Tribuna da Defensoria

Defensoria e cooperação institucional para a concretização de direitos fundamentais

Autor

  • Eduardo Pereira dos Anjos

    é defensor público do estado do Amapá coordenador do Núcleo Criminal da Defensoria Pública da Comarca de Santana especialista em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes e coautor do livro "A Defensoria Pública e os Trinta Anos da Constituição Federal de 1988".

9 de agosto de 2022, 8h06

As relações sociais têm por princípio a interlocução entre os diversos agentes que as integram, formando uma grande rede sinérgica que culmina com a produção dos mais diversos conteúdos e propulsiona o alcance de objetivos.

Nesse ponto a democracia como regime político de garantia para a realização dos direitos fundamentais da pessoa, que tem por princípios a soberania popular e a participação do povo na forma de aquisição e exercício do poder, é essencial para a concretização da justiça social [1]. O povo, na lição de Ingo Sarlet, é o conjunto dos cidadãos que por força do próprio direito estatal são titulares de um vínculo jurídico com determinado Estado que assegure a participação na formação da vontade estatal mediante um conjunto de direitos e obrigações, com destaque para a titularidade de direitos de participação política [2].

A Constituição de 1988 estabelece que o Estado brasileiro se constitui em um estado democrático de direito, onde a democracia qualifica o Estado e é deste fundamento conforme seu artigo 1º, deixando claro que o regime político do Estado brasileiro está fundado no princípio democrático [3].

O regime democrático, que pode ser descrito como complexo estrutural de princípios e forças políticas que configuram determinada concepção de Estado e da sociedade e que inspiram o seu ordenamento jurídico, tem por fundamento a sua organização de baixo para cima, legitimado pela soberania do povo, segundo o qual todo o poder emana do povo que o exerce por meio de representantes ou diretamente [4].

Nas palavras de Abraham Lincoln [5], durante o nominado discurso de Gettysburg, é o governo do povo, para o povo e pelo povo.

A participação do povo no processo decisório e na formação dos atos de governo são reflexos da democracia participativa que como processo democrático instrumentaliza a concretização do regime democrático.

Nessa toada é que a EC 80/14, ao modificar o Artigo 134 da Constituição federal, declarou a Defensoria Pública como expressão do regime democrático e instrumento deste, quanto reconhecimento da vocação da instituição como mecanismo para a concretização da participação popular no exercício do poder.

A atuação institucional da Defensoria Pública na busca da consecução das determinações traçadas pela constituição e pela sua legislação de regência deve ser encarada sob essa perspectiva, para que haja o pleno alcance dos objetivos traçados pelas referidas normas: promoção e proteção dos direitos humanos e das pessoas e grupos em situação de vulnerabilidade, instrumentalizando o princípio democrático.

Não por acaso a LC nº 80/1994 prevê a atuação defensorial de forma multidisciplinar, consagrando o princípio cooperativo como parte da gênese institucional.

Em uma realidade em que tudo está conectado, tanto tecnologicamente quanto socialmente, sendo a conexão premissa para o funcionamento de qualquer sistema atualmente, não se pode pensar em um funcionamento institucional estanque, segregado, sob pena de não se conseguir alcançar, de forma célere, eficaz e plena, a concretização dos objetivos traçados constitucionalmente e legalmente à Defensoria Pública e, com isso, fracassar em ser instrumento de concretização de direitos dos vulneráveis.

Assim, se reveste de importância o entendimento institucional sobre a necessidade da atuação cooperativa com as demais instituições e órgãos públicos e privados, bem como com a sociedade civil, para que haja a permeabilidade da atuação da Defensoria Pública e, como consequência, o aumento da eficiência da atuação institucional, ampliando o gozo de direitos pelos vulneráveis.

A cooperação deve ser o norte da atuação institucional. Não por menos é que hoje ela é mencionada e tratada por todas as áreas da ciência jurídica, como no direito constitucional, com o federalismo cooperativo, no direito processual civil, com a previsão expressa do princípio da cooperação no novo CPC, bem como no direito internacional onde as nações, no exercício da sua soberania, firmam diversos tratados para cooperação em diversas áreas para o alcance do bem comum, mormente na proteção dos direitos humanos.

Tendo como função institucional a busca, de forma prioritária, da solução extrajudicial das demandas dos grupos sociais vulneráveis, nos termos da sua lei orgânica e em conformidade com a roupagem institucional extraída do Artigo 134 da CF, a Defensoria Pública deve trabalhar, sempre que possível, a cooperação com os mais diversos tipos de entidades legitimadas a atuar em benefício daquele grupo [6].

Nessa perspectiva a Defensoria deve sempre atuar em cooperação com os Poderes constitucionalmente instituídos (Executivo, especialmente o local, Judiciário e o Legislativo), com o Ministério Público, com as Organizações da Sociedade Civil, entre outros, com a finalidade de buscar parcerias capazes de oferecer soluções mais céleres e eficientes para os problemas da população, como, por exemplo, atuando junto ao Poder Legislativo para colaborar na formulação de políticas públicas dirigidas à população marginalizada e quase sempre esquecida.

Programas como o SUS mediado [7], os mutirões realizados conjuntamente com os órgãos de desburocratização dos poderes estaduais e municipais para a retirada de documentos, certidões etc. [8], eventos de recuperação de crédito [9], audiências públicas com a população para a escuta e formulação de solução para os litígios coletivos [10], atuação com o poder legislativo para a elaboração de políticas públicas [11], articulação com o Poder Executivo para a criação e aperfeiçoamento de programas sociais, são algumas das formas de colaboração institucional para a resolução dos problemas que afetam a população vulnerável.

A própria instituição possui uma administração cooperativa, formada por um conjunto de órgãos que integram a sua Administração Superior [12].

Assim sendo, é essencial que a visão para o futuro da atuação institucional deve englobar a visão cooperativa para a integralização dos direitos fundamentais, antecipando os problemas e propondo soluções, evitando ou mitigando eventuais danos aos direitos dos assistidos, tornando mais célere, eficaz e plena o exercício dos direitos fundamentais e ao concretizar a prescrição constitucional para que a Defensoria Pública seja, também de fato, expressão e instrumento do regime democrático.

 


[1] SILVA, José Afonsa da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 30ª ed. São Paulo. Malheiros. p. 128;132.

[2] SARLET, Ingo Wolfgang; MITIDIERO, Daniel; MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de Direito Constitucional. 9ª Ed. São Paulo. 2020. Saraiva. p. 283.

[3] Art. 1º — A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;V – o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

[4] SILVA, José Afonsa da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 30ª ed. São Paulo. Malheiros. p. 124.

[6] LC nº 80/1994: Art. 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras: […] II – promover, prioritariamente, a solução extrajudicial dos litígios, visando à composição entre as pessoas em conflito de interesses, por meio de mediação, conciliação, arbitragem e demais técnicas de composição e administração de conflitos; […]

[12] LC nº 80/1994: Art. 98. A Defensoria Pública dos Estados compreende: I – órgãos de administração superior: a) a Defensoria Pública-Geral do Estado; b) a Subdefensoria Pública-Geral do Estado; c) o Conselho Superior da Defensoria Pública do Estado; d) a Corregedoria-Geral da Defensoria Pública do Estado;

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  • é defensor público do Estado do Amapá, coordenador do Núcleo Criminal da Defensoria Pública da Comarca de Santana, especialista em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes e coautor do livro "A Defensoria Pública e os Trinta Anos da Constituição Federal de 1988".

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