Opinião

Direito e matemática: um paralelo, uma meta e um desafio

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10 de agosto de 2022, 17h09

No último texto que escrevi aqui na ConJur sobre direito e matemática, citei alguns exemplos muito simples em que a presença de ambas era evidente, como nas normas que expressamente determinavam o cálculo de valores de penas e de indenizações.

Em continuação ao texto anterior, neste tenho três objetivos. O primeiro é evidenciar um importante ponto de contato ou de paralelismo entre direito e matemática. O segundo é apresentar uma grande meta para a aproximação entre essas ciências. O último objetivo é apontar um grande desafio para essa aproximação.

O ponto de contato ou de paralelismo referido está na analogia que há na distinção entre regras e princípios no direito e entre os raciocínios discreto e contínuo na matemática.

No direito, a corrente que distingue as normas jurídicas entre regras e princípios [1] sustenta que as regras possuem uma forma de aplicação do tipo tudo ou nada, válido ou inválido, incidência ou não incidência, ou seja, um juízo binário ou dicotômico. Para tentar dar um exemplo, pode-se dizer que, segundo a Consolidação das Leis do Trabalho, quando presentes os requisitos, um empregado possui direito às férias e, quando não presentes, ele não possui.

Não é possível meio termo, ressalvadas as situações em que a Lei prevê um número de dias de férias menor em razão de algumas ocorrências no período aquisitivo. Mas todas as situações possíveis são nitidamente discriminadas e separadas umas das outras.

Por outro lado, os princípios seriam aplicados segundo um juízo de ponderação, que permitiria diferentes graus de incidência, ou seja, um modo de aplicação que buscaria otimizar a concretização dos objetivos dos princípios. Nessa linha, por exemplo, o princípio da ampla defesa previsto no artigo 2º da Lei nº 9.784, de 1999, que rege o processo administrativo federal, objetiva que se garanta ao máximo o direito de defesa do acusado.

Não é fácil definir os contornos desse princípio, mas se pode dizer que, numa aplicação concreta dele, havendo dúvida de interpretação sobre uma norma quanto a ser possível ou não estender o prazo de defesa, o princípio efetivamente orientará a permitir o prazo maior.

Independentemente de ser ou não essa diferença de aplicação entre regras e princípios o critério para distinguir esses tipos de normas, o importante é deixar claro que há efetivamente normas que permitem um juízo de intensidade ou quantitativo, enquanto outras normas são aplicadas segundo um juízo qualitativo [2].

Investigando agora a matemática, o raciocínio discreto é aquele presente, por exemplo, nas noções dos números inteiros. Cada número é perfeitamente discriminado e separado dos demais. Por exemplo, é possível perfeitamente distinguir uma laranja de duas laranjas e duas laranjas de três laranjas. Ao visualizar as laranjas é claro onde começa e termina cada laranja. A ideia da unidade é fundamental nesse tipo de raciocínio. Já o raciocínio contínuo está presente nos casos que envolvem, por exemplo, números reais infinitesimais [3].

Para tentar esclarecer essa noção, podemos pensar no famoso paradoxo de Zenão, segundo o qual uma flecha atirada nunca poderia percorrer toda a distância até o alvo. Isso ocorreria porque, para a flecha chegar ao alvo, ela teria necessariamente que percorrer a metade do caminho até lá. Porém, para percorrer essa metade do caminho, a flecha teria que percorrer metade dessa metade e assim sucessivamente.

Como a distância pode ser dividida infinitamente, sempre haveria uma distância, ainda que infinitamente pequena, a ser percorrida antes que a flecha pudesse percorrer o trecho seguinte. Daí que a flecha nunca chegaria ao trecho seguinte e, de certa forma, não sairia do lugar.

A ideia do contínuo também está presente no espectro da luz visível decomposta nas cores do arco-íris: Em algumas regiões do espectro se pode afirmar, por exemplo, que a cor predominante é amarela, e em outras áreas é possível afirmar que a cor predominante é verde. Mas é difícil determinar onde exatamente no espectro a cor deixa de ser amarela e passa a ser verde. Isso ocorre porque a passagem de uma cor para outra é gradual com variações quase imperceptíveis. As noções de extensão (tamanho, distância, posição etc.) e de duração (tempo) também envolvem a continuidade, pois podem ser medidas com diferentes graus de precisão.

Nesse ponto, talvez já seja possível perceber o mencionado paralelismo que há entre o direito e a matemática: os juízos de otimização dos princípios no direito têm relação com os raciocínios contínuos da matemática. Da mesma forma, os juízos utilizados para aplicação das regras são semelhantes ao raciocínio discreto.

Ter em mente que as situações podem envolver um ou outro tipo de raciocínio é essencial, principalmente no direito, para que a norma seja mais bem aplicada (e eventualmente elaborada). Basta pensar num exemplo em que uma norma permita a concessão parcial de um direito, mas o aplicador julgue que tal norma está sujeita a juízo de tudo ou nada e, em razão disso, negue o direito ao cidadão.

Essa preocupação também está presente nas situações idênticas que são solucionadas de modo distinto ou nas situações díspares que recebem a mesma solução. Tais soluções poderão não levar à pacificação social, e o que causa desconforto nessas situações parece ser um senso de justiça que as pessoas carregam dentro de si e que é utilizado para realizar algo semelhante a um cálculo diante dos conflitos.

Pode-se argumentar que não é necessário apresentar o paralelismo entre direito e matemática para ressaltar a importância de serem distinguidas as normas que se aplicam segundo um juízo dicotômico ou qualitativo e as que se aplicam de acordo com um juízo quantitativo ou de otimização. Porém, parece inegável que a matemática tem muito mais conhecimento sobre como aplicar raciocínios contínuos e esse conhecimento pode ser muito útil para auxiliar o direito nos juízos de otimização.

Apresentado o ponto de contato, a grande meta na transdisciplinaridade entre direito e matemática seria a otimização na aplicação e mesmo na feitura das normas.

Considere o seguinte problema, que há séculos já é solucionado pela Matemática de modo muito simples: você possui 100 metros de cerca e pretende construir um galinheiro retangular. O retângulo pode assumir diversos formatos, uma vez que, quanto maior for dois de seus lados, menores serão os outros dois e vice-versa. No extremo, haverá dois lados com zero metro de largura e os outros dois lados com 50 metros cada e vice-versa.

Entre os dois extremos, a grande questão é: qual seria o formato que garantiria a maior área? Utilizando o cálculo diferencial, rapidamente se descobre que a área máxima é obtida quando todos os lados do retângulo são iguais, ou seja, com 25 metros cada, formando um quadrado com área de 625 metros quadrados. Quaisquer outras medidas dos lados levarão a uma redução da área do galinheiro.

Aquilo que na matemática é buscado, de forma metodológica e precisa, como ponto de máximo (eficiência, área etc.) ou ponto de mínimo (economia de materiais, mínimo gasto energético), é buscado no direito, porém, nem sempre com método ou com base em evidências.

No direito temos, por exemplo, o princípio da eficiência administrativa no artigo 37 da Constituição e o princípio da capacidade contributiva no §1º do artigo 145. De modo geral, esses princípios são meros meios para o objetivo de construir uma sociedade mais justa, como previsto no artigo 3º da Constituição. Afinal, aplicar melhor os recursos públicos evitando desperdício e cobrar impostos de forma proporcional à riqueza são condutas que parecem estar de acordo com esse objetivo.

A justiça para o direito parece corresponder exatamente aos pontos de máximo e de mínimo da matemática, ou seja, os pontos ótimos [4]. A matemática seria o instrumento ideal para buscar tais pontos, cabendo ao direito estabelecer quais seriam os critérios a serem adotados. Caso aplicada a matemática na concretização dos referidos princípios, poderíamos cravar o ponto ótimo da eficiência e a correspondência perfeita entre a capacidade contributiva de cada contribuinte e o valor de seu tributo devido.

Por vezes o direito se vê diante de valores conflitantes que precisam ser considerados em conjunto. Podemos citar situações que envolvem, por exemplo, o conflito entre justiça e segurança. Normalmente, normas mais precisas podem trazer mais segurança, porém, ao serem aplicadas a casos não previstos, podem levar a injustiças. Por outro lado, normas mais abertas permitem abranger mais casos, mas acabam levando a decisões divergentes para casos idênticos. Como encontrar um ponto ideal de equilíbrio entre os dois valores?

Há ainda normas que geram custos. Após algum tempo de experiência com a norma, percebe-se que alterá-la pode levar a economia de recursos. Seria possível, de antemão, encontrar uma forma de gerar o máximo de economia sem passar pelo processo de tentativa e erro?

Para alcançar essa meta de otimização do direito, o grande desafio está em fazer a ponte entre as duas disciplinas, especialmente o de transformar em números os fenômenos tratados pelo direito.

Mas tudo se resumiria a essa mera conversão em números ou haveria algo a mais a ser traduzido em símbolos, como a noção de justiça, para operá-los de forma lógica e exata? Aqui, direito e matemática encontram a Linguagem [5]. Esse ponto, contudo, fica para outro artigo.

 

[1] Para um maior detalhamento sobre essa distinção, cf. SARAI, Leandro. Contratações públicas sustentáveis: Crítica da norma pura e caminho da transformação. Londrina: Thoth, 2021, p. 63 e segs.

[2] KAHNEMAN, Daniel; SIBONY, Olivier; SUNSTEIN, Cass R.. Ruído: uma falha no julgamento humano. Tradução Cassio de Arantes Leite. São Paulo: Objetiva, 2021, p. 236-238.

[3] STROGATZ, Steven. O poder do infinito: Como o cálculo revela os segredos do universo. Trad. Paulo Afonso. Sextante, 2022.

[4] SARAI, Leandro. Uma noção de justiça. 8 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61075/uma-nocao-de-justica Acesso em: 12 jul. 2022.

[5] CABRAL, Flávio Garcia. SARAI, Leandro. Manual de Direito Administrativo. Leme/SP: Mizuno, 2022, p.  e seguintes. Cf. ainda SARAI, Leandro. Os artifícios linguísticos de manipulação. Conjur. 15 maio 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-mai-15/leandro-sarai-artificios-linguisticos-manipulacao Acesso em: 12 jul. 2022.

Autores

  • é doutor em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, professor credenciado pela Escola da AGU e procurador do Banco Central do Brasil.

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