo próprio relator. A relevância da questão federal no recurso especial, por sua vez, não é assim: não pode, desde logo, ser examinada, monocraticamente, pelo relator, devendo ser objeto de análise da turma, que somente poderá afastá-la por quórum qualificado de 2/3 de seus membros. Se, porém, a turma já tiver reconhecido a falta de relevância, o relator, desde que integre a mesma turma, poderá, nos casos sucessivos, inadmitir o recurso especial (CPC, artigo 932, III). É que já se terá o entendimento da turma, podendo o relator reproduzi-lo, cabendo à parte recorrer por agravo interno.

A decisão que deixa de reconhecer relevância da questão federal em recurso especial é de turma. Imagine-se que uma das turmas do STJ não reconheça a relevância da questão federal, mas outra reconheça. Nesse caso, surge uma questão a ser enfrentada: caberão embargos de divergência para que uma seção ou a corte especial defina se há ou não relevância da questão?

No STJ, os embargos de divergência, previstos no artigo 1.043 do CPC, cabem de decisão de turma que, em recurso especial, divergir do julgamento de qualquer outro órgão do mesmo tribunal, sendo os acórdãos, embargado e paradigma, de mérito, ou, sendo um acórdão de mérito e o outro que não tenha conhecido do recurso, embora tenha apreciado a controvérsia.

Quer isso dizer que não cabem embargos de divergência contra acórdão de turma que inadmite o recurso especial. Aliás, segundo o entendimento da Corte Especial do STJ, não "seria possível a oposição de embargos de divergência contra acórdão que não conheceu de recurso especial em virtude da ausência de requisito de admissibilidade" [4]. Realmente, "os embargos de divergência não configuram a via adequada para discutir a aplicação de regra técnica de admissibilidade do recurso especial" [5].

Nesse contexto, é importante refletir se a legislação regulamentar não deveria alterar o CPC, para permitir o cabimento de embargos de divergência quando as turmas do STJ divergirem quanto à relevância de determinada questão federal, para evitar que o novo filtro de admissibilidade resulte em distorções no tratamento igualitário ao jurisdicionado.

Tudo o que foi dito até aqui se aplica igualmente ao agravo em recurso especial, previsto no artigo 1.042 do CPC. Caso o recurso especial seja inadmitido no tribunal de origem, com base no artigo 1.030, V, do CPC, cabe o agravo dirigido ao STJ. Se o agravo for provido, o conhecimento do recurso especial obviamente ainda dependerá do exame e da presença da relevância da questão federal.

Essas são, enfim, algumas reflexões iniciais sobre o procedimento relativo ao reconhecimento da ausência de relevância da questão federal em recurso especial.


[1] CUNHA, Leonardo Carneiro da. Relevância das questões de direito federal em recurso especial e direito intertemporal. ConJur. Aqui.

[2] Nas ações propostas por pessoa residente no Brasil ou Município contra Estado estrangeiro, cabe recurso ordinário (CF, artigo 105, II, c), mas é possível que, em recurso especial, haja alguma discussão que envolva questão de direito relacionada a Estado estrangeiro.

[3] Sobre o ponto, é relevante perceber a importância de uma teoria analítica da demanda recursal, tal como explicada por MACÊDO, Lucas Buril de. Objeto dos recursos cíveis. Salvador: JusPodivm, 2019, nº 6.3, p. 376-379.

[4] STJ, Corte Especial, relator ministro Og Fernandes, AgInt nos EREsp 1.848.832/RO, DJe 25.8.2021.

[5] STJ, Corte Especial, relator ministro Jorge Mussi, AgInt nos EAREsp 1.223.026/SP, DJe 14.2.2022.

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