Opinião

Os artifícios linguísticos de manipulação

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15 de maio de 2022, 6h03

A comunicação é um processo complexo. Uma pessoa (o emissor) possui um pensamento e pretende comunicá-lo (tornar comum, ou seja, presente em sua mente e na mente de outras pessoas) a alguém (o receptor), que precisará receber esse pensamento comunicado (mensagem) e processá-lo (julgá-lo, interpretá-lo, compreendê-lo) para que também fique presente em sua mente.

É difícil garantir, contudo, que aquilo que foi transmitido corresponderá ao que foi recebido. Aliás, já no processo de transmissão pode haver falhas na conversão do pensamento em mensagem.

Se formos rigorosos na análise, o processo beira o caos e nos surpreende como algo assim possa funcionar.

Por mais diversos que sejam os tipos de pensamento ou os objetos submetidos ao pensamento, temos a tendência e às vezes necessitamos julgar. Ao final de um julgamento o resultado parece sempre ser dicotômico: é ou não é, sim ou não, positivo ou negativo, gostamos ou não gostamos, bom (bem) ou mau (mal), certo ou errado etc..

Essa dicotomia ocorre mesmo quando o fenômeno julgado apresenta características de continuidade ou de gradação. Imaginemos, por exemplo, julgar se uma pessoa é boa ou ruim. Alguém poderá dizer que existe a possibilidade de ela ser "mais ou menos" boa ou ruim, ou seja, algo entre os dois extremos. Porém, esse juízo conciliatório ou de busca de meio termo somente se mantém enquanto o julgamento não é decisivo ou determinante. Expliquemos: uma coisa é julgar entre bom ou mau sem nenhuma finalidade. Mas se, por exemplo, tal julgamento for indispensável para decidirmos eleger ou não um candidato à presidência da República, iremos acabar considerando todas as características positivas e negativas para um julgamento dicotômico entre aceitar ou não o candidato.

Aliás, apesar de termos mencionado diversas dicotomias, todas parecem se resumir ao que é bom e ao que é mau.

Durante nossas vidas, vamos colecionando palavras em nosso vocabulário e, sem percebermos, associamos essas palavras aos juízos de bom e mau.

Vamos exemplificar novamente. Tomemos a palavra "amor". Em nosso vocabulário, iremos registrar a palavra "amor" em nossa mente juntamente com um significado. Esse significado pode variar muito de pessoa para pessoa. Porém, acreditamos que uma variação bem menor haverá no que diz respeito ao julgamento dessa palavra e seu significado quanto a enquadrá-la como algo bom ou ruim.

Ainda não estamos prontos para admitir o termo emoção para esse julgamento paralelo que ocorre no processo de significação, mas talvez ele seja apropriado.

Vejamos, também por exemplo, o termo "democracia". O significado dessa palavra também pode ser muito vago, mas o julgamento quanto a essa palavra e seu significado também deve ter um nível menor de dispersão, de divergência ou de ruído entre as pessoas. Provavelmente, a maioria dirá que a democracia é algo bom, exceto, obviamente, os tiranos no poder.

Justamente em razão de cada palavra carregar um elemento semântico (significado) e um elemento emotivo (resultado do julgamento entre bom e mau), pessoas com boas ou más intenções pode aproveitar-se do discurso para manipular seus interlocutores.

A intenção do emissor pode ser neutra ou boa quando sua pretensão é apenas demonstrar algo que acredita ser verdade e de convencer ou de encontrar concordância dos receptores. Por exemplo, ele pode dizer, de forma leiga ou vulgar, que um quilograma de algodão tem o mesmo peso que um quilograma de chumbo. Essa frase, aliás, é comumente utilizada em brincadeiras, pois as pessoas sempre associam chumbo a algo pesado e algodão a algo leve. Da mesma forma, pode dizer que uma pena e uma bola de boliche, soltas de determinada altura, atingirão o solo ao mesmo tempo, se não houver resistência do ar.

Esses exemplos não são muito bons, pois ambos permitem facilmente uma verificação empírica, ou seja, é possível realizar experiências para demonstrar a veracidade ou validade das afirmações.

A situação é mais complicada quando o discurso envolve elementos abstratos inverificáveis, que se baseiam apenas nos valores de determinado tempo e local. Por exemplo, pode ser fácil conseguir concordância de que o amor e a democracia são coisas boas, mas pode ser mais difícil obter essa mesma concordância ao julgar se um fato está de acordo com o amor e a democracia.

Na política, como os discursos são proferidos apenas para obter a concordância e o convencimento, o conteúdo preciso normalmente não tem importância. O objetivo é conseguir o poder. Daí que é comum na política a existência de frases como "lado certo da história", "o amor prevalecerá", "a verdade irá vencer" etc..

Aliás, há algo curioso nesses discursos. Eles podem, com uma única e mesma forma, encontrar acolhimento nas cabeças dos receptores, que preencherão essas formas com ideias distintas. Exemplifiquemos com a seguinte frase: "Sabemos que nas eleições você escolherá o candidato certo". Ora, todo mundo que vota espera estar fazendo a escolha certa, embora cada eleitor possa estar escolhendo um candidato diferente dos demais eleitores.

Como esses exemplos anedóticos não demonstram a seriedade do assunto, vamos pegar os nomes de alguns partidos políticos para deixar o tema mais palpável. Como são muitos os partidos brasileiros, vamos utilizar apenas aqueles com mais de 1 milhão de filiados: Movimento Democrático Brasileiro (MDB); Partido dos Trabalhadores (PT); Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB); Progressistas (PP); Partido Democrático Trabalhista (PDT); União Brasil (UNIÃO); e Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) [1].

Notem como esses nomes são abertos. Ninguém pode precisar o que é exatamente democracia, trabalhador, social, progresso e união. Mas, em princípio, a maioria tende a concordar que os significados dessas palavras seriam enquadrados na categoria (termo kantiano) ou "caixinha" das coisas boas de nossa mente, quando do processo dicotômico de separação entre o bem e o mal.

Em princípio ninguém esperaria que essas palavras aparentemente inocentes poderiam servir para realizar algum mal.

Mas vamos tomar, apenas por exemplo, o chamado Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães. Partido, por aglutinar uma parte da sociedade com ideais comuns. Até aqui, nada demais. "Nacional", para unir todo o povo, toda nação. Também parece ser algo bom. "Socialista" pode hoje em dia causar alguma controvérsia, mas no começo do século passado o socialismo nasce apenas como uma resposta para corrigir imperfeições evidentes do capitalismo, para buscar justiça, principalmente para os excluídos. Como a maioria era pobre (e ainda é), a palavra provavelmente iria cair na "caixinha" ou na categoria das coisas boas, arregimentando muitos seguidores. "Trabalhadores" pode também não ser uma palavra que alcance unanimidade, caso o receptor a compreenda como algo que exclui empresários, empreendedores, investidores, ou seja, caso se entenda que diz respeito apenas aos empregados assalariados. Mas num sentido amplo trabalhador é que em se esforça, quem trabalha, de modo que abrangeria todos, exceto os incapacitados. "Alemães" é uma palavra que exclui quem não é alemão, mas o objetivo do partido era ganhar o poder apenas na Alemanha, de modo que esse termo era suficiente. Ele também era chamativo porque buscava unir o povo alemão contra os não-alemães, um "inimigo comum". Isso pode não fazer sentido agora, mas a Alemanha acabava de sair derrotada da Primeira Guerra Mundial e a ideia de um culpado estrangeiro pelas mazelas da guerra era uma ideia poderosa para unir o povo em dificuldades.

Pois bem, para quem não sabe, esse partido de nome inocente também passou a ser conhecido como o Partido Nazista e mais não é preciso dizer quanto aos horrores que vieram depois praticados a partir dele.

Muitas palavras bonitas, mantidas nas cabeças das pessoas dentro da categoria do que é bom, já foram e são utilizadas diariamente para justificar sangue derramado.

As palavras podem ser, sob certo ponto de vista, neutras. Mas o uso que se faz delas pode trazer muitos perigos.

Talvez por isso a sabedoria antiga já dizia que "Há alguns que falam como que espada penetrante, mas a língua dos sábios traz a cura". (Provérbios 12:18)


[1] WIKIPEDIA. Lista de partidos políticos brasileiros. Abril 2022. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_partidos_pol%C3%ADticos_do_Brasil Acesso em: 8/5/2022.

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  • Brave

    é doutor em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, professor credenciado pela Escola da AGU e procurador do Banco Central do Brasil.

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