Controvérsias Jurídicas

Cobrança de dívidas e mecanismos de defesa do consumidor no CDC

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

18 de agosto de 2022, 9h32

O Direito nos mostra duas perspectivas que devem ser obedecidas na busca da solução de um conflito. Além de se verificar as condições da ação e a plausibilidade das alegações do autor, faz-se necessária a análise do procedimento utilizado na proteção do bem objeto da demanda. Assim, mesmo o sujeito sendo titular de um direito material, deve se utilizar das vias adequadas para requere-lo. É por essa razão que o credor, titular do direito de receber um valor ou coisa, não pode agir de qualquer forma na sua obtenção, expondo, eventualmente, o devedor a situações constrangedoras. Além de ordeira e digna, igualmente deverá ser a cobrança certa e determinada, vedando-se que qualquer valor além do devido conste no pedido.

Spacca
O Código de Defesa do Consumidor, fiel no cumprimento da garantia aos interesses dos vulneráveis, reservou especial proteção ao consumidor devedor, estabelecendo uma série de mecanismos de defesa contra cobranças abusivas e indevidas, prevendo sanções àquele que infringir tais dispositivos legais. Disciplinando o tema, o artigo 42 diz que: "Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça. Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável".

Da literalidade do artigo, poderíamos dar interpretação diversa daquela que efetivamente visou o legislador. Diz o dispositivo que o consumidor não poderá ser exposto a "qualquer tipo de constrangimento", revelando verdadeira falha de técnica legislativa na utilização de uma expressão equívoca. Em verdade, qualquer tipo de cobrança, em sua gênese, gerará certo grau de constrangimento para a pessoa que é cobrada, sendo impossível, desta feita, cobrar alguém sem que se crie uma situação de embaraço (tanto para quem cobra, como para quem é cobrado).

O simples fato de ser demandado judicialmente já causa constrangimento, o que os romanos denominavam de steptus judicis. Por outro lado, o direito de ação é garantia constitucional do cidadão e constitui exercício regular de um direito (CC, artigo 188, I),  nos levando à conclusão de que o legislador objetivou vedar a cobrança vexatória, indevida, mentirosa ou ameaçadora, que agrida a inviolabilidade da vida privada, honra e imagem do devedor (CF, artigo 5º, X).

Em se tratando de cobrança de dívidas, estaremos sempre diante do sopesamento de dois direitos fundamentais. De um lado, o direito à propriedade por parte do credor (artigo 5º, XII da CF); e por outro, a defesa da honra, imagem e privacidade do devedor, como já exposto. Muito se discute nos bancos acadêmicos a existência de um direito absoluto, sendo quase unânime a concepção de que nenhum direito pode ser evocado indiscriminadamente, havendo sempre situações de mitigação de sua aplicação. Todavia, o direito ao tratamento digno se mostra como princípio presente em todas as relações jurídicas, devendo servir como elemento norteador na composição dos interesses das partes.

Não há no ordenamento jurídico situação alguma que referende o tratamento indigno. Por essa razão, os valores como liberdade e dignidade do ser humano devem preponderar sobre o interesse econômico da cobrança: "Valores como liberdade e dignidade do ser humano são superiores ao interesse econômico da cobrança – v. Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Pacto de San José da Costa Rica, de 1969, Dec. 678, de 6 de novembro de 1992, (Nota: No espírito desta Convenção, não deve haver prisão por dívida, bem como ao espírito do art. 42, de que qualquer coação ou constrangimento – do maior, que é a prisão, à suspensão do fornecimento do art. 22 do CDC – deve ser evitado). Súmula Vinculante 25 do STF".[1]

O ato do credor ameaçar o devedor de ingressar com ação judicial não deverá ser interpretado como o ilícito trazido pelo CDC, artigo 42, até porque, a busca da tutela jurisdicional não pode ser vista como meio de coação. O que se proíbe é a cobrança vexatória, indevida, falsa, incorreta, enganosa ou ameaçadora. O próprio Código de Defesa do Consumidor, além do ilícito consumerista, tipifica a conduta em seu artigo 71: "Utilizar, na cobrança de dívidas, de ameaça, coação, constrangimento físico ou moral, afirmações falsas incorretas ou enganosas ou de qualquer outro procedimento que exponha o consumidor, injustificadamente, a ridículo ou interfira com seu trabalho, descanso ou lazer. Pena. Detenção de três meses a um ano e multa".

A abusividade se caracteriza na exposição do consumidor ou seus familiares à risco em sua integridade biopsicológica. Nesse contexto se encontram as práticas das concessionárias prestadoras de serviço público de água e energia ao ameaçarem o corte do serviço caso o pagamento não seja efetuado. Concretizando-se, inequívoco é o constrangimento físico e moral causado ao consumidor, como bem nos mostra os seguintes julgados.

"Corte de energia elétrica — Débito discutido em Juízo — Prática abusiva. Cuida-se de tema exaustivamente debatido nos Tribunais, prevalecendo a orientação de que é abusiva, sob a ótica do Código de Defesa do Consumidor, a prática adotada pelas concessionárias de serviço público, inclusive de energia elétrica, consistente no corte de fornecimento dos serviços como meio de coagir o consumidor a pagar valores que se afirmam credoras".[2]
"
Ação Cautelar Inominada – Impossibilidade de suspensão de fornecimento de energia elétrica por alegado inadimplemento do consumidor. É vedado ao prestador de serviços constranger, coagir ou ameaçar o consumidor a efetuar o pagamento de valor devido por conta do serviço prestado, nos termos do art. 42, "Caput", do CDC. Preliminares rejeitadas e apelo improvido".[3]

O valor cobrado deve ser efetivamente devido e certo, vedando-se qualquer tipo de afirmação falsa, incorreta ou enganosa. Nesse sentido, buscou o Código de Defesa do Consumidor proteger o devedor de ser induzido a erro quanto aos elementos apresentados em eventual ação de cobrança ou na cobrança em si.

"Todavia, há que buscar identificar o propósito da lei. O que ela pretende é impedir que por qualquer artifício o consumidor seja iludido quanto aos elementos apresentados na ação de cobrança e também na prática da cobrança em si. Por isso, parece correto dizer que as expressões 'afirmação falsa', 'incorreta' e 'enganosa' são tomadas como sinônimas".[4]

Igualmente vedada, a cobrança vexatória é aquela caracterizada pela exposição do consumidor ao ridículo. O ato de cobrar não pode ser desarrazoado, injustificável, sem nenhuma conexão fática com a causa da cobrança; sendo realizada apenas com o fito de causar vexame como modo de coação ou vingança pessoal, tais como a remessa de correspondência aberta, o envio de envelope com o bernete "cobrança", ou tarja vermelha com o termo "cobrança" ou "devedor". É ilegal, também, a colocação de lista na parede de escola ou sala de aula com o nome do aluno inadimplente[5].

Em sendo alvo de cobrança abusiva ou vexatória, terá o consumidor direito à repetição do indébito, nos termos do CDC artigo 42, parágrafo único, consistente na devolução do dobro do valor pago, acrescido de correção monetária e juros legais. Constatando-se, porém, a abusividade sem que o consumidor tenha pago parte do valor, suportando apenas as despesas com custas judiciais e honorários advocatícios, remanesce o direito de se pleitear indenização por danos materiais e morais (CF, artigo 5º, X e CDC artigo 6º, VI).

Por fim, devemos nos atentar que a exceção trazida pela parte final do parágrafo único do artigo 42, "salvo hipótese de engano justificável", exclui apenas o dever de se reembolsar em dobro o valor pago, permanecendo a exigência da devolução da quantia paga, acrescida de correção monetária e juros legais.


[1] MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Herman e MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, 6ª edição, p. 1.164

[2] TJBA – 4ª Câmara Cível, – Ag. In. 4115-7/2003 – rel. Des. Paulo Roberto Bastos Furtado – j. 18.06.2003 – RDC 54.267).

[3] TJRS – 14ª Cam. – Ap. Cível 70002529386 – rel. Des. Aymoré Roque Pottes de Mello – j. 13.09.2001

[4] NUNES, Rizzatto. Curso de Direito do Consumidor, 13ª edição, p. 643

[5] Op. sit, p. 644

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