Opinião

Direito como instrumento de disputa política entre Portugal e Brasil (ato 1)

Autor

17 de agosto de 2022, 7h14

Em menos de um mês estaremos diante do bicentenário da independência do Brasil. Não é de hoje que se peleja na já assaz debatida, porém necessária, discussão sobre a precisão do dia 7 de setembro como o dia da festa nacional brasileira. Discutem-se outras datas, por exemplo o 9 de janeiro de 1822 (dia do "fico") ou o 2 de julho de 1823 (expulsão das tropas portuguesas da Bahia), como mais adequadas para se comemorar o efetivo rompimento com a metrópole portuguesa. Não nos ateremos propriamente a essa discussão, nada obstante a sua reconhecida importância, posto que tomaremos como premissa o entendimento de que a independência brasileira não se deu em um dia específico, senão em uma sequência de atos políticos-administrativos, muitos deles de matiz jurídico, ou seja, a independência foi um processo, o qual não começou tampouco terminou no dia 7 de setembro de 1822.

Pedro Américo/Reprodução
Pedro Américo/Reprodução

É sabido que, enquanto submetido ao julgo português, o território colonial luso na América esteve igualmente submetido ao império jurídico metropolitano. Não por acaso, dentre outras coisas, "exportou-se" às colônias a vigência de todo o esteio essencial do ordenamento jurídico português (as Ordenações Manuelinas, até 1603, e as Ordenações Filipinas, a partir de então), e, por motivo óbvios, fixou-se em Lisboa a sede institucional do intérprete máximo do direito português, a "Casa de Suplicação" [1].

É igualmente sabido que competia ao Rei, enquanto monarca absoluto, a administração da justiça. Conforme destaca António Manuel Hespanha, o Ancien Régime, diferentemente da noção iluminista de tripartição de poder, estruturava-se numa lógica jurisdicionalista. É dizer, cabia ao Rei exercer o poder supremo da justiça, zelar pela sua boa administração e garantir a mais adequada aplicação da justiça a cada um de seus súditos [2].

Ter o Rei na metrópole, portanto, significava para a elite cortesã e demais beneficiados não somente proximidade com exercício do poder simbólico da monarquia, do poder religioso originário compartilhado pelo Reino, da legítima capacidade de legislativa do Rei e do seu poderio militar, senão da plena manifestação do poder jurisdicional. Fato que, sob a perspectiva metropolitana, mudou radicalmente com a partida da Família Real em direção à América Portuguesa em outubro de 1807, e a consequente transmigração da capital do Império luso de Lisboa para o Rio de Janeiro, configurando o que Silvio Romero convencionou chamar de a "inversão brasileira".

A instalação da Família Real portuguesa no Rio de Janeiro, a partir de 1808, revolucionou a então colônia sob o ponto de vista político-administrativo. Destaque-se a criação do Conselho de Estado e do Conselho da Fazenda, da Intendência Geral de Polícia e de órgãos do judiciário como a Casa da Suplicação do Brasil, a Mesa do Desembargo do Paço, a Justiça Militar, dentre muitos outros.

Quanto à organização judiciária, durante a regência e o reinado de João 6º, pode-se dizer que ela não só foi nova e inovadora (ainda que se conservasse em boa parte a organização preexistente), como contribuiu, na realidade, para a futura independência político-administrativa do Brasil. Forçoso, desde logo, anotar que a legislação joanina alterou de modo bem expressivo a estrutura judiciária colonial brasileira, sem prejuízo de haver mantido boa parte dela, como já registrado.

Dos primeiros órgãos judiciais criados (e, também, já enunciados) tem-se a Mesa do Desembargo de Paço e da Consciência e Ordens, criada no Brasil, como um só Tribunal, pelo alvará de 22 de abril de 1808, com atribuições definidas por alvará de 12 de maio de 1809, que eram, em Portugal, dois tribunais distintos. Outros órgãos também foram criados, logo em 1808 [3].

Natural imaginar que não seria sem estremecimentos políticos a aceitação da perda de poder por parte dos Reinóis lusitanos. Não foi sem motivo que, aproximadamente 12 anos após a saída da Família Real portuguesa em direção à colônia, surgiu na cidade do Porto um movimento de natureza constitucional, nacionalista e liberal, cujo projeto defendia a reestruturação do império luso-brasileiro, tendo, por óbvio, Portugal como seu orbe político-administrativo.

Assim, em 24 de agosto de 1820, no contexto de uma organização de inspiração maçônica localizada na cidade do Porto, e composta principalmente por juristas, ocorreu o início da Revolução Liberal do Porto. Revolução que começou moderadamente, sem colocar em xeque a dinastia de Bragança, com tímida adesão militar, mas que, com o passar dos dias, adquiriu seu papel mais radical, culminando na vitória da regeneração portuguesa em 1820, ou seja, da proposta de superação do despotismo português pela doutrina baseada no constitucionalismo e no liberalismo.

Triunfo que resultou na convocação das Cortes Gerais e Extraordinários da Nação Portuguesa [4] com o objetivo de elaborar uma constituição para todo o Reino português, nada obstante os insurgentes tenham jurado fidelidade ao Rei, bem como, por outro lado, tenham igualmente jurado fidelidade às recém-convocadas Cortes Gerais e à futura Constituição [5].

Uma das consequências diretas da iniciativa revolucionária portuguesa foi o surgimento, na face americana do Reino, de Juntas governativas em todo o território colonial, refletindo o que acontecera em Portugal, e substituindo diretamente o poder do governador nomeado pela Coroa por um grupo de insurgentes que passaria a comandar política e administrativamente tais localidades. Da mesma forma que a Junta Portuguesa, as Juntas de Governo Colonial expressavam as bases do constitucionalismo vintista do Porto, com clara intenção de se desvincular do centralismo monárquico sediado no Rio de Janeiro [6].  

As primeiras Juntas de governo (Pará, 1o de janeiro, e Bahia, 10 de fevereiro) surgiram a partir de movimentos locais, sem nenhuma legalidade, fosse emanada do Rei, ou de qualquer outra instancia de poder. Embora ambas proclamassem submissão ao rei (…) foram instaladas por movimentos locais que se autolegitimaram, invocando, evidentemente, o movimento constitucionalista e a futura constituição. O processo pelo qual estas primeiras Juntas (a do Pará e a da Bahia) foram instaladas não obedeceu a nenhuma formalidade jurídica ou política preexistente na legislação do Reino. Na verdade, a instalação das referidas juntas foi um misto de pronunciamento militar e aclamação popular direta impondo, nos dois casos, um novo governo local em substituição aos antigos delegados reais [7].

O caso da Junta de Governo da Bahia é emblemático, pois, após ser instalado, chegou a enviar uma carta ao Rio de Janeiro endereçada ao rei dom João 6º, na qual justifica sua criação e afirma tudo esperar da Constituição, conclama o rei a jurá-la e defendê-la, livrando-se dos cortes viciosos, imorais mentirosos que o cercam e enganam [8].

Não demorou muito para que o apoio oficial das Cortes Gerais Portuguesas chegasse com o objetivo de dar legitimidade às Juntas instaladas na colônia. Este seria o veículo institucional para liderar o movimento que se espalhava em metástase no Reino português de ambos os hemisférios ocidentais, e cuja fórmula político-administrativa tinha como ingredientes retóricos e políticos, pelo menos inicialmente, elementos da democracia representativa e regeneradores do programa de vintismo popular: a soberania, através de eleições; independência do controle centralizado da Coroa e a ligação direta com as Cortes Constitucionais. Assim, por resolução de 18 de abril de 1821, as Cortes Gerais decidiram expressar sua posição em relação aos conselhos governamentais estrangeiros da seguinte forma, in verbis:

"Artigo 1º — Serão havidos como legítimos todos os governos estabelecidos, ou que se estabelecerem nos estados portugueses de ultramar e ilhas adjacentes, para abraçarem a sagrada causa da regeneração política da nação portuguesa; e serão declarados beneméritos da pátria os que tiverem premeditado, desenvolvidos e executado a mesma regeneração" [9].

Ciente da possibilidade de perder poder sobre Portugal, e, assim, possivelmente acabar com a dinastia dos Bragança no trono português, caso não retornasse imediatamente, dom João 6º sucumbiu em 1821 aos apelos para o seu regresso. No entanto, igualmente consciente da inevitabilidade da emancipação brasileira, deixou no Brasil seu primogênito, Pedro, como Príncipe Regente, advertindo-o na véspera de partir para Lisboa, em 24 de abril de 1821 — conforme escrito pelo próprio herdeiro em uma de suas memórias: "Pedro, se o Brasil se separar, antes seja para ti, que hás de me respeitar, do que para algum aventureiro" [10].

O esforço constitucionalista português ante as Cortes Gerais era evidente, tanto que, mesmo após a chegada de dom João 6º a Lisboa, em 4 de julho de 1821, a produção dos trabalhos se intensificou enormemente. Ocorre que tais Cortes Gerais, apesar de proporcionarem a participação de representantes de toda a nação portuguesa, foi uma verdadeira armadilha para as já imaginadas e pretendidas intenções brasileiras: a independência.

Visava-se, recuperar o domínio político-institucional sobre a face americana do Reino, devolvendo-a ao status de colônia e, consequentemente, de fonte de financiamento português. Destaque-se o teor do Parecer de 21 de Agosto de 1821 da Comissão do Ultramar (órgão subordinado às Cortes Gerais encarregado de estabelecer as disciplinas legais para as colônias) que, propunha o restabelecimento do controle administrativo do Brasil com o retorno do Príncipe Regente; a degradação da América Portuguesa com volta ao status de colônia portuguesa; a divisão e inteira subordinação das regiões brasileiras ao poder central em Lisboa; bem como a extinção dos Tribunais Superiores criados na estada da Família Real no Rio de Janeiro, passando toda matéria contenciosa, cíveis e criminais, a serem processados e julgados da mesma forma e perante as mesmas autoridades em Portugal [11].

Ao contrário das decisões das Cortes Gerais que legitimaram as Juntas de Governo brasileiras, impedindo o pleno exercício pelo monarca do Governo Geral e pela administração inteira de todos ou Reino do Brasil, o Príncipe Regente do Brasil, cada vez mais confortável na liderança política da porção americana do Reino português, instituiu e convocou o Conselho de Procuradores-Gerais das Províncias do Brasil, por Decreto de 16 de fevereiro de 1822 [12].

Presidido pelo próprio Pedro, e composto por representantes de cada uma das províncias brasileiras, além de todos os ministros e secretários de Estado, o Conselho era competente para auxiliar o Príncipe Regente nos assuntos mais importantes e difíceis da regência; examinar os principais projetos de reforma a serem realizados na administração geral e privada do Estado; propor medidas para o bem do Reino Unido e para a prosperidade do Brasil, bem como para cuidar das províncias [13].

Já determinado a permanecer no Brasil, nada obstante da conhecida determinação das Cortes Gerais portuguesas para que retornasse imediatamente à Lisboa, D. Pedro dá um passo adiante na valsa emancipatória brasileira, embora tal ainda não fosse suficiente para ter controle total da dança, determinando, através da Decisão nº 53, de 27 de maio de 1822 [14], que o Conselho de Procuradores-Gerais das Províncias do Brasil não era competente pela elaboração das leis, atribuição esta exclusiva das Cortes Gerais, senão apenas pelo conveniente julgamento daquelas feitas em Lisboa.

Por outro lado, a referida Decisão nº 53 teria de ser compreendida em complementação à Decisão nº 40, de 4 de maio de 1822 [15], na qual fora determinado que nenhum Decreto das Cortes Gerais portuguesas deveria ser executado sem o devido e prévio “cumpra-se” do Príncipe Regente, ou seja, da ordem do monarca para que tais normas produzissem seus respectivos efeitos na parte americana do Reino.

Nesse caso, o debate sobre territorialidade e jurisdição, elementos fundamentais na concepção moderna da soberania, ocorreu justamente pela determinação supracitada de "cumpra-se" carimbada pelo Príncipe Regente do Brasil, bem como pela competência delegada ao Conselho de Procuradores-Gerais das Províncias do Brasil para julgar as leis promulgadas em Lisboa. Era, portanto, o Direito como objeto essencial de disputa institucional durante o processo de independência do Brasil.

Restava evidente que tanto o esforço constitucionalista das Cortes Gerais e das normas nelas produzidas, quanto as decisões nº 40 e nº 53 de maio de 1822, iam além da própria coreografia de meros gestos políticos naquela dança de interesses contrapostos, senão diziam respeito ao próprio Direito como um instrumento de poder em disputa entre Portugal e Brasil.

A partir de tais atos de insubordinação às convenções políticas que garantiam a superposição soberana lusa sobre o território brasileiro, em que a efetividade do Direito era objeto essencial de controvérsia, a independência formal do Brasil tornou-se um mero detalhe. As fraturas já estavam expostas e quase todas as pontes de diálogo entre Brasil e Portugal cada vez mais frágeis, se já não destruídas.

A partir de então, uma batalha ideológica de denominador comum conservador passaria dominar os rumos do primeiro ato do processo de independência do Brasil, o qual a história convencionou o dia 7 de setembro como sendo tal marco temporal fundamental. De um lado, o "partido brasileiro" defendia a criação de um novo Estado baseado na soberania popular, embora negasse o republicanismo como alternativa para o futuro país. Por outro lado, e em intensa a reação, o "partido português", ou seja, a elite coimbrã residente no Brasil, apesar de não tolerar a degradação do Brasil conforme proposto nas Cortes Gerais portuguesas, não concordava com a instituição de um regime representativo baseado na soberania popular. Nesse momento, os liberais ainda corriam por fora.

Dessa forma, a batalha política pela atenção do Príncipe Regente, que seria disputado como fiel dessa uma sensível balança, não se daria mais tão somente pelo iminente rompimento formal com Portugal, mas pela sua adesão a algum dos grupos que disputariam o protagonismo durante o segundo ato de matiz jurídico do processo de independência do Brasil: a constituinte e a primeira constituição.

_____________________

[1] Maria Cristina da Silva Carmignani destaca que "a Casa da Suplicação era o tribunal superior do Reino, que inicialmente acompanhava a Corte e depois se fixou em Lisboa". (CARMIGNANI, Maria Cristina da Silva. A justiça no Brasil colônia. In Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. v. 113, jan./dez. 2018, p. 45 – 75).

[2] XAVIER, Ângela B. & HESPANHA, António Manuel. A representação da sociedade e do poder. In: HESPANHA, António Manuel (coord.). História de Portugal. Lisboa: Editorial Estampa, 1993, vol. 4. Apud MELLO, Isabele de Matos Pereira de. OS MINISTROS DA JUSTIÇA NA AMÉRICA PORTUGUESA: OUVIDORES-GERAIS E JUÍZES DE FORA NA ADMINISTRAÇÃO COLONIAL  (SÉC. XVIII). rev. hist. (São Paulo), nº 171, p. 351-381, jul.-dez., 2014http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2014.89015

[3] MATHIAS, Carlos Fernando. Notas para uma história do judiciário no Brasil – Brasília : Fundação Alexandre de Gusmão, 2009, p. 88.

[4] Como instituição política, cujo primeiro ato foi a publicação de um manifesto dirigido à nação portuguesa, as Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, embora não se reunissem há mais de cem anos, o que revelava certa estabilidade política na reino, eram compostas por membros do clero e nobres, além de representantes das principais ciudades lusas.

[5] LEAL, Aurelino, História Constitucional do Brasil, Brasília, Senado Federal, 2014, p. 18.

[6] BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça, O patriotismo constitucional: Pernambuco, 1820-1822, São Paulo, Hucitec-Fapesp, Recife, UFPE, 2006, p. 323.

[7] BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça, O patriotismo constitucional: Pernambuco, 1820-1822, São Paulo, Hucitec-Fapesp, Recife, UFPE, 2006, p. 317.

[8] BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça, O patriotismo constitucional: Pernambuco, 1820-1822, São Paulo, Hucitec-Fapesp, Recife, UFPE, 2006, p. 320.

[9] BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça, O patriotismo constitucional: Pernambuco, 1820-1822, São Paulo, Hucitec-Fapesp, Recife, UFPE, 2006, p. 322.

[10] MORAES, José Alexandre de Mello, História do Brasil –Reino e do Brasil Império, Belo Horizonte, Itatiaia, São Paulo, Edusp, 1982, p. 124 apud SCHWARTZ, Lilia Moritz y STARLING, Heloísa Murgel, Brasil: uma biografia, São Paulo, Companhia das Letras, 2015, p. 207.

[11] Neves, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e Constitucionais – A cultura política da independência (1820-1822), p. 286.

[12] MOTA, Carlos Guilherme, LOPES, Adriana, História do Brasil: uma interpretação, São Paulo, Editora 34, 2015, p.302.

[13]BRASIL, Decreto de 16 de fevereiro de 1822, Rio de Janeiro, 1822, Disponible en https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret_sn/anterioresa1824/decreto-38926-16-fevereiro-1822-568227-publicacaooriginal-91623-pe.html

[14] BRASIL, "Decisão 53, de 27 de maio de 1822", en Coleção das Decisões do Governo do Império do Brazil de 1822, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1887, pp. 39-41.

[15] BRASIL, "Decisão nº 40, de 4 de mayo de 1822", en Coleção das Decisões do Governo do Império do Brazil de 1822, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1887, p. 32.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!