Opinião

Precatório na transação tributária e regime de liquidação estabelecido pela PGFN

Autores

  • Ravi Peixoto

    é doutor em direito processual pela Uerj mestre em Direito pela UFPE procurador do município do Recife professor da Faculdade de Direito do Recife (UFPE) e advogado.

  • Antonio Carlos de Souza Jr.

    é advogado sócio de Queiroz Advogados Associados doutor em Direito Tributário (USP) mestre em Direito (UNICAP) pós-graduação em Direito Tributário pelo IBET/SP professor do Curso de Pós-graduação do IBET membro Fundador da Associação Brasileira de Direito Processual – ABDPro membro da Associação Norte Nordeste de Professores de Processo – ANNEP e presidente da Comissão de Assuntos Tributários da OAB/PE.

20 de agosto de 2022, 9h14

Com a Emenda Constitucional nº 113, de 2021, houve o aumento da autorização para que o titular de créditos líquidos e certos ou adquiridos de terceiros reconhecidos pelo ente federativo ou por decisão judicial transitada em julgado para várias finalidades (artigo 100, §11, CF). Todas as possibilidades listadas pelo artigo 100, §11, são autoaplicáveis para a União, mas, para os demais entes, dependerá de edição de lei própria. Em resumo, a parte pode utilizar o precatório ou direito creditório líquido e certo para várias finalidades, afinal, agora nem a União mantém seus pagamentos em dia. Isso faz com que se torne interessante utilizar aludidos créditos para outras finalidades, pois a principal  receber os valores  tornou-se apenas uma vaga esperança.

Uma possibilidade inovadora está no primeiro inciso do artigo 100, §11, autorizando a "quitação de débitos parcelados ou débitos inscritos em dívida ativa do ente federativo devedor, inclusive em transação resolutiva de litígio". Tal aspecto pode estimular a consensualidade tanto na resolução de litígios envolvendo a liquidação e pagamento do crédito quanto na elaboração de acordos de transação para quitação de passivo fiscal [1].

Na mesma hipótese, não há qualquer restrição à natureza do débito, que poderá ter natureza tributária ou não. Recente alteração legislativa pretende reforçar essa possibilidade. O artigo 11, V, da Lei nº 13.988/2020, incluído pela Lei nº 14.375/2022 autoriza que a transação contemple "o uso de precatórios ou de direito creditório com sentença de valor transitada em julgado para amortização de dívida tributária principal, multa e juros". Todas essas possibilidades de utilização do crédito refletem no novo regime especial de pagamento da União, que agora está submetido a um teto.

O regime especial da União, ao contrário do regime dos Estados, Distrito Federal e Município, já é devidamente delimitado pelo artigo 107-A, do ADCT, não restando margem para sua alteração por parte do Poder Executivo. O seu objetivo basicamente é o de limitar o valor dispendido pela União anualmente para o pagamento dos precatórios. Não importa se o valor a ser pago por precatórios aumentar demasiadamente de um ano para o outro: haverá mera atualização monetária e não alocação suficiente para pagamento de todo o valor, como ocorria anteriormente.

O teto para os gastos com precatórios estabelecido foi o equivalente ao "valor da despesa paga no exercício de 2016, incluídos os restos a pagar pagos", havendo apenas a atualização monetária do valor nos termos do artigo 107, §1º, do ADCT (artigo  107-A, caput, ADCT). A menção ano de 2016 decorre do fato de que foi nesse ano em que editada a EC 95/2016, que fixou o teto de gastos, em que o seu aumento iria ocorrer apenas baseado na inflação.

A atualização do teto de gastos total foi prevista da seguinte forma (artigo 107, §1º, ADCT): 1) para o exercício de 2017, utiliza-se a despesa paga no exercício em 2016, corrigida em 7,2% e 2) para os demais exercícios, o teto de gastos corresponderá ao valor do limite referente ao exercício imediatamente anterior, corrigido pela variação do IPCA, ou de outro índice que vier a substituí-lo, apurado no exercício anterior a que se refere a lei orçamentária.

Por outro lado, alguns tipos de créditos serão excluídos (artigo 107-A, §§5º e 6º, do ADCT), entre eles aqueles descritos no artigo 100, §11, da CF. Uma consequência relevante dessa exclusão de créditos é que o estoque da dívida diminuirá, permitindo o pagamento de outros precatórios. Já se tem conhecimento de que apenas por volta de metade dos precatórios serão pagos em 2022, ficando o restante para o ano que vem [2]. Se, por acaso, houve a utilização de 10% desses créditos na transação tributária, abre-se a possibilidade de quitação de todo esse valor para outros precatórios. Do ponto de vista dos demais credores, trata-se de uma esperança para diminuir o tempo de espera; para os devedores, há diminuição do estoque da dívida.

Uma das exclusões consiste nos créditos de precatórios que sejam utilizados nos moldes previstos do artigo 100, §11, da CF, de acordo com a previsão do artigo 107-A, §5º, do ADCT. Significa, por exemplo, que, se um credor de precatório se utilizar do seu crédito para adquirir um imóvel da União, esse valor não será contabilizado como pago com o orçamento dos precatórios. Dessa forma, haverá um valor maior para o pagamento de precatórios naquele ano.

Inserido o contexto do tema, recentemente foi publicada a Portaria PGFN/ME Nº 6.757, de 29 de julho de 2022, que regulamenta a transação na cobrança de créditos da União e do FGTS. Mais especificamente, dos artigos 78 a 83, há o tratamento da utilização de créditos líquidos e certos e de precatórios federais para amortização ou liquidação de saldo devedor transacionado. Essa portaria revogou a Portaria PGFN nº 9.917, de 14 de abril de 2020, que já tratava da utilização de precatórios e, ao que parece, utilizou a mesma regulamentação, que, como será demonstrado, agora está em desacordo com a Constituição.

A premissa geral a utilização de créditos líquidos e certos e de precatórios federais para amortização ou liquidação de saldo devedor transacionado é a de que, realizado o acordo, "Depositado o precatório em conta à disposição do juízo, nos termos do artigo 43 da Resolução CJF nº 405, de 9 de junho de 2016, a unidade da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional responsável deverá solicitar a liberação dos valores para liquidação do saldo transacionado, apresentando os documentos de arrecadação correspondentes" (artigo 82). Em outros termos, o acordo é celebrado para utilização do precatório, mas a PGFN vai esperar o seu efetivo pagamento para quitação do débito.

Também foi publicada a Portaria RFB nº 208, de 11 de agosto de 2022, regulamentando a transação de créditos tributários sob administração da Receita Federal. Trata da utilização de créditos líquidos e certos e de precatórios federais para amortização ou liquidação de saldo devedor transacionado nos artigos 69 a 73. E, tal como na regulação da PGFN, prevê, no artigo 72, que, "Depositado o precatório em conta à disposição do juízo, nos termos do artigo 42 da Resolução CJF nº 458, de 4 de outubro de 2017, a equipe responsável, por meio da unidade local da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, deverá solicitar a liberação dos valores para liquidação do saldo transacionado, apresentando os documentos de arrecadação correspondentes".

Esse tratamento está em completo desacordo com a disciplina constitucional. Isso porque esses créditos utilizados para pagamento de tributos continuarão na fila dos precatórios; a quitação ocorre no dia do pagamento, que agora está relacionado a um momento incerto no futuro. Dessa forma, não há abertura para pagamentos de outros créditos.

Deveria ocorrer, após a realização da transação, a cessão do crédito e a sua imediata liquidação, com um encontro de contas entre o saldo devedor o valor inscrito em precatórios. Após essa liquidação, esse valor seria liberado para pagar outros precatórios.

Na disciplina constitucional, os valores utilizados para a quitação de tributos são excluídos do teto constitucional. Se o teto constitucional é de 50 bilhões de reais e há utilização de cinco bilhões de reais, abre-se a possibilidade do pagamento de mais cinco bilhões de reais em precatórios. Mas a regulamentação da PGFN exclui o aumento dos valores disponível para pagamento dos demais credores ao deixar de observar o regime constitucional, quando impõe que a quitação só ocorra após o depósito do precatório. Assim, por violar a regulação constitucional do regime especial dos precatórios, o artigo 82 da Portaria PGFN/ME Nº 6.757, de 29 de julho de 2022 e o artigo72 da Portaria RFB nº 208, de 11 de agosto de 2022 são inconstitucionais. A consequência da utilização do crédito para pagamento de saldo devedor transacionado deve ser a imediata liquidação e não a espera do depósito dos valores.

Assim, considerando o comando do artigo 107-A, §5º, do ADCT, a cessão de créditos líquidos e certos e precatórios no contexto da transação tributária deve seguir um regime especial de liquidação do tributo com o a extinção do direito creditório constituído na contabilidade da União. Por outro lado, a recente publicação da Portaria Conjunta PGFN/STN nº 63, de 02 de agosto de 2022, que criou que alterou dispositivos do Acordo de Cooperação Técnica entre a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e a Secretaria do Tesouro Nacional (regulado pela Portaria Conjunta PGFN/STN nº 108, de 6 de janeiro de 2020), pode ser um indicativo de que a criação do procedimento especial de liquidação já está em andamento.   


[1] Sobre o tema, cf: PEIXOTO, Ravi; AVELINO, Murilo. Consensualidade e poder público. Salvador: Juspodivm, 2022.

Autores

  • é doutor em Direito Processual pela Uerj, mestre em Direito pela UFPE e procurador do município do Recife.

  • é advogado sócio de Queiroz Advogados Associados, doutor em Direito Tributário (USP), mestre em Direito (UNICAP), pós-graduação em Direito Tributário pelo IBET/SP, professor do Curso de Pós-graduação do IBET, membro Fundador da Associação Brasileira de Direito Processual – ABDPro, membro da Associação Norte Nordeste de Professores de Processo – ANNEP e presidente da Comissão de Assuntos Tributários da OAB/PE.

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