Opinião

ICMS educacional e responsabilidade administrativa

Autor

  • Mário Augusto Silva Araújo

    é advogado mestre em Constituição e Garantia de Direitos e Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e professor de Direito Administrativo e Financeiro.

23 de agosto de 2022, 21h24

A teria da jurisdição constitucional, balizada pelo estudo da história do direito, ensina que os direitos sociais são uma reação da sociedade à primeira fase do estado de direito, marcado pelo caráter liberal oriundo da revolução francesa, que se caracteriza pela atuação estatal balizada por normas previamente prescritas, afastando o juízo arbitrário de quem exerce a titularidade do poder.

Em um primeiro momento depois daquela ruptura da ordem até então vigente, a preocupação da sociedade era de que o Estado não interferisse na vida das pessoas e aquela sede de liberdade deu azo à construção do pensamento liberal, caracterizado pela não intervenção do estado.

Contudo, o tempo demonstrou que o absenteísmo estatal provoca desigualdades porque a concentração de riqueza sob o domínio de alguns não consegue promover um caráter equitativo em relação à justiça e é incapaz, portanto, de promover o bem de todos.

Dessa maneira, houve um clamor social por uma intervenção estatal no sentido de promover ações aptas a fomentarem o desenvolvimento da sociedade em uma perspectiva de equidade: auxiliar os menos favorecidos em relação ao acesso à renda.

Aquela pretensão provocou uma mudança do pensamento político que culminou em uma ruptura da estrutura ideológica e trouxe à tona uma mudança brusca em relação à atuação estatal: o pensamento liberal, de não intervenção, deu lugar ao estado social, em que a administração pública possui um forte protagonismo de atuação no desenvolvimento do sujeito, caracterizado pela predominância dos direitos sociais.

Os direitos sociais, portanto, possuem natureza jurídica de obrigações de fazer, razão pela qual são intitulados de direitos fundamentais obrigacionais e possuem como principal característica a busca pela solidariedade.

Sobre o tema eis o que prescreve Jorge Miranda: "Nos direitos sociais, parte-se da verificação da existência de desigualdades e de situações de necessidade — umas derivadas das condições físicas e mentais das próprias pessoas, outras derivadas de condicionalismos exógenos (econômicos, sociais, geográficos, etc.)  e da vontade de as vencer para estabelecer uma relação solidária entre todos os membros da mesma comunidade política […] Os direitos sociais são direitos de libertação da necessidade e, ao mesmo tempo, direitos de promoção. O escopo irredutível daqueles é a limitação jurídica do poder, o destes é a organização da solidariedade" [1].

Como se vê, Jorge Miranda tem um pensamento em que defende os direitos sociais como natureza jurídica de solidariedade. É ideia mais ampla do que escreve José Afonso da Silva no sentido de obrigação de fazer. Ao capitular solidariedade aos direitos sociais, Miranda amplia sua carga valorativa.

Mais ainda: a solidariedade prescrita por Miranda possui interpretação transversal entre fundamento da república (cidadania e dignidade da pessoa humana), e objetivo fundamental (erradicar pobreza, desigualdade social e promoção do bem de todos).

Contudo, um fator chama atenção: É a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (artigo 3º, inciso I da Constituição Federal). É preciso registrar que o conceito de liberdade envolve a oferta de políticas públicas que possibilitem o desenvolvimento das pessoas, como é o direito à educação, prescrito pelo artigo 11 da declaração dos direitos do homem e do cidadão (1789).

Inclusive a ideia de Jorge Miranda de que os direitos sociais são direitos à libertação e promoção do ser, proporciona o entendimento de que a impossibilidade de acesso ao direito à educação, como direito fundamental social, impede o desenvolvimento pleno do sujeito.

O direito à solidariedade pavimenta a arquitetura de que a ordem jurídica deve garantir estrutura apta a moldurar situações em que o indivíduo tenha uma resposta concreta do Estado. Existe, portanto, um direito subjetivo que resulta em uma legitimidade inata ao sujeito.

Caso contrário, esse tipo de restrição limita a vida em sociedade e o gozo pleno dos direitos políticos: como pode o cidadão ter sua capacidade cognitiva plenamente desenvolvida se não consegue se quer escrever, garantia fundamental possibilitada pela declaração universal dos direitos do homem e do cidadão, marco do Estado de direito, ainda em 1789?

Para Amartya Sen a liberdade política permite a participação no processo de tomada de decisão e restringi-la é prejudicial ao engajamento social do indivíduo: "essas privações restringem a vida social e política, e devem ser consideradas repressivas mesmo sem acarretar outros males (como desastres econômicos). Como as liberdades políticas e civis são elementos constitutivos de liberdade humana, sua negação é, em si, uma deficiência. Ao examinarmos o papel dos direitos humanos no desenvolvimento, precisamos levar em conta tanto a importância constitutiva quanto a importância instrumental dos direitos civis e liberdade políticas" [2].

Embora o direito à educação esteja moldurado pelo artigo 6º, caput, da Constituição Federal, a educação brasileira possui topografia constitucional específica entre os artigos 205 e 214 da Constituição Federal e a constituição educacional prevê instrumentos de planejamento, como é o plano nacional de educação, ferramenta estratégica com os seguintes eixos, prescritos pelo art. 214: a) erradicação do analfabetismo; b) universalização do atendimento escolar; c) melhoria da qualidade do ensino; d) formação para o trabalho; e) promoção humanística, científica e tecnológica do país; e, f) estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do produto interno bruto.

Todavia, aquelas medidas requerem o investimento de recursos públicos, o que permite a afirmação de que há um caráter consumista que caracteriza o direito à educação.

Ciente disso, o artigo 212 da Constituição Federal, estabelece garantia mínima da aplicação vinculada de 18% dos impostos da União em ações de manutenção e desenvolvimento do ensino, enquanto os Estados, Distrito Federal e Municípios, devem alocar no mínimo 25% daquela fonte de receita derivada.

Por outro lado, o artigo 212-A também estabelece outra fonte de financiamento específica à educação: o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), que objetiva destinar parte dos recursos previstos do artigo 212, caput, à manutenção e ao desenvolvimento do ensino na educação básica e à remuneração condigna de seus profissionais.

Ainda sobre financiamento da educação brasileira, consta no artigo 34, inciso VII, alínea "e" da Constituição, que é possível a intervenção federal para garantir a aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino.

Como se vê, a lógica da engenharia orçamentária do financiamento da educação pública brasileira denota um componente específico no sentido de que o legislador se preocupa em não limitar o direito à educação como algo estático à espera da discricionariedade alocativa do gestor público. Não é mera norma de natureza programática.

Não bastasse isso, recentemente, nos termos da emenda constitucional nº 108/2020, o constituinte derivado optou por priorizar uma estrutura de planejamento alocativo com ênfase na prioridade orçamentária destinada à garantia do custeio daquele tipo de política público voltada especificamente para o âmbito municipal.

Para isso alterou a matriz do federalismo fiscal correlato à repartição de receitas, especificamente na estrutura do Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS).

Até então a repartição daquela fonte de recursos era normatizada pelo artigo 158, inciso IV da Constituição:

"Artigo 158. Pertencem aos municípios:
[…]
IV – 25% do produto da arrecadação do imposto do Estado sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação."

A partir da Emenda Constitucional nº 108/2020, sobreveio a seguinte estrutura de parágrafo único aquele artigo:

"Artigo 158. Omissis
[…]
Parágrafo único. As parcelas de receita pertencente aos Municípios mencionadas no inciso IV, serão creditadas conforme os seguintes critérios:
I – 65%, no mínimo, na proporção do valor adicionado nas operações relativas à circulação de mercadorias e nas prestações de serviços, realizadas em seus territórios;
II – até 35%, de acordo com o que dispuser lei estadual, observada, obrigatoriamente, a distribuição de, no mínimo, dez pontos percentuais com base em indicadores de melhoria nos resultados de aprendizagem e de aumento da equidade, considerado o nível socioeconômico dos educandos."

Do que se lê, 10% daqueles recursos deve ser destinado, conforme dispuser lei estadual, aos municípios "com base em indicadores de melhoria nos resultados de aprendizagem e de aumento da equidade, considerado o nível socioeconômico dos educandos".

Entretanto, a natureza jurídica daquele dispositivo possui eficácia limitada, o que, no entendimento de José Afonso da Silva, incumbe ao "legislador ordinário a complementação do que foi iniciado, segundo a forma, os critérios, os requisitos, as condições e as circunstâncias previstos na mesma norma. Conforme já observamos, essas normas deixam menor ou maior campo à atuação discricionária do legislador ordinário, mas sempre há um mínimo que um poder mais elevado  o constituinte  quer ver atendido; quando mais não seja, abre-se, ao menos, uma possibilidade para o órgão legislativo atuar de certa forma […] São, pois, normas constitucionais de princípio institutivo aquelas através das quais o legislador constituinte traça esquemas gerais de estruturação e atribuições de órgãos, entidades ou institutos, para que o legislador ordinário os estruture em definitivo, mediante lei" [3].

Como o ICMS é de competência legislativa dos Estados, aqueles entes federados devem regulamentar a distribuição dos recursos para os respectivos municípios e em que pese aquela norma possuir natureza de eficácia limitada, o artigo 3º da Emenda Constitucional nº 108/2020 delimita como termo para a regulamentação a data de 26 de agosto de 2022.

Vale lembrar que a não regulamentação da matéria pelo Estado impede o repasse de recursos à educação aos Municípios, clara intenção do legislador constituinte, e aquela omissão legislativa deve ser reprimida via ação direta de inconstitucionalidade por omissão.

Além disso, como eventual inércia do ente estadual impossibilita o recebimento de receitas por parte dos municípios conforme dispõe o texto constitucional, aquele comportamento absenteísta pode ensejar responsabilização administrativa.

Isso porque dispõe a lei complementar nº 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal  LRF) que a responsabilidade na gestão fiscal pressupõe ação planejada e transparente em que "se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas" (artigo 1º, §1º).

Ademais, como o artigo 11 daquele normativo dispõe que um dos requisitos essenciais da responsabilidade da gestão fiscal é a plena arrecadação, a omissão normativa que impeça a regulamentação do ICMS educacional pode ser fato para eventual responsabilização do gestor em relação ao parecer prévio das contas anuais, por exemplo, porquanto impede a efetiva distribuição de recursos educacionais para os municípios.

A título de exemplificação, recentemente o Tribunal de Contas do Estado do Amazonas emitiu um termo de alerta ao Poder Executivo Estadual com o seguinte verbete: "ALERTAR o Chefe do Poder Executivo do Estado do Amazonas para adoção de providências quanto à edição de Lei Estadual que regulamente o disposto no art. 158, parágrafo único, II, da CF/88, com a redação dada pela EC nº 108/2020, de modo a disciplinar o chamado ICMS Educacional, ou seja, os 10% do ICMS repartidos com os Municípios que devem ser distribuídos com base em indicadores de melhoria nos resultados de aprendizagem e de aumento da equidade, considerado o nível socioeconômico dos educandos, observando que o prazo-limite estabelecido pela EC nº 108/20 finaliza em 26/08/2022" [4].

Em síntese, a respeito de possível responsabilização, o TCE-AM apresenta como argumento jurídico o artigo 9, §1º, inciso V da lrf, o qual prescreve que os tribunais de contas alertarão os poderes quando constatarem "fatos que comprometam os custos ou os resultados dos programas ou indícios de irregularidades na gestão orçamentária".

Aquele argumento vai ao encontro do artigo 1º, §1º e artigo 11, caput, da lei de responsabilidade fiscal, sendo, pois, um projeto básico para o direito administrativo sancionador, caso o Poder Executivo Estadual permaneça inerte quanto à regulamentação do ICMS educacional.

Como se vê, o direito à educação é uma garantia do próprio estado de direito, que deve promover a liberdade do pensamento, tão fundamental para o desenvolvimento do ser, por intermédio do financiamento do direito à educação, para que o cidadão possa aprender a escrever (artigo 11 da declaração universal dos direitos do homem e do cidadão).

Dessa maneira, o ICMS educacional é um aporte específico de verbas com ênfase na efetividade de políticas públicas para os municípios, dialoga com as diretrizes do atual plano nacional de educação (artigo 2º, incisos II e III da lei 13.005/2014) e é claro exemplo de justiça social com base no estabelecimento de estratégia alocativa de recursos públicos.

Sua regulamentação pelos estados, portanto, se faz urgente até 26 de agosto de 2022, sob pena de responsabilização administrativa balizada pelas premissas da lei de responsabilidade fiscal.

Referências bibliográficos
MIRANDA, Jorge. O regime dos direitos sociais. Revista de Informação Legislativa. Brasília a.47, nº 188 out/dez 2010
SEN, Amartya. Companhia das letras. 8ª reimpressão. Desenvolvimento como liberdade
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. Malheiros Editores. 4ªedição. São Paulo/SP:2000


[1] MIRANDA, Jorge. O regime dos direitos sociais. Revista de Informação Legislativa. Brasília a.47, n. 188 out/dez 2010. Disponível em https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/47/188/ril_v47_n188_p23.pdf acesso em 15/08/2022

[2] SEN, Amartya. Companhia das letras. 8ª reimpressão. Desenvolvimento como liberdade, p.31

[3] SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. Malheiros Editores. 4ªedição. São Paulo/SP:2000, pp. 125/126

Autores

  • é advogado, mestre em Constituição e Garantia de Direitos, especialista em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e professor de Direito Administrativo e Financeiro.

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