Opinião

Precisamos da criação de novo tipo de crime para reprimir o "novo cangaço"?

Autor

  • Raul Abramo Ariano

    é advogado criminalista mestrando em Processo Penal especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra/IBCCRIM em Portugal e em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e instrutor e conciliador do Tribunal de Ética e Disciplina da 6ª Turma da OAB/SP.

18 de agosto de 2022, 19h32

As ações de grandes grupos de criminosos orquestrados para a subtração de valores de agências bancárias por meio de intervenções cinematográficas, o chamado "novo cangaço", é questão de urgente preocupação dos gestores públicos, dos bancos e das empresas de manejo de valores. A aflição não é desmotivada: essa modalidade de subtração de valores "na fonte" é marcada pela alta eficiência e especialização dos criminosos, e também pela elevada periculosidade social das empreitadas, que conta, muitas vezes, com dezenas de agentes, emprego de artefatos bélicos de grande potencial lesivo, instalação de armadilhas explosivas, uso de reféns e implementação de logística delitiva que busca inviabilizar por completo a pronta resposta da força de segurança pública.

Nesse contexto, avança à largos passos o Projeto de Lei 5365/20, de proposta submetida ao regime de urgência legislativo, que prevê a criação de um novo crime relacionado ao fenômeno. Pretende-se também a inclusão do delito no rol dos crimes hediondos (Lei 8.072/90), o que repercute no cálculo da progressão de regime de pena, dentre outros efeitos legais. A proposta foca na criminalização autônoma da atividade meio do crime de roubou, ou seja, no caminho que é trilhado pelos criminosos até que cheguem em seu objetivo final: os cofres de altos valores. Em analogia grosseira, seria similar à criminalização da lavagem de dinheiro (um meio para o criminoso usufruir dos bens ilicitamente obtidos) ou da organização criminosa (estrutura complexa concebida para viabilizar a prática eficiente de determinados crimes).

O novo tipo penal sugerido pelo legislador, denominado de "domínio de cidades", no entanto, deve ser visto com ressalvas. E aqui é necessário ser bastante claro: não se pretende com a afirmação diminuir a gravidade do fenômeno e sua imensa capacidade de perturbação social. O que se discute é a adequação da proposta, ou seja, em que medida a criação desse novo delito detém o concreto potencial de combater o novo cangaço. Dito de forma diversa, a solução contida no PL 5365/20 é eficaz ao fim concebido?

Em primeiro lugar, repetindo contumaz erro do legislador ao conceber novas condutas proibidas por meio de prolixa descrição fática (vide, por exemplo, as condutas que se amoldam ao tráfico de drogas) [1], o novo crime proposto possui texto descritivo bastante aberto, extrapolando a própria figura de impor "domínio sobre as cidades". Narra situações que fogem desse altíssimo grau de sofisticação delitiva ao, por exemplo, punir autonomamente a conduta de realizar bloqueio parcial de via de tráfego com emprego de arma de fogo, objetivando o crime "final" contra o patrimônio. Imagina-se, por exemplo, assaltante que, para ingressar em uma loja de conveniência, impeça o avanço dos policiais sobre si com a ameaça de revolver. Evidentemente o exemplo citado retrata prática de grande periculosidade e reprovação social, mas estaria esse assaltante cometendo o domínio da cidade? Parece que esse entendimento seria absurdo.

Ademais, o lapso de penas previsto ao novo injusto já é preocupante por si só, ainda mais quando se lembra que ele necessariamente será aplicado em concurso com o próprio crime patrimonial. Para comparação, o crime de sequestro por mais de 24 horas e por bando ou quadrilha é punido com as penas de 12 a 20 anos. Se resulta em lesão corporal grave, a pena passa para 16 a 24 anos. Por sua vez, o "domínio de cidades" parte de uma pena mínima de 15 anos, alcançando a máxima de 30 anos de reclusão, em sua modalidade simples. Há aqui um problema de proporcionalidade sistêmica do grau de reprovação de condutas. Isso, pois uma pena não pode ser pensada isoladamente, ela deve refletir uma coerência com os demais crimes, comunicando-se às condutas que o legislador entende ser mais ou menos graves do que as outras. É sempre uma análise comparativa, portanto. O próprio homicídio simples possui penas menores (26 anos) e, mesmo em sua modalidade qualificada, parte de patamar inferior ao "domínio de cidades" (12 a 30 anos). A mensagem do legislador é bastante clara: é mais grave empreender atentado ao cofre de um banco do que assassinar um cidadão com emprego de tortura, por exemplo (artigo 121, §2º, III, CP).

Ademais, já existem em nosso Código Penal crimes prevendo altas punições às prática decorrentes do "novo cangaço", que podem ser tipificadas como roubo qualificado por 1) concurso de pessoas; 2) se o agente mantém a vítima em seu poder, restringindo sua liberdade; 3) se a violência ou ameaça é exercida com emprego de arma de fogo de uso restrito ou proibido; 4) se há destruição ou rompimento de obstáculo mediante o emprego de explosivo ou de artefato análogo que cause perigo comum, e, possivelmente, resultado em 5) lesão corporal grave ou 6) morte das vítimas. Nesses casos, é alcançada com facilidade a pena de 30 anos de reclusão.

Ademais, também incide o "novo cangaço" o crime de organização criminosa, conforme previsto na Lei nº 12.850/2013, podendo ser acrescido mais dez anos, aproximadamente, às sanções do roubo qualificado [2].

O que se observa, é que não faltam crimes em nossa lei para punir com gravidade o fenômeno discutido: as penas já constantes em nosso Código Penal atingem somas altíssimas de punição. E pior, mesmo nesse cenário, não parece ser o grau de reprovação legal existente em nosso ordenamento penal o fator de dissuasão suficiente aos integrantes dessas sofisticadas organizações criminosas. Ou seja, se a eficiência do problema do combate ao novo cangaço estivesse contida no risco de os criminosos serem submetidos a sanções imensas, esse fenômeno já não ocorreria no atual cenário legal.

Exatamente por isso, a proposta de alteração do Código Penal não apenas é inócua para a prevenção e repressão do "novo cangaço" como, inclusive, representa a inserção de crime bastante aberto e com penas desproporcionais aos demais delitos já existentes, transpassando perigoso recado ao cidadão de que sua vida vale menos do que valores bancários.

Por isso, o projeto foca no problema errado: não se combaterá o fenômeno com penas altíssimas (ora, elas já existem!), mas sim, fortalecendo os instrumentos de inteligência, investigação e prevenção material contra esses sofisticados delitos. A "mágica" solução proposta é tão simples quanto ineficaz. Terceiriza ao judiciário uma responsabilidade que é do executivo e, com isso, em nada resolve o problema central: como combater o novo cangaço antes do que ele novamente ocorra ou, ainda, durante o episódio.

 


[1] "Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:" (artigo 33, caput, Lei nº 11.343/06).

[2] Importa observar que, não obstante existam os crimes autônomos de porte ilegal de artefatos explosivos e porte ou posse de arma de fogo de uso proibido e permitido, certo é que esses crimes seriam absorvidos pelas qualificadoras do crime de roubo, não incidindo em concurso de delitos.

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  • é advogado criminalista, mestrando em Processo Penal, especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra/IBCCRIM em Portugal e em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e instrutor e conciliador do Tribunal de Ética e Disciplina da 6ª Turma da OAB/SP.

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