Opinião

Esvaziamento da Teoria do Domínio do Fato nas ações contra prefeitos

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21 de agosto de 2022, 17h08

"(…) qualquer acusação carrega consigo um inegável caráter infamante ao acusado, que será inevitavelmente julgado por seus pares, pela comunidade que o cerca e terá manchada a sua reputação pelo mero fato de estar sendo processado criminalmente" [1].

O presente artigo tem por escopo o debate sobre o uso equivocado da Teoria do Domínio do Fato nas acusações genéricas, sem justa causa, oferecidas pelo Ministério Público contra prefeitos por crimes contra a Administração Pública e atos de improbidade administrativa, sob a justificativa falaciosa e sem respaldo jurídico de que a simples posição hierárquica de comando faz do gestor ciente e envolvido nos fatos delituosos e ímprobos. Nesse caminhar, justa causa, o ônus probatório da acusação e o elemento subjetivo, necessários à imputação criminal e por atos de improbidade, são substituídos pela presunção de responsabilidade. Dessa forma, volta-se à base para não normalizar a barbárie que torna a defesa mera formalidade para a finalidade real nestes processos: condenar.

Desde a Ação Penal 470, conhecida como mensalão, a Teoria do Domínio do Fato ganhou holofotes no Brasil com a sua indevida aplicação pelo Supremo Tribunal Federal, notadamente, ao condenar  José Dirceu por corrupção ativa com base na posição de chefia na Casa Civil. Nesse caso, a Teoria se popularizou no Brasil não pelos brilhantes ensinamentos dos seus autores, mas como uma ferramenta nas mãos da acusação e dos juízes para suprir requisitos processuais e sanar as lacunas probatórias, condenando-se, ao fim, com a esdrúxula frase "é autor, porque tinha o domínio do fato". Na Ação Penal 470, extrai-se de alguns votos que a teoria foi utilizada para presumir a responsabilidade, veja-se:

"Importante salientar que, nesse estreito âmbito da autoria nos crimes empresariais, é possível afirmar que se opera uma presunção relativa de autoria dos dirigentes. Disso resultam duas consequências: a) é viável ao acusado comprovar que inexistia o poder de decisão; b) os subordinados ou auxiliares que aderiram à cadeia causal não sofrem esse juízo que pressupõe uma presunção juris tantum de autoria" [2].

Diante do uso irrefletido da dogmática, importante tecer linhas gerais sobre a Teoria do Domínio do Fato, formulada por Roxin [3]. Em seu estudo monográfico, preocupou-se em compreender a figura do autor como central do acontecer típico [4] e distinguir os papéis de autor e de partícipe na prática do delito, servindo a teoria de aporte metodológico. O domínio do fato, para Roxin, apresenta-se de três formas: 1) Domínio da ação (autoria imediata); 2) Domínio da vontade (autoria mediata) e 3) Domínio funcional do fato. O Domínio da ação refere-se à quem realiza todos os elementos do tipo penal, tratando-se, pois, do autor imediato. O Domínio da vontade ocorre quando o autor vale-se de um terceiro para realizar a ação criminosa, seja pela coação, erro ou domínio da organização; é o sujeito por trás que tem o domínio do fato. O Domínio funcional do fato compreende a coautoria [5].

Assim, não se trata de uma teoria aplicável aos casos concretos de forma irrefletida. Roxin apresenta classificações teóricas que têm o condão de auxiliar o entendimento sobre a condição de autor. Jamais deveria ser utilizada como uma fórmula para preencher requisitos da ação e fundamentar acusações e condenações sem lastro probatório acerca da conduta, do nexo causal, do requisito subjetivo. Saliente-se, inclusive, que Roxin, em entrevista à Folha de S.Paulo, em 21 de novembro de 2012 [6], destacou o óbvio sobre a teoria: a posição hierárquica de comando, tão somente, não pode ser utilizada como fundamento para a condenação, sob pena de mau uso da teoria. A condenação, reforça Roxin, deve estar lastreada em provas.

Nessa linha, em 2017, a 2ª Turma do STF, na Ação Penal nº 975, entendeu que não se admite a invocação da Teoria do Domínio do Fato com o objetivo de "(…) solucionar problemas de debilidade probatória ou a fim de arrefecer os rigores para a caracterização do dolo delitivo, pois tais propósitos estão dissociados da finalidade precípua do instituto" [7]. No mesmo aspecto, o Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp 1854893, rechaçou a aplicação indevida da teoria, que "(…) funciona como uma ratio, a qual é insuficiente, por si mesma para aferir a existência do nexo de causalidade entre o crime e o agente" [8], de modo que é errado assegurar "(…) que um indivíduo é autor porque detém o domínio do fato se, no plano intermediário ligado à realidade, não há nenhuma circunstância que estabeleça o nexo entre sua conduta e o resultado lesivo" [9].

No entanto, continuam comuns, no dia a dia do Sistema de Justiça, acusações genéricas e condenações embasadas na Teoria do Domínio do Fato sem correlação alguma com seus fundamentos teóricos. A teoria tem servido para acusar pessoas que ocupam posições hierárquicas de comando, somente, por essa condição, sem a necessária produção probatória e a comprovação de que agiu o agente com dolo. Especificamente com relação aos prefeitos, tem-se assistido a uma série de acusações, sem justa causa, que imputam fatos criminosos ou ímprobos aos gestores. As narrativas acusatórias presumem, em razão do cargo que ocupam, o conhecimento e a participação dos prefeitos na prática dos crimes contra a Administração Pública e de atos de improbidade administrativa.

Dessa forma, ainda que inocente, o agente que ocupa determinado cargo hierárquico de comando está sob o risco de ser acusado de crimes contra a Administração Pública ou da prática de ato ímprobo por presunção, na contramão de todos os princípios e garantias fundamentais e em completa distorção da Teoria do Domínio do Fato. Esse malabarismo jurídico da acusação vai de encontro ao processo penal democrático, seus princípios e garantias fundamentais. Conforme leciona Lopes, forma é garantia no processo penal [10] e acusar sem suporte probatório mínimo é fato a ensejar imediata rejeição da denúncia ou, no caso do processo seguir seu curso, a absolvição [11].

Para enfrentar a normalização da barbárie nas ações penais e ações de improbidade administrativa [12] com o uso indevido da Teoria do Domínio do Fato, faz-se necessário voltar a algumas bases do Processo Penal e do Direito Penal. O primeiro ponto refere-se à justa causa para a ação penal. Em um segundo momento, traz-se a importância da prova e do ônus probatório da acusação. Ao final, impõe-se relembrar que o elemento subjetivo, nestes casos, deve estar devidamente caracterizado para a imputação de um fato considerado crime ou ímprobo.

A justa causa é uma condição da ação processual penal e refere-se ao suporte probatório mínimo para a propositura da ação penal. Extrai-se deste elemento o dever da acusação de fundamentar suas denúncias nos indícios de autoria e na prova da materialidade. Sua função, na ordem constitucional, portanto, é evitar que acusações temerárias, sem qualquer fundamento e lastro probatório, submetam pessoas à persecução penal e às consequências econômicas, pessoais, morais e sociais inerentes ao Processo Penal. Para Assis Moura, trata-se de um "(…) antídoto, de proteção contra o abuso de Direito" [13].

O artigo 395, inciso III, do Código de Processo Penal prevê que, quando faltar justa causa para o exercício da ação penal, a denúncia ou queixa será rejeitada, tamanha a sua importância contra os abusos do poder de acusar e do poder de punir. Desta forma, não há que se falar em justa causa quando se tem, apenas, a presunção acusatória sobre possível cometimento de crime ou de ato de improbidade administrativa por ser o acusado pessoa que ocupa o cargo de Prefeito, autoridade máxima na estrutura administrativa. A justa causa não se satisfaz com a suposição da materialidade e autoria, sob pena de autorizar o oferecimento de denúncias para a prática de lawfare, que compreende o "uso estratégico do Direito para fins de deslegitimar, prejudicar ou aniquilar um inimigo" [14].

Quanto à prova e ao dever da acusação de provar suas alegações, instaurou-se uma desordem processual nas ações contra os prefeitos, pois não estão sendo apresentados os vestígios concretos do cometimento de determinado crime ou ato ímprobo, mas meras suposições. Como assevera Tavares e Casara, "A prova no processo se destina a informar ao julgador acerca da validade do enunciado proposto na acusação ou no pedido de prestação jurisdicional" [15]. A prova é o que leva ao processo judicial os vestígios do seu objeto (o fato) e fundamenta a cognição. Em um Estado democrático de Direito, a acusação deve apresentar, desde o princípio, os indícios da autoria e a prova da materialidade. Neste sentido:

Enquanto no processo civil, apenas os fatos controversos necessitam ser provados, vale no processo penal, como emanação da máxima instrutória, o princípio segundo o qual todos os fatos, de alguma forma relevantes para a decisão judicial, devem ser provados [16].

A despreocupação acusatória quanto às provas tem tornado o judiciário um campo de batalha, sem regras, destinado a atingir determinadas pessoas ou grupos, contexto típico de lawfare. A denúncia é um momento crucial de observância às garantias constitucionais, não um vale-tudo para a condenação. Não se pode esquecer que, ao se acusar, um processo se inicia contra determinada pessoa, trazendo implicações de ordem pessoal, social, econômica e política. Quando se trata de pessoa pública, a exemplo dos prefeitos, o processo repercute em escalas desproporcionais por meio das mídias e, ainda que o fato narrado na denúncia não seja verídico, não se tenha provas, ou não exista dolo, o que acontece, na prática, é a "presunção de culpabilidade" contra o gestor por parte da opinião pública, que leva, muitas vezes, o judiciário a ceder a essa pressão popular.

Por fim, o último ponto a ser analisado sobre o mau uso da teoria aqui discutida refere-se à necessidade de estar caracterizada a presença do elemento subjetivo. Evidente que não basta a subsunção do fato à norma, é imprescindível que, ao imputar uma conduta criminosa a alguém, apresente-se o elemento anímico. Conforme leciona Meirelles, todos os crimes definidos no Decreto Lei nº 201 de 1967 são dolosos "pelo quê só se tomam puníveis quando o prefeito busca intencionalmente o resultado ou assume o risco de produzi-lo. Por isso, além da materialidade do ato, exige-se a intenção de praticá-lo contra as normas legais que o regem" [17].

De igual forma, para a caracterização da improbidade, diante de normas administrativas sancionadoras, o elemento subjetivo precisa ser devidamente caracterizado. Há que se lembrar que a Lei de Improbidade Administrativa está no âmbito do Direito Administrativo Sancionador, servindo como um braço do poder de punir do Estado. Desta maneira, as garantias constitucionais limitadoras do Direito Penal, também precisam ser salvaguardadas nesta seara. A Lei de Improbidade Administrativa, em seu artigo 1º, §1º, considera que são atos de improbidade administrativa as condutas dolosas e, em seu §3º elucida que "O mero exercício da função ou desempenho de competências públicas, sem comprovação de ato doloso com fim ilícito, afasta a responsabilidade por ato de improbidade administrativa". No entanto, persiste a acusação com as táticas típicas de lawfare, tanto no âmbito penal quanto no administrativo sancionador.

São diversas as garantias constitucionais violadas com uma acusação que não observa os requisitos mínimos para imputar condutas criminosas e de um judiciário que condena com base na presunção de o gestor ter conhecimento sobre um fato criminoso, valendo-se incorretamente de uma teoria estrangeira que não discute questões de prova nem estabelece rearranjos jurídicos para condenar pessoas em posições de hierarquia de comando, quando se sabe que "A teoria do domínio do fato não tem lugar para colmatar a falta de substrato probatório da autoria delitiva" [18] e a conduta criminosa ou ímproba "(…) não pode ser presumida, unicamente, pelo cargo de direção ocupado na época dos fatos, pois a contrario sensu estar-se-ia autorizar a aplicação da vedada responsabilidade penal objetiva" [19].

Pelo exposto, constata-se que o mau uso dessa teoria tem tornado a defesa mera formalidade para a finalidade pretendida desde o início: condenar. É incabível, no ordenamento constitucional vigente, a utilização da Teoria do Domínio do Fato, de tamanha relevância para a dogmática penal, que trata das conceituações e delimitações sobre autor e partícipe, como um argumento abstrato e de autoridade do órgão acusador para oferecer acusações genéricas, sem justa causa e sem a devida caracterização do elemento subjetivo. A referida teoria não se propõe a discutir especificamente sobre o nexo de causalidade ou provas e, ainda que fosse o objetivo, a dogmática penal não tem por finalidade suprir formas e condições legais imprescindíveis para a propositura de ações penais e de improbidade administrativa.

Nesse cenário desolador para a defesa, Coutinho destaca que "é preciso repassar, sempre, os fundamentos; e os fundamentos dos fundamentos, de modo a que se possa ter uma base mais sólida e capaz de sustentar a resistência" [20]. Para tanto, ainda que os direitos e garantias fundamentais estejam presentes no ordenamento jurídico, incumbe àqueles que estão na defesa do Estado democrático de Direito a constante revisão dos fundamentos, por meio dos debates, livros, artigos, das sustentações orais e das peças que devem levantar, muitas vezes, o óbvio: não se pode condenar com base em convicções pessoais.

[1] MARTINS, Cristiano Zanin; MARTINS, Valeska Teixeira Zanin; VALIM, Rafael. Lawfare: uma introdução. Editora Contracorrente, 2019, p. 79.
[2] AP 470, relator(a): JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 17/12/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-074 DIVULG 19-04-2013 PUBLIC 22-04-2013 RTJ VOL-00225-01 PP-00011, STF-fl. 52776-52777.
[3] "(…) apenas em 1963, com o estudo monográfico de Roxin, a ideia teve os seus contornos concretamente desenhados, o que lhe permitiu, paulatinamente, conquistar a adesão de quase toda a doutrina". (GRECO, Luís; LEITE, Alaor. O que é e o que não é teoria sobre o domínio do fato sobre a distinção entre o autor e o partícipe no direito penal. In: Autoria como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. Coleção Direito Penal e Criminologia. São Paulo: Marcial Pons, 2014, pp. 21-22.)
[4] Ibidem.
[5] Ibidem.
[6] DO RIO, Cristina Grillo Denise Menchen. Participação no comando de esquema tem de ser provada. Folha de S. Paulo, 2012. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/77459-participacao-no-comando-de-esquema-tem-de-ser-provada.shtml>. Acesso em: 01 de agosto de 2022.
[7] AP 975, relator(a): EDSON FACHIN, Segunda Turma, julgado em 03/10/2017, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-040  DIVULG 01-03-2018  PUBLIC 02-03-2018.
[8] REsp 1854893/SP, relator ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 08/09/2020, DJe 14/09/2020. Informativo 681 do STJ: "A teoria do domínio do fato não permite, isoladamente, que se faça uma acusação pela prática de qualquer crime".
[9] Ibidem.
[10] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. v. 2.
[11] Na Ação Penal nº 975, na qual se discute a impossibilidade de usar a Teoria do Domínio do Fato para suprir lacunas probatórias, posicionou-se o STF no seguinte sentido: "Não tendo o órgão acusatório se desincumbido do ônus probatório, de forma necessária e suficiente, e não tendo logrado demonstrar, de modo conclusivo, a autoria delitiva, a absolvição é medida que se impõe".
[12] No presente artigo, chama-se atenção para o fato de que as Ações de Improbidade Administrativa, embora não corram na esfera criminal, devem ser norteadas pelos princípios e garantias fundamentais do Direito Penal e Processo Penal. Isso porque, a estigmatização e as consequências (perda de bens e, até mesmo, suspensão dos direitos políticos) causam, sobretudo, danos irreversíveis à reputação dos acusados, que são figuras públicas.
[13] ASSIS MOURA, Maria Thereza Rocha de. Justa Causa para a Ação Penal. São Paulo: RT, 2001, p. 173.
[14] MARTINS, Cristiano Zanin; MARTINS, Valeska Teixeira Zanin; VALIM, Rafael. Lawfare: uma introdução. Editora Contracorrente, 2019, p. 26.
[15] TAVARES, Juarez; CASARA, Rubens. Prova e verdade. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, p. 20.
[16] ROXIN apud TAVARES, Juarez; CASARA, Rubens. Prova e verdade. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, p. 25)
[17] MEIRELLES, Helly Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 16ª edição. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 795.
[18]  AP 987, relator(a): EDSON FACHIN, Segunda Turma, julgado em 25/09/2018, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-046  DIVULG 07-03-2019  PUBLIC 08-03-2019.
19] Ibidem.
[20] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Por Que Sustentar a Democracia do Sistema Processual Penal Brasileiro?. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, n. 14, 2017, p. 1-2.

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