Diário de Classe

Por uma cartografia (jurídica) do pensamento latino-americano

Autor

6 de agosto de 2022, 8h05

No começo do século 21, o chileno Eduardo Devés Valdés apresentou uma valiosa contribuição acadêmica àqueles estudiosos preocupados com a América Latina: uma espécie de "mapa" do pensamento, dividido por temas e, como ele mesmo ressalta, "figuras mais relevantes" [1]. Basicamente, a proposta de Devés Valdés voltava-se à compreensão do estágio da arte de um determinado tema no grande escopo das Humanas e das Sociais, sistematizando autores e ideias em um dado contexto. Isso permite — sobretudo a estudantes de mestrado e doutorado — "ganhar algumas jardas nas suas pesquisas", imprimindo um tom mais prático à atividade, mas não apenas. Mais importante, ao voltar os olhos para a produção acadêmica local, o professor chileno desmistifica a ideia fixa de que "não há pensamento latino-americano, mas somente pensamentos na América Latina". Nada próprio. Tudo importado ou, no limite, adaptado.

Entre tantos percursos abordados na sistematização indicada, talvez o mais relevante seja o tema da democracia. Segundo o nosso autor, esse assunto praticamente mobilizou o debate teórico-político do México para baixo, nos últimos anos do século passado. Democracia, afinal, era o "novo", era o grande tema da transição — digamos assim — não apenas na forma política, mas na maneira como passamos, desde então, a organizar nossa vida, à margem dos limites do político. Assim, na especificidade de nosso contexto, portanto, para além das clássicas leituras de Robert Dahl, Joseph Schumpeter e Norberto Bobbio [2], por exemplo, haveria pensadores latino-americanos a fechar o catálogo de maneira contextual e, portanto, mais profícua, seja para tratar da legitimidade democrática, da própria transição ou da autonomia política presente no novo regime.

Assim, dos peruanos Carlos Franco e Sinésio Lopez aos brasileiros Renato Ortiz e Octavio Ianni [3], por exemplo, muitas seriam as possibilidades investigativas — e razoavelmente desconhecidas — nessa espécie de cartografia do pensamento latino-americano, permitindo infinitas interlocuções como, por exemplo, democracia vs. cidadania, democracia vs. consumo e identidade, democracia vs. sociedade civil, democracia vs. globalização ou democracia vs. multiculturalismo, entre tantas hipóteses de diálogo.

Ocorre que talvez essas "cartografias" — justamente pela possibilidade de um sem-número de combinações dialógicas — sejam sempre incompletas. Quero dizer, não apenas novos temas surgem, como surgem, também, novas inflexões, autores e ideias. Disso decorreria a demanda por atualizações, de tempos em tempos, como ocorre sadiamente com softwares de código aberto. Vejamos, por exemplo, o campo desvelado pela pandemia de Covid-19, e as muitas possibilidades de abordagem que a envolve, seja sob o ponto de vista sanitário, político e até mesmo jurídico, mas limitadas por uma espécie de componente geopolítico.

Embora pareça caminhar nesse sentido, o pensamento compartilhado nesta coluna, contudo, não tem a pretensão de "atualizar a cartografia do pensamento latino-americano" — embora seu próprio autor reconheça a atividade como semelhante à tarefa de navegar rumo ao horizonte: não importa quanto se avance, a distância permanece a mesma. Isso significa que "atualizações" são tanto bem-vindas quanto necessárias. Mas, à margem disso, porém, o que parece mais relevante aqui é apontar para o diálogo entre "democracia" — o nosso grande e contemporâneo tema — e "Direito" como talvez o mais importante debate pós-redemocratização. Seriam componentes indissociáveis e, portanto, agenda obrigatória de nossos esforços acadêmicos?

Sem intenções generalistas, a resposta aqui oferecida é afirmativa. Afinal, se na democracia nossos desacordos não podem ser resolvidos arbitrariamente, evidenciando não somente a necessidade de sistemas jurídicos, mas, sobretudo, de sistemas jurídicos dotados de autonomia, como pensar à margem dessa intrínseca relação? Mais: como pensar essa espécie de simbiose entre o político e o jurídico contextualmente? Quero dizer, como pensar o Direito, na América Latina ou, mais especificamente, no Brasil, desconsiderando as entrelinhas desses países de língua românica?

As perguntas acima — que em alguma medida podem soar meras abstrações teóricas — ganham ares muito práticos quando, passados mais de trinta anos da Constituição de 1988 e, consequentemente, da redemocratização do país, ainda olhamos de soslaio para a forma como decidem nossos tribunais. Qual é, afinal, a concepção de Direito que ministros, desembargadores e juízes têm? Há uma epstemologia decisória que os une, emprestando coerência e integridade justamente na condição de possibilidade para dirimir desacordos democraticamente? De novo: como articular essas questões — próprias de quaisquer sistemas democráticos — com nossas singularidades?

Por tudo que até aqui já se disse, a intenção, por óbvio, não é enfrentar essas mesmas interrogações na precisão que lhes caracterizam, nem oferecer, pretensamente, uma espécie de atualização cartográfica. A intenção é apontar para o oceano que separa abordagens e temas num plano geopolítico, evidenciando uma possibilidade interlocutória entre democracia e Direito "à brasileira". É isso o que importa: clarificar a necessidade de pensar, academicamente, não "a partir", mas "em conjunto". Quero dizer, conhecer as clássicas lições de Bobbio, Dahl ou Schumpeter sobre democracia — para ficar nos autores antes mencionados — é fundamental. Mas serão mais profícuas essas mesmas lições se complementadas com as contextualizadas abordagens sobre esse mesmo tema do argentino Guilhermo O'Donnell, por exemplo, e seu conceito de "democracia delegativa" [4]. Afinal, Europa, EUA e América Latina têm "realidades e tempos" muito diferentes para conceitos cujo significado é homogeneizante. Não é possível generalizar o debate, embora seja importante conhecê-lo em seus aspectos mais amplos para contextualizá-lo. Justamente aí está o mérito da proposta de Eduardo Valdés — e as razões que movem esse pequeno ensaio: alertar para os limites da ideia de que — repito com ele — "não há pensamento latino-americano, mas somente pensamentos na América Latina".

E o Direito? Por óbvio, não escapa dessa condição. Na obrigatória dialogicidade com a democracia, também ele vai apresentar especificidades muito próprias, demandando teorias de fundo, digamos, "ajustadas" a diferentes contextos para enfrentar suas mais caras questões. Como exemplo dessa importante interlocução "desde a América Latina", fiquemos com a Crítica Hermenêutica do Direito, de Lenio Luiz Streck[5], em que o Direito (re)significa-se na sua própria tradição – "o novo", a transição, a própria democracia. Muito por isso, na especificidade desta matriz teórica, Direito e democracia não se dissociam um do outro. Ao contrário. Nutrem-se no grande diálogo. Interligam-se, emprestando sentido mutuamente.

Enfim, muitos outros tantos pontos de enlace poderiam ainda ser feitos aqui, mas — repete-se — a intenção não é essa. Esta coluna volta-se muito mais à delimitação de um espaço, muitas vezes impreciso ou vago, no esforço acadêmico. Por onde, afinal, começar? O que pode e o que não pode ser dito? Ainda — e talvez mais importante: o que já foi dito, na discussão das tradições europeia e norte-americana, é suficiente? Se o fim do século passado foi marcado, na América Latina e no Brasil, consequentemente, por uma certa pretensão identitária, evidenciar o pensamento crítico na sua origem parece figurar na ordem do dia voltada a (re)organizar o debate. Qualquer debate. E fugir — como alerta o próprio Eduardo Devés — da "má combinação ou das confusões feitas e estabelecer certa ordem" é sempre o primeiro passo.

 


[1] VALDÉS, Eduardo Devés. O pensamento latino-americano na virada do século: temas e figuras relevantes. Tradução de Gilmar Antônio Bedin. Ijuí: Unijuí, 2012.

[2] Não se trata, claro, de "descartar" leituras, como as mencionadas aqui nesse pequeno texto. Mas, ao contrário, acrescer autores, buscando estados da arte mais bem delimitados, sobretudo, na especificidade dos temas propostos.

[3] Aqui, uma breve síntese daqueles autores locais — entre tantos outros — voltados à discussão entre democracia, cidadania e sociedade civil.

[4] O’DONNELL, Guillermo. Democracia delegativa. Novos estudos, v. 31, nº 92, p. 25-40, 1991.

[5] Diante da vasta obra, fiquemos, por todos, com STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. São Paulo: Saraiva, 2014, e STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e (m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.

Autores

  • é doutor em Direito pelo programa de pós-graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Com bolsa Capes/PNPD, realiza estágio pós-doutoral na mesma instituição, junto ao Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!