Garantias do Consumo

A concessão irresponsável do crédito: do abuso ao superendividamento

Autor

  • Andréia Fernandes de Almeida Rangel

    é pós-doutoranda no PPGD/UFRGS doutora e mestre em Direito pela UFF pós-graduada em Direito Privado pela UFF professora adjunta do Departamento de Direito Civil da Faculdade Nacional de Direito (FND/UFRJ) líder do Grupo de Pesquisa "A Simbiose entre o Público e o Privado: os limites da ingerência estatal no âmbito das relações privadas (FND/UFRJ) avaliadora de curso superior (Inep- MEC) associada titular do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (Iberc) e associada do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).

17 de agosto de 2022, 8h03

A sociedade contemporânea e sua filosofia de vida: o apelo ao consumo e a facilidade de crédito incessante; os prazeres da vida dispostos nas vitrines física e virtual; o compre agora, seja feliz e pague depois; a manutenção do mundo dos bens [1] desnudam o lado obscuro da busca desenfreada pela aquisição de bens. O consumo é a peça central na sociedade, o ato de consumir passou a integrar a busca pela satisfação e felicidade na sociedade de consumidores [2], o consumo realiza os desejos das pessoas de inclusão, é uma forma de se satisfazer, de alcançar pequenos prazeres [3]. Lipovetsky, que escolheu como foco do seu objeto de estudo a publicidade, a moda, o luxo e o consumo, compara o prazer imediato proporcionado pela compra do produto ou serviço, ao encanto perpétuo das felicidades privadas [4].

Assim, para a satisfação pessoal consumerista, há proporcionalmente um aumento exponencial nos chamados contratos de consumo, ou seja, aquelas relações contratuais ligando consumidor a um fornecedor de produto ou serviço [5], paralelamente há a chamada "democratização do crédito" [6], um crescimento rápido na expansão do crédito. O aumento na aquisição de bens e serviços e o acesso fácil às redes de crédito, em um cenário de incertezas e instabilidade (circunstâncias não previsíveis [7]), acrescidos de uma utilização sem uma consciência econômica, decorrente de uma sólida educação financeira [8], podem acarretar inadimplemento nas parcelas de crédito, comprometimento da renda mensal e/ou exposição simultânea às diversas modalidades de crédito, como o cheque especial, crédito pessoal sem consignação e crédito rotativo [9].

O acesso ao crédito não deve ser visto apenas como "diabolização" (crédito é usura), o crédito ao consumo [10] não deve ser visto como algo apenas para a aquisição de bens supérfluos, é através do acesso ao crédito que o consumidor estará inserido na sociedade de consumo [11], assim, para consumir produtos e serviços, seja ele essencial ou não, os consumidores estão de maneira constante endividando-se [12].

Entretanto, não se pode deixar de trazer constatar o outro lado da moeda, as consequências do acesso desenfreado ao crédito, a concessão do crédito irresponsável pelas instituições financeiras, as quais com o uso abusivo de práticas e condutas nocivas projetam efeitos negativos e contribuem de maneira primordial para o superendividamento da população. Assim, nas palavras de Clarissa Costa de Lima: "o superendividamento pode resultar do excesso de crédito disponível e de sua concessão irresponsável, ou seja, quando o profissional concede o crédito sabendo, ou devendo saber, que o devedor não terá condições financeiras de reembolsá-lo no futuro" [13].

Este fenômeno: o superendividamento, que já vinha sendo aprimorado no Direito estrangeiro [14], que foi sinalizado em 1995, no Congresso da Associação Mundial do Direito do Consumo em Toronto, pela professora Claudia Lima Marques [15], e que, em 1996, o professor José Reinaldo de Lima Lopes abordou no seu artigo "Crédito do consumidor e superendividamento:[16], hoje conta com a proteção trazida na Lei 14.181/21 [17].

Um diploma com inspiração do direito francês [18] [19], um novo paradigma no ordenamento jurídico brasileiro, atualizando e incluindo dois novos capítulos no Código de Defesa do Consumidor, o Capítulo VI-A, que traz da prevenção e do tratamento do superendividamento, com parâmetros para um crédito responsável, e o Capítulo V, que traz da conciliação no superendividamento, dispondo sobre a conciliação em bloco do consumidor de boa-fé com todos os seus credores, para a elaboração de um plano de pagamento das dívidas. A professora Claudia Lima Marques e o professora Fernando Martins resumem todas as novas normas em três diretrizes: crédito responsável ("direito fundamental e básico do consumidor"), boa-fé na ruína ("a boa-fé como princípio fundamental e ordenador do tráfego jurídico") e respeito à dignidade humana ("o patrimônio mínimo como bem fundamental a ser preservado na consecução dos limites ao sacrifício") [20].

Assim, a concessão de crédito ao consumidor deve obedecer ao ditame da atual redação do artigo 6º, XI do Código de Defesa do Consumidor, qual seja: "XI – a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservado o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, por meio da revisão e da repactuação da dívida, entre outras medidas".

Falar em crédito responsável é observar os deveres de conduta de boa-fé, de informação, cuidado e cooperação com os consumidores, os quais devem andar de mãos dadas com o dever de informação adequada e prévia (artigo 52, artigo 54 B e artigo 54 D), com o dever de esclarecimento (artigo 54 D, I), com o dever de avaliação das condições de crédito daquele consumidor (artigo 54 D, II) e com o dever de entrega do contrato e dever de informação do agente financiador (artigo 54 D III) [21].

Na Resolução nº 39/248, de 16 de abril de 1985, da ONU (uma resolução fruto de discussão estabelecida na ONU, que fixou as linhas gerais da proteção internacional do consumidor), seu capítulo II já trazia os princípios gerais da proteção do consumidor no plano internacional, os quais têm, dentre outros, a função de fornecer aos consumidores informações adequadas [22] para capacitá-los a fazer escolhas acertadas de acordo com as necessidades e desejos individuais [24]. E em 2015, traz na Resolução 70/186 traz novas perspectivas aos consumidores e reforçou as diretrizes sobre os deveres de informação e transparência pelas instituições financeiras, inclusive quanto aos custos dos créditos.

Compreender a boa-fé e o dever de informar é imperioso para seu desdobramento como meio inibidor ao superendividamento do consumidor, uma vez que a informação de qualidade, esclarecedora, confiável e qualificada, deve ser apresentada de forma prévia e adequada no momento da oferta ao consumidor no fornecimento de crédito [24], na forma do artigo 54-B c/c artigo 52 da Lei 8.078/90. Os deveres de informação adstringem as partes, segundo António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro "à prestação de todos os esclarecimentos necessários à conclusão honesta do contrato" [25].

Nas palavras do ministro Herman Benjamin: "O consumidor bem-informado é um ser apto a ocupar seu espaço na sociedade de consumo".

Assim, forçoso concluir que a concessão de crédito sem a observância dos ditames legais acima mencionados, declinando dos deveres impostos ao fornecedor de crédito no exercício da atividade, já comete ato ilícito, um ato que pode intensificar ou mesmo aflorar o superendividamento do consumidor, cabendo assim uma análise minuciosa deste comportamento e suas consequências/desdobramentos jurídicos.

O raciocínio depreendido nas linhas acima pretendeu demonstrar a situação de fragilidade do consumidor superendividado, aquele que na sociedade em que o consumo é a chave para a felicidade, em que o fácil acesso ao crédito representa o atalho para a aquisição de bens e serviços, viu seu sonho de consumo parcelado em boletos atrasados e ligações de cobrança, degringolado em um processo de descumprimento atempado das suas contas.

 


[1] DOUGLAS, Mary. O mundo dos bens, vinte anos depois. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 13, n. 28, p. 17-32, jul./dez. 2007. DOUGLAS, Mary; ISHERWOOD, Baron. O mundo dos bens: para uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.

[2] "Os encontros dos potenciais consumidores com os objetos de consumo tendem a se tornar as principais unidades na rede peculiar de interações humanas conhecida, de maneira abreviada, como 'sociedade de consumidores'". ZYGMUNT, Bauman. Vidas para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 18-19

[3] FERREIRA, Vitor Hugo do Amaral. A figura do mediador de crédito. Estudos de Direito do Consumo. [v]., p. 670 – 701, 2021.

[4] LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo. Tradução Patrícia Xavier. Lisboa: Edições 70, 2010. p. 87.

[5] MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor: o novo regime das relações contratuais. 9ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. p. 289.

[6] LIMA, Clarissa Costa de. Superendividamento no Brasil. Revista de Direito do Consumidor. Vol. 102, ano 24. p. 525-528. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

[7] MARQUES, Maria Manuel et al. O endividamento dos consumidores. Coimbra: Almedina, 2000. p. 2.

[8] A educação financeira também funciona como importante ferramenta para o combate ao consumismo e ao desperdício de recursos (DESTEFANI, Sônia Maria. Educação financeira na infância. Revista Eventos Pedagógicos. v. 7, nº 3, p. 1056-1067, ago/dez, 2016). A organização financeira facilita o controle, quando realizado de forma assertiva, o que favorece a segurança, a tranquilidade e a independência, e se torna realidade muito próxima a ser vivenciada nos contextos das famílias em cenários de crises econômicas. Ainda sobre o tema D’AQUINO, Cássia; MALDONADO, Maria Tereza. Educar para consumo: como lidar com os desejos de crianças e adolescentes. São Paulo: Papirus 7 Mares, 2012.

[9] As consequências aqui elencadas correspondem aos indicadores de endividamento de risco no Brasil, estudo sobre educação, proteção e inclusão do Banco Central do Brasil. BRASIL. Série cidadania financeira: estudos sobre educação, proteção e inclusão. Brasília: Banco Central do Brasil, 2020. Disponível em https://www.bcb.gov.br/content/cidadaniafinanceira/documentos_cidadania/serie_cidadania/serie_cidadania_financeira_6_endividamento_risco.pdf. Acesso em 10 de fevereiro de 2021.

[10] "O crédito ao consumo é um estímulo ao consumo, é um elemento de dinamização da produção capitalista. Pressupõe um movimento perpétuo, jogando para o futuro uma perspectiva de incessante crescimento e desenvolvimento." LOPES, José Reinaldo de Lima. Crédito ao consumidor e superendividamento – uma problemática geral, Revista de Direito do Consumidor, vol. 17, p. 57-64, jan. – mar. /1996. p. 57.

[11] Sobre o tema vale a leitura crítica da obra ZYGMUNT, Bauman. Vidas para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. Na mencionada obra, na página 28, o autor traz: "(…) sociedade de consumidores (sendo os lucros oriundos sobretudo da exploração dos desejos de consumo), a filosofia empresarial dominante insiste em que a finalidade do negócio é evitar que as necessidades sejam satisfeitas e evocar, induzir, conjurar e ampliar novas necessidades que aclamam por satisfação e novos clientes em potencial, induzidos à ação por esses necessidades: em suma, há uma filosofia de afirmar que a função da oferta é criar demanda. Essa creança se aplica a todos os produtos – sejam eles fábricas ou sociedades financeiras. No que diz respeito à filosofia dos negócios, os empréstimos não são exceção: a oferta de empréstimos deve criar e ampliar a necessidade de empréstimos".

[12] BENJAMIN, Antônio Herman; MARQUES, Claudia Lima; LIMA, Clarissa Costa; VIAL, Sophia Martini. Comentários à lei 14.181/2021: a atualização do CDC em matéria de superendividamento. São Paulo: RT, 2021. p. 28.

[13] LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomeçar dos consumidores. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

[14] “Para evitar esta 'falência', os países desenvolvidos e industrializados, como os Estados Unidos da América, o Canadá, a França, a Inglaterra, a Alemanha, a Bélgica, Luxemburgo e tantos outros, criaram uma série de inovações legislativas, muitas advindas da jurisprudência e por analogia com a concordata comercial, em especial um processo extrajudicial específico, de tratamento amigável ou administrativo de renegociação e parcelamento para pessoas físicas não profissionais (consumidores), permitindo um tratamento e um approach global da situação de superendividamento dos consumidores.” MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor: o novo regime das relações contratuais. 9ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. p. 1469.

[15] Revista de Direito do Consumidor, vol. 17, p. 57-64, jan. – mar. /1996.

[16] LOPES, José Reinaldo de Lima. Crédito ao consumidor e superendividamento – uma problemática geral, Revista de Direito do Consumidor, vol. 17, p. 57-64, jan. – mar. /1996.

[17] Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14181.htm Acesso em 22 de janeiro de 2022.

[18] Diverso da lei francesa, onde é possível a inclusão de dívidas de trabalho, aqui no Brasil a Lei 14.181/21 somente trata da relação se consumo.

[19] Cabe destacar aqui os dois modelos de tratamento do superendividamento: “O primeiro modelo denominado de fresh start é adotado por países de tradição common law (Estados Unidos, Inglaterra, Canadá e Austrália). A expressão fresh start significa ‘começo imediato’ porque permite ao consumidor com problemas financeiros a chance de começar uma nova etapa em sua vida sem o peso das dívidas pretéritas. O objetivo principal do sistema americano tem sido conceder ao devedor honesto o perdão imediato das dívidas remanescentes após a liquidação do patrimônio disponível para o seu pagamento. O segundo modelo de tratamento, adotado pelos países europeus, identifica-se mais com a filosofia dos planos de pagamento ou da reeducação pela responsabilização dos devedores pelas obrigações assumidas. Na prática, em vez do perdão das dívidas ou da quitação direta com a liquidação dos bens, os devedores são obrigados a reembolsá-las por meio de um plano de pagamento que pode durar até 10 (dez) anos.” MARQUES, Claudia Lima; COSTA, Clarissa Costa de; VIAL, Sophia. Superendividamento dos consumidores no pós-pandemia e a necessária atualização do Código de Defesa do Consumidor. In Direito do Consumidor: reflexões quanto aos impactos da pandemia de Covid-19. Coordenação: Alexandre David Malfatti, Paulo Henrique Ribeiro Garcia e Sérgio Seiji Shimura, v. 1, p. 107 – 144, São Paulo: Escola Paulista da Magistratura, 2020. Disponível em https://api.tjsp.jus.br/Handlers/Handler/FileFetch.ashx?codigo=126216. Acesso em 29 de janeiro de 2022.

[20] MARQUES, Claudia Lima; MARTINS, Fernando Rodrigues. Superendividamento de idoso: a necessidade de aprovação do PL3515/15, in Conjur. Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-mai-27/garantias-consumo-superendividamento-idosos-preciso-aprolvar-pl-351515 . Acesso em 26 de janeiro de 2022.

[21] MARQUES, Claudia Lima; MARTINS, Fernando Rodrigues. Deveres e responsabilidade no tratamento e na promoção do consumidor superendividado. in Responsabilidade civil nas relações de consumo. MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; et al. Rio de Janeiro: Editora Foco, 2022.

[22] II. PRINCÍPIOS GERAIS. 3) As necessidades legítimas que as diretrizes pretendem contemplar são: […] d) informação ao consumidor; […] III. DIRETRIZES. F. Programas da educação e de informação. 31) Os governos devem desenvolver ou incentivar o desenvolvimento de programas gerais de educação e informação ao consumidor, considerando as tradições culturais das pessoas referidas. O alvo de tais programas deve ser permitir às pessoas atuarem como consumidores conscientes, capazes de fazer uma escolha embasada de bens e serviços, além de conhecer seus direitos e responsabilidades. Para desenvolver tais programas, especial atenção deve ser dada às necessidades de consumidores desfavorecidos, tanto em áreas rurais quanto urbanas, incluindo consumidores de baixa renda e aqueles com baixos ou níveis inexistentes de instrução (grifo nosso). BRASIL. Código de Defesa do Consumidor. Cassiano Luiz Crespo Alves Negrão (organizador). 11ª ed. – Brasília: Câmara dos Deputados, 2020.

[23] SANTANA, Héctor Valverde. Proteção internacional do consumidor: necessidade de harmonização da legislação. Revista de Direito Internacional: Brasília. V. 11, nº 1, 2014, p. 53-64.

[24] KONDER, Cíntia. Muniz de Souza. Concessão de crédito e superendividamento: responsabilidade civil por informação inadequada. Migalhas, 31 ago. 2021. Disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/350872/concessao-de-credito-e-superendividamento. Acesso em 21 de nov de 2021.

[25] CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Da boa fé no Direito Civil. Coimbra: Almedina, 2001, p. 583.

Autores

  • é pós-doutoranda no PPGD/UFRGS, doutora e mestre em Direito pela UFF, pós-graduada em Direito Privado pela UFF, professora adjunta do Departamento de Direito Civil da Faculdade Nacional de Direito (FND/UFRJ), líder do Grupo de Pesquisa "A Simbiose entre o Público e o Privado: os limites da ingerência estatal no âmbito das relações privadas" (FND/UFRJ), Avaliadora de Curso Superior (Inep-MEC), associada titular do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (Iberc) e associada do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).

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