Tribuna da Defensoria

Especial importância conferida à vítima e o princípio da presunção de inocência

Autor

  • Jaime Leônidas Miranda Alves

    é defensor Público do Estado de Rondônia. Ex-defensor público do Amapá mestrando em Direito pela Univali (Universidade do Vale do Itajaí) professor universitário. especialista em Direito Público pela PUC-MG (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais) e em Direito Constitucional pela Ucam (Universidade Cândido Mendes).

23 de agosto de 2022, 8h00

Imagine o seguinte cenário:
Ação penal para apuração de suposta lesão corporal no contexto da violência doméstica. No curso da ação penal, a vítima confirma apenas parcialmente os fatos narrados na denúncia, havendo certa divergência com seu depoimento na fase policial. Não foram arroladas testemunhas, apesar da indicação, pela vítima, da sua existência. No interrogatório, o réu nega a prática delitiva. Seu depoimento também encontra divergências daquilo que falou na delegacia. Em relação ao laudo pericial, este não contribui muito para a elucidação do caso, estando em parcial concordância com ambos os relatos (da vítima e do réu).

Se esse relato fosse mostrado em sala de aula (para graduandos ou pós-graduados em sentido lato ou estrito), a resposta esmagadora provavelmente seria de que o réu deve ser absolvido, tendo em vista a ausência de confirmação dos fatos narrados na denúncia.

De outro norte, a prática ensina que casos análogos a esse recebem uma resposta diversa do sistema de justiça.

O assunto é delicado e merece ser tratado com seriedade.

Na hipótese de delitos cometidos num contexto de violência doméstica e familiar, a jurisprudência pacificou o entendimento de que a palavra da vítima possui especial importância. A decisão é acertada. Como regra, os crimes praticados no contexto da violência doméstica familiar são praticados às escusas, isto é, longe de testemunhas, sendo a palavra vítima, muitas vezes, o único elemento probatório a contrapor a autodefesa.

Num país extremamente machista, com altos índices de delitos praticados contra mulheres por questões de gênero feminino, não há como negar a importância de se conceder, de fato, à palavra da vítima, um peso maior.

Esse peso maior, contudo, não pode ser confundido com valor absoluto.

A palavra da vítima, por si só, não pode ser suficiente para fins de condenação criminal e, havendo qualquer dúvida, por menor que seja, deve o réu ser absolvido.

A prática forense mostra uma dificuldade em se reconhecer o in dubio pro reo no processamento de delitos praticados no contexto da violência doméstica familiar, como se a palavra da vítima fosse suficiente a suplantar e afastar, de maneira absoluta, esse metaprincípio do direito penal.

É um equívoco.

A maior importância à palavra da vítima significa, de fato, que, nesse contexto, diminui-se o standard probatório. Significa que se exige prova menos robusto (ou com menos qualidade) para que, ao final, possa o juiz condenar.

Isso não significa que não há presunção de inocência. A presunção de inocência ilumina o processo penal de tal forma que é capaz de afastar a palavra da vítima, ainda que de crime praticado no contexto da Lei 11.340/2006.

E esse é o cerne dessa reflexão: não é sempre que a palavra da vítima tem valor preponderante. Para que o especial relevo seja considerado no caso concreto é necessário que se observe alguns requisitos:

1) A palavra da vítima não pode ser isolada: deve estar acompanhada de elementos (indiciários ou de prova) que atestem a sua veracidade;

2) A palavra da vítima não pode ser contraditória com os demais elementos dos autos: havendo dissonância entre a palavra da vítima e os demais elementos indiciários ou de prova (ex.: laudo pericial ou depoimento de testemunhas), não há que se falar em supremacia da palavra da vítima. Havendo divergência entre o depoimento da vítima e da testemunha, deve-se atentar para o fato de que a testemunha é quem presta compromisso de dizer a verdade e a vítima, por presunção legal, é pessoa com interesse na causa.

3) A palavra da vítima não pode ser contraditória com si mesma: a vítima, como regra, fala em dois momentos. Primeiro no depoimento na Delegacia e, após, diante do Juiz. Caso haja contradições entre os depoimentos, deve-se afastar o maior valor conferido à palavra da vítima.

4) Não pode haver desídia da acusação: é a perda de uma chance probatória! Podendo produzir um arcabouço robusto, não pode o MP se satisfazer com pouco e pleitear uma condenação alegando que a palavra da vítima tem especial valor.

Esses são baluartes que, caso sejam levados a sério, possibilitam decisões mais seguras, seja para condenar ou para absolver.

Para além disso, são parâmetros que não colocam em segundo plano o especial relevo da palavra da vítima, mas, noutro giro, possibilitam a sua convivência harmoniosa com a presunção de inocência que, alguns podem ter se esquecido, mas tem aplicação até mesmo em delitos cometidos no contexto da violência doméstica e familiar.

Autores

  • é defensor público do estado de Rondônia, ex-defensor público do estado do Amapá, mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí e membro da Comissão sobre Política Criminal da Anadep.

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